Por Ademar Lourenço
A segunda temporada de “The Last of Us” chega ao fim e a série se consolida como a melhor adaptação do mundo dos videogames. Pela primeira vez, muitos fãs do jogo sentem entusiasmo e discutem os rumos do roteiro. Quem não é do mundo dos chamados “esportes eletrônicos” também está gostando. Mas as novidades param por aí. O seriado da HBO MAX repete uma fórmula que já está muito desgastada, que é a distopia.
Utopia é a descrição de uma sociedade perfeita e harmônica. Já a distopia mostra uma realidade em que a civilização se destruiu, a humanidade voltou à barbárie e a vida ficou muito mais dura. No caso da ficção científica, o desastre é provocado pelo mal uso da tecnologia e a trama se passa no futuro. Em “The Last of Us”, um fungo ganha a capacidade de transformar as pessoas em zumbis por causa das mudanças climáticas. O mais assustador é que esse fungo existe mesmo.
A distopia já é tema da literatura há muito tempo. George Orwell descreve em “1984” uma sociedade totalitária e opressora em que todos são vigiados o tempo todo por um “Grande Irmão”. Daí veio o temo “Big Brother”. Em “Admirável Mundo Novo”, o escritor Aldous Huxley nos apresenta um mundo sombrio de alienação e desigualdade em que as pessoas são sedadas para não enxergar sua situação.
O cinema também aborda o tema do futuro distópico desde “Metrópolis”, de 1926 e “Alphaville”, de 1965. A partir dos anos 80, animes japoneses exploravam a temática com clássicos como “Akira” e “Ghost in the Shell”.
Durante todo o século XX, grandes autores usaram a descrição de um futuro cruel como um aviso. A lição de moral dessas obras era a necessidade da humanidade se esforçar para não se tornar o mundo sombrio apresentado.
Uma coisa que caracterizava essas obras era a distância no tempo e o relato pouco realista. Também era comum a possiblidade de se evitar o futuro horrível ou sair da distopia. Em “O Exterminador do Futuro II”, o desastre nuclear é impedido com o uso de viagem no tempo, por exemplo. Em “Matrix”, os seres humanos são libertados da simulação e reconstroem a civilização.
Mas, a partir dos anos 2010, algo mudou. A ficção científica passou a focar muito no desastre em si. A saga “Jogos Vorazes” criou um verdadeiro subgênero que mostra sociedades decadentes e jovens tentando sobreviver a elas. No filme “2012”, o fim do mundo é inevitável e nos resta tentar sobreviver. Em “Black Mirror”, a tecnologia engole a natureza humana e não há nada que podemos fazer em relação a isso. O seriado “Walking Dead” fez um tremendo sucesso mostrando um mundo irreversivelmente destruído por zumbis.
São filmes, séries e jogos, voltados aos jovens, mostrando como o futuro vai ser ruim. Com o detalhe de que esse futuro é próximo, coincidindo com a vida adulta do público dessas ficções científicas. E também é inevitável, restando apenas sobreviver dentro da realidade posta. “The Last of Us” é mais um exemplo dessa estética de normalização do fim do mundo. Longe de ser um aviso ou uma crítica, essa overdose de distopias ajuda a gerar comodismo.
Disfunção narcotizante
Dentro da Teoria da Comunicação, um dos efeitos da mídia é a disfunção narcotizante. Quando o público é exposto constantemente a algo ruim, ele passa a normalizar a barbárie. Os telejornais que espirram sangue cumprem esse papel, por exemplo. Esse excesso de ficção científica distópica também pode ter o mesmo efeito. Em especial quando não é apresentada uma alternativa para evitar o pior cenário.
Afinal, os noticiários nos fazem crer em um futuro de distopia de ficção científica. O presente que vivemos em 2025 nos dá dezenas de possibilidades de como a civilização vai cair. Pode ser por uma guerra nuclear. Ou pelo aquecimento global. Quem sabe outra crise sanitária. O roteirista mais preguiçoso do mundo consegue facilmente tirar uma boa história a partir do que acontece na realidade.
A ficção científica distópica saturou. Mesmo com boas obras como “The Last of Us”, o tema já ficou repetitivo. Não causa mais espanto, não levanta mais discussão. Parece ser só o entretenimento de uma geração convencida que está condenada a fracassar. Deixa de ser crítica social. Passou a ser um instrumento da normalização da barbárie.
A ficção científica já foi mais otimista
Nem sempre a ficção científica teve como tema principal uma humanidade estilhaçada pelo fim do mundo. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, havia a disputa ideológica por um imaginário coletivo tomado por otimismo. O Nazismo e seus horrores foram derrotados. A tecnologia avançava em uma velocidade nunca vista antes. O futuro parecia promissor, com o fim das doenças, carros voadores e pouco trabalho.
De um lado, o capitalismo se apresentava como capaz de promover grandes transformações com eficiência e empreendedorismo. Do outro, a União Soviética mostrava ao mundo as vantagens do planejamento centralizado e da coletivização dos meios de produção. A corrida espacial foi um exemplo disso. As duas superpotências ostentavam seus feitos tecnológicos: O primeiro satélite na órbita terrestre, o primeiro homem no espaço e o primeiro homem na Lua. Mas não foi só isso. Nessa época, a humanidade aumentou a produtividade agrícola, erradicou a Varíola, criou a pílula anticoncepcional e ampliou o uso do carro.
Havia um consenso: a tecnologia vai avançar e isto vai tornar o mundo um lugar melhor. A disputa era qual modelo de sociedade iria permitir isso. A juventude via um futuro bem promissor pela frente. E a ficção científica refletia isso. Star Trek foi o seriado mais popular do gênero nessa época. Apresentava uma humanidade que conquistou outros planetas, desenvolveu o teletransporte e, não menos importante, uma mulher negra (tenente Uhura) poderia ter um cargo importante em uma nave espacial.
A ficção científica tinha como tema principal uma humanidade que havia resolvido a maioria de seus males e se lançava pelo Espaço Sideral. Os desafios eram o contato com espécies alienígenas e os mistérios dos confins do universo. A vida cotidiana também seria muito melhor. Os “Jetsons”, desenho animado popular dos anos 70, apresentava uma família futurista aproveitando os confortos gerados pelas máquinas.
Em alguns casos, o otimismo era mais comedido. Na série “Fundação”, de Isaac Asimov, um império galáctico ruía, mas os mais sábios conseguiam reerguer a civilização a partir de um pequeno planeta. Em “Star Wars”, havia uma ditatura fascista aterrorizando a Galáxia, mas uma forte resistência conseguia fazer oposição.
Entre os aos 50 e 80 do século XX, milhões de pessoas saíam do meio rural e passavam a morar nas cidades. Ter uma geladeira em casa ou um chuveiro quente era como viver na casa dos Jetsons. A mãe do autor desse texto passou a infância sob a luz de lamparina em uma fazenda. Na adolescência, após se mudar para uma casa na cidade, ela ficou maravilhada ao ver um ser humano pisar na Lua ao vivo pela televisão. E aprendeu a acreditar em um futuro promissor por meio dos livros de Júlio Verne. O mundo parecia evoluir na velocidade de uma nave espacial. O que poderia dar errado?
Arrancar alegria ao futuro
A arte e o entretenimento refletem a sociedade em que vivem. O que a gente vê em “The Last of Us” são pessoas lutando para manter sua humanidade em um mundo tomado pela barbárie. A série fala sobre a criação de laços afetivos, a construção de sociedades minimamente funcionais e os padrões de moralidade possíveis em situações extremas. O tema do seriado é mais as relações humanas do que apenas dar tiros em zumbis tomados por fungos. Não chega ser algo totalmente pessimista, mas mostra uma humanidade que seguiu um caminho de decadência. Inevitável?
Não. É possível ter outro futuro. É possível evitar o desastre climático, que em “The Last of Us” causou o apocalipse. Nosso imaginário não pode ficar preso à normalização da barbárie. Podemos evitar a realidade mostrada pelos filmes de ficção científica. Os próximos anos não estão traçados.
Nossos pais achavam que nós andaríamos em carros voadores. Hoje temos medo de que nossos filhos passem fome. Muitos preferem acreditar no fim do mundo do que no fim do capitalismo. Precisamos pensar de outra forma. O medo tem que se transformar em vontade de lutar. A humanidade já passou por várias provações e conseguiu sobreviver.
O capitalismo pode ser superado, como outros sistemas de opressão em outras épocas históricas. E a ficção científica pode ajudar a criar um imaginário diferente. Se você leu este texto até aqui e quer ser autor do gênero, que tal imaginar uma sociedade pós-capitalista? Que tal ser um arquiteto de um mundo melhor? O futuro vai ser difícil, mas também pode ser glorioso.
Fim do mundo? Kkk humanidades…
Como sempre, não posso deixar de lembrar o discurso de Ursula Le Guin, quando ela disse que
Vivemos no capitalismo, seu poder parece inescapável – mas, por outro lado, o direito divino dos reis também o era. Qualquer poder humano pode ser resistido e modificado por seres humanos. A resistência e a mudança muitas vezes começam na arte. Muitas vezes, em nossa arte, a arte das palavras
E também por ter escrito uma obra utópica sobre uma possivel sociedade sem classes e Estado em Os Despossuídos.
Acho ambos um bom contraponto à normalização da barbárie e sua naturalização sob o conceito de disropia, muito bem apontado pelo texto.
A seu modo, com escopo mais amplo, o artigo toca num assunto que tem a ver com o desse: “Distopias purgatórias”, de 2015 (https://passapalavra.info/2015/02/102865/). Dialoga também com um ensaio de David Graeber de 2012, “Of Flying Cars and the Declining Rate of Profit” (https://davidgraeber.org/articles/of-flying-cars-and-the-declining-rate-of-profit/), que anda a merecer tradução.