Por David Graeber
O capitalismo industrial fomentou uma taxa extremamente rápida de avanço científico e inovação tecnológica — uma taxa sem paralelo na história humana até então. Mesmo os maiores detratores do capitalismo, Karl Marx e Friedrich Engels, celebraram o desencadeamento das “forças produtivas”. Marx e Engels também acreditavam que a necessidade contínua do capitalismo de revolucionar os meios de produção industrial seria a sua ruína. Marx argumentou que, por certas razões técnicas, o valor — e, portanto, os lucros — só podem ser extraídos do trabalho humano. A concorrência obriga os proprietários das fábricas a mecanizar a produção, a reduzir os custos com a força de trabalho, mas, embora isso seja vantajoso a curto prazo para a empresa, o efeito da mecanização é reduzir a taxa geral de lucro.
Durante 150 anos, os economistas debateram se tudo isso era verdade. Mas se é verdade, então a decisão dos industriais de não investirem fundos de pesquisa na invenção das fábricas robóticas que todos esperavam nos anos sessenta e, em vez disso, de realocar suas fábricas para instalações com uso intensivo da força de trabalho e de baixa tecnologia na China ou no Sul Global faz muito sentido.
Como expressei, há razões para acreditar que o ritmo da inovação tecnológica nos processos produtivos — as próprias fábricas — começou a desacelerar nos anos cinquenta e sessenta, mas os efeitos colaterais da rivalidade dos Estados Unidos com a União Soviética fizeram com que a inovação parecesse acelerar. Havia a incrível corrida espacial, juntamente com os esforços frenéticos dos planejadores industriais dos EUA na aplicação das tecnologias existentes visando os consumidores, para criar um senso otimista de prosperidade crescente e progresso garantido que minaria o apelo de uma política da classe trabalhadora.
Esses movimentos foram reações a iniciativas da União Soviética. Mas essa parte da história é difícil para os estadunidenses recordarem, porque no final da Guerra Fria, a imagem popular da União Soviética passou de ser um rival terrivelmente ousado para um caso patético — o exemplo de uma sociedade que não podia funcionar. Na verdade, nos anos cinquenta, muitos planejadores nos Estados Unidos suspeitavam que o sistema soviético funcionava melhor. Certamente, se lembravam do fato que nos anos trinta, enquanto os Estados Unidos estavam atolados na depressão, a União Soviética manteve taxas de crescimento econômico quase sem precedentes de 10% a 12% ao ano — uma conquista rapidamente seguida pela produção de exércitos de tanques que derrotaram a Alemanha nazista, depois pelo lançamento do Sputnik em 1957, depois pela primeira nave espacial tripulada, a Vostok, em 1961.
Dizem que o pouso da Apollo na Lua foi a maior conquista histórica do comunismo soviético. Certamente, os Estados Unidos nunca teriam contemplado tal feito se não fossem as ambições cósmicas do politburo soviético. Estamos habituados a pensar no politburo como um grupo de burocratas cinzentos sem imaginação, mas eram burocratas que ousavam ter sonhos surpreendentes. O sonho da revolução mundial foi só o primeiro. Também é verdade que a maioria desses sonhos — mudar o curso de rios poderosos, esse tipo de coisa — ou se revelou ecológica e socialmente desastroso, ou, como o Palácio dos Sovietes com cem andares de Joseph Stalin ou uma estátua de Vladimir Lenin de vinte andares, nunca decolou.
Após os sucessos iniciais do programa espacial soviético, poucos desses esquemas foram realizados, mas os líderes soviéticos nunca pararam de inventar novos. Mesmo nos anos oitenta, quando os Estados Unidos tentavam o seu último e grandioso esquema, Star Wars, os soviéticos planejavam transformar o mundo por meio de usos criativos da tecnologia. Poucos fora da Rússia se lembram da maioria desses projetos, mas grandes recursos foram dedicados a eles. Também vale a pena notar que, ao contrário do projeto Star Wars, concebido para afundar a União Soviética, a maioria não era de natureza militar: como, por exemplo, a tentativa de resolver o problema da fome no mundo cultivando lagos e oceanos com uma bactéria comestível chamada spirulina, ou para resolver o problema mundial da energia lançando centenas de gigantescas plataformas de energia solar em órbita e enviando a eletricidade de volta à terra. A vitória estadunidense na corrida espacial significou que, depois de 1968, os planejadores americanos deixaram de levar a competição a sério. Como resultado, a mitologia da fronteira final foi mantida, mesmo quando a direção dada a pesquisa e desenvolvimento se afastou de qualquer coisa que pudesse levar à criação de bases de Marte e fábricas robóticas.
A história mais difundida é que tudo isso foi resultado do triunfo do mercado. O programa Apollo foi um grande projeto governamental, de inspiração soviética, no sentido de que exigia um esforço nacional coordenado pelas burocracias governamentais. No entanto, assim que a ameaça soviética saiu claramente de cena, o capitalismo estava livre para voltar a linhas de desenvolvimento tecnológico mais conforme os seus imperativos normais, descentralizados e de livre mercado — como a investigação financiada por fundos privados sobre produtos comercializáveis, a exemplo dos computadores pessoais. Essa é a linha que homens como Toffler e Gilder adotaram no final dos anos setenta e início dos anos oitenta.
Na verdade, os Estados Unidos nunca abandonaram esquemas gigantescos de desenvolvimento tecnológico controlados pelo governo. Eles apensa deslocaram a maioria para pesquisa militar — e não somente para esquemas de escala soviética como Star Wars, mas para projetos de armas, pesquisa em tecnologias de comunicação e vigilância e temas semelhantes relacionadas à segurança. Até certo ponto, isso sempre foi verdade: os bilhões investidos na pesquisa a respeito de mísseis tinham sempre diminuído as somas atribuídas ao programa espacial. No entanto, nos anos setenta, até a pesquisa básica passou a ser conduzida segundo prioridades militares. Uma razão pela qual não temos fábricas robóticas é porque cerca de 95% do fundo de pesquisa em robótica foi canalizado através do Pentágono, que está mais interessado em desenvolver drones não tripulados do que em automatizar fábricas de papel.
Pode-se argumentar que mesmo a mudança para a pesquisa e desenvolvimento das tecnologias da informação e medicina não foi tanto uma reorientação para imperativos de consumo orientados pelo mercado, mas parte de um esforço aberto para acompanhar a humilhação tecnológica da União Soviética com a vitória total na guerra de classes global — vista simultaneamente como a imposição do domínio militar absoluto dos EUA no exterior e, em casa, a completa derrota dos movimentos sociais.
Afinal, as tecnologias que surgiram revelaram-se mais propícias à vigilância, à disciplina do trabalho e ao controle social. Os computadores abriram certos espaços de liberdade, como somos constantemente lembrados, mas em vez de conduzirem à utopia sem trabalho que Abbie Hoffman imaginou, foram empregados para produzir o efeito contrário. Eles permitiram uma financeirização do capital que levou os trabalhadores a endividarem-se desesperadamente e, ao mesmo tempo, proporcionou os meios pelos quais os empregadores criaram regimes de trabalho “flexíveis” que destruíram a segurança tradicional do emprego e aumentaram o horário de trabalho para quase todo mundo. Juntamente com a exportação de postos de trabalho nas fábricas, o novo regime de trabalho destruiu o movimento sindical e qualquer possibilidade de uma política eficaz da classe trabalhadora.
Enquanto isso, apesar do investimento sem precedentes na pesquisa em medicina e ciências da vida, aguardamos ainda a cura para o câncer e o resfriado comum, e os avanços médicos mais dramáticos que vimos assumiram a forma de medicamentos como Prozac, Zoloft ou Ritalina — feitos sob medida para garantir que as novas demandas de trabalho não nos deixem completa e disfuncionalmente loucos.
Com resultados como estes, como será o epitáfio do neoliberalismo? Penso que os historiadores concluirão que foi uma forma de capitalismo que priorizou sistematicamente os imperativos políticos em detrimento dos econômicos. Dada uma escolha entre um curso de ação que faria o capitalismo parecer o único sistema econômico possível e um que transformaria o capitalismo em um sistema econômico viável e de longo prazo, o neoliberalismo escolheu o primeiro todas às vezes. Tem-se todas as razões para acreditar que destruir a segurança no emprego e aumentar o horário de trabalho não cria uma força de trabalho mais produtiva (muito menos mais inovadora ou leal). Provavelmente, em termos econômicos, o resultado é negativo — uma impressão confirmada por taxas de crescimento mais baixas em praticamente todas as partes do mundo nos anos oitenta e noventa.
Mas a escolha neoliberal tem sido eficaz na despolitização do trabalho e na sobredeterminação do futuro. Economicamente, o crescimento dos exércitos, da polícia e dos serviços de segurança privada equivale a um peso morto. Na verdade, é possível que o peso morto do aparato criado para garantir a vitória ideológica do capitalismo o afunde. Mas também é fácil ver como sufocar qualquer sensação de um futuro inevitável e redentor que poderia ser diferente do nosso mundo é uma parte crucial do projeto neoliberal.
Nesse ponto, todas as peças parecem se encaixar perfeitamente. Nos anos sessenta, as forças políticas conservadoras estavam cada vez mais inquietas sobre os efeitos socialmente disruptivos do progresso tecnológico, e os empregadores começavam a preocupar-se com o impacto econômico da mecanização. O desvanecimento da ameaça soviética permitiu uma realocação de recursos em direções vistas como menos desafiadoras aos arranjos sociais e econômicos, ou mesmo direções que poderiam apoiar uma campanha de reversão dos ganhos feitos pelos movimentos sociais progressistas e alcançar uma vitória decisiva no que as elites dos EUA viam como uma guerra de classes global. A mudança de prioridades foi introduzida como um recuo de grandes projetos governamentais e um retorno ao mercado, mas, na verdade, a mudança deslocou a pesquisa dirigida pelo governo de programas como a NASA ou fontes alternativas de energia para tecnologias militares, de informação e médicas.
Claro que isso não explica tudo. Especialmente, não explica por que razão, mesmo naquelas áreas que se tornaram o foco de projetos de pesquisa bem financiados, não vimos nada parecido com os avanços previstos há cinquenta anos. Se 95% das pesquisas em robótica foram financiadas pelos militares, então onde estão os robôs assassinos ao estilo Klaatu disparando raios mortais pelos olhos?
Obviamente, houve avanços na tecnologia militar nas últimas décadas. Um dos motivos pelos quais todos sobrevivemos à Guerra Fria é que, embora as bombas nucleares pudessem ter funcionado como anunciado, os seus sistemas de transporte não; os mísseis balísticos intercontinentais não conseguiam atingir cidades, muito menos alvos específicos nas cidades, e esse fato significava que não fazia sentido lançar um primeiro ataque nuclear a menos que se pretendesse destruir o mundo.
Os mísseis de cruzeiro contemporâneos são muito precisos em comparação. Ainda assim, as armas de precisão nunca parecem capazes de assassinar indivíduos específicos (Saddam, Osama, Khadafi), mesmo quando centenas são lançadas. E as armas de raios não se materializaram — certamente não por falta de tentativas. Podemos supor que o Pentágono gastou bilhões em pesquisas sobre raios da morte, mas o mais próximo que chegaram até agora são os lasers que podem, se apontados corretamente, cegar um artilheiro inimigo que olhe diretamente para o feixe. Além de ser antiesportivo, isso é patético: os lasers são uma tecnologia dos anos cinquenta. Phasers que podem ser ajustados para atordoar não parecem estar nas pranchetas; e quando se trata de combate de infantaria, a arma preferida em quase todos os lugares continua sendo a AK-47, um projeto soviético nomeado pelo ano em que foi introduzido: 1947.
A Internet é uma inovação notável, mas estamos falando de uma combinação super rápida e globalmente acessível de biblioteca, correios e catálogo por correspondência. Se a Internet tivesse sido descrita para um aficionado de ficção científica nos anos cinquenta e sessenta e considerada a conquista tecnológica mais dramática desde o seu tempo, sua reação teria sido decepcionante. Cinquenta anos e isso é o melhor que os nossos cientistas conseguiram inventar? Esperávamos por computadores que pensassem!
Globalmente, os níveis de financiamento de pesquisas aumentaram dramaticamente desde os anos setenta. Admitidamente, a proporção desse financiamento proveniente do setor empresarial aumentou de forma mais dramática, a tal ponto que a iniciativa privada financia agora o dobro de pesquisa do que o governo, mas o aumento é tão grande que o montante total do financiamento da investigação do governo, em dólares reais, é muito superior ao que era nos anos sessenta. A pesquisa “básica”, “orientada para a curiosidade” ou “céu azul” — do tipo que não é impulsionada pela perspectiva de qualquer aplicação prática imediata, e que é provável que conduza a avanços inesperados — ocupa uma proporção decrescente do total, embora se esteja gastando tanto dinheiro hoje em dia que os níveis globais de financiamento da pesquisa básica aumentaram.
No entanto, a maioria dos observadores concorda que os resultados foram insignificantes. Certamente não vemos mais nada como o fluxo contínuo de revoluções conceituais — herança genética, relatividade, psicoanálise, mecânica quântica — a que as pessoas se acostumaram, e até esperavam, cem anos antes. Por quê?
Parte da resposta tem a ver com a concentração de recursos num punhado de projetos gigantescos: “grande ciência”, como passou a ser chamada. O Projeto Genoma Humano é frequentemente apresentado como exemplo. Após gastar quase três bilhões de dólares e empregar milhares de cientistas e funcionários em cinco países diferentes, serviu principalmente para estabelecer que não há nada a ser aprendido com o sequenciamento de genes que seja muito útil para qualquer pessoa. Ainda mais, o hype e o investimento político em torno de tais projetos demonstram o grau em que até mesmo a pesquisa básica agora parece ser impulsionada por imperativos políticos, administrativos e de marketing que tornam improvável que algo revolucionário aconteça.
Aqui, o nosso fascínio com as origens míticas do Vale do Silício e da Internet nos cegou para o que realmente está acontecendo. Ele nos permitiu imaginar que a pesquisa e desenvolvimento são conduzidos principalmente por pequenas equipes de empreendedores corajosos, ou pelo tipo de cooperação descentralizada que cria softwares de código aberto. Não é assim, embora essas equipes de pesquisa tenham maior probabilidade de produzir resultados. A pesquisa e o desenvolvimento continuam a ser impulsionados por gigantescos projetos burocráticos. O que mudou foi a cultura burocrática. A crescente interpenetração do governo, das universidades e das empresas privadas levou todos a adotarem a linguagem, as sensibilidades e as formas organizacionais que se originaram no mundo corporativo. Embora isso possa ter contribuído para a criação de produtos comercializáveis, uma vez que é para isso que as burocracias empresariais são concebidas, em termos de fomento de pesquisas originais, os resultados foram catastróficos.
O meu conhecimento vem das universidades, tanto dos Estados Unidos quanto da Grã-Bretanha. Nos dois países, os últimos trinta anos registaram uma verdadeira explosão da proporção de horas de trabalho despendidas em tarefas administrativas à custa de praticamente todo o resto. Na minha própria universidade, por exemplo, temos mais administradores do que docentes, e espera-se que os docentes dediquem pelo menos tanto tempo à administração quanto ao ensino e à pesquisa combinados. O mesmo acontece, mais ou menos, nas universidades de todo o mundo.
O crescimento do trabalho administrativo resultou diretamente da introdução de técnicas de gestão empresarial. Invariavelmente, essas justificam-se como formas de aumentar a eficiência e introduzir a concorrência em todos os níveis. O que elas acabam significando na prática é que todos acabam gastando a maior parte do seu tempo tentando vender coisas: propostas de subvenções; propostas de livros; avaliações dos empregos dos estudantes e pedidos de subvenções; avaliações dos nossos colegas; prospectos para novos cursos interdisciplinares; institutos; workshops de conferências; as próprias universidades (que agora se tornaram marcas para serem comercializadas a futuros estudantes ou colaboradores); e assim por diante.
À medida que o marketing domina a vida universitária, gera documentos sobre a promoção da imaginação e da criatividade que poderiam muito bem ter sido concebidos para estrangular a imaginação e a criatividade no berço. Nos últimos trinta anos, não surgiram grandes obras de teoria social nos Estados Unidos. Fomos reduzidos ao equivalente dos escolásticos medievais, escrevendo anotações intermináveis da teoria francesa dos anos setenta, apesar da consciência culpada de que, se novas encarnações de Gilles Deleuze, Michel Foucault ou Pierre Bourdieu aparecessem na academia hoje, nós lhe negaríamos a livre-docência.
Houve um tempo em que a academia era o refúgio da sociedade para os excêntricos, brilhantes e pessoas pouco práticas. Não mais. É agora o domínio dos profissionais de automarketing. Como resultado, em um dos ataques mais bizarros de autodestruição social da história, parece que decidimos que não temos lugar para nossos cidadãos excêntricos, brilhantes e pouco práticos. A maioria definha nos porões das mães, fazendo, na melhor das hipóteses, uma intervenção ocasional e aguda na internet.
Se tudo isso é verdade nas ciências sociais, onde a pesquisa continua a ser realizada com um mínimo de intromissões na maioria por indivíduos, pode-se imaginar o quanto é pior para os astrofísicos. E, de fato, um astrofísico, Jonathan Katz, alertou recentemente os estudantes que ponderavam uma carreira nas ciências. Mesmo se você sair do período habitual de uma década definhando como o lacaio de outra pessoa, ele diz, você pode esperar que suas melhores ideias sejam frustradas em todos os pontos:
Você gastará seu tempo escrevendo propostas em vez de fazer pesquisas. Pior ainda, como as suas propostas são julgadas pelos seus concorrentes, você não pode seguir a sua curiosidade, mas deve dedicar o seu esforço e talento para antecipar e desviar as críticas, em vez de resolver os importantes problemas científicos. É proverbial que ideias originais são o beijo da morte para uma proposta, porque ainda não se provou que funcionam.
Isso praticamente responde à questão de por que não temos dispositivos de teletransporte ou sapatos anti-gravidade. O senso comum sugere que, se quiser maximizar a criatividade científica, encontre algumas pessoas brilhantes, forneça a elas os recursos necessários para poderem desenvolver qualquer ideia que surja em suas cabeças e depois as deixe em paz. A maioria não vai dar em nada, mas um ou dois podem muito bem descobrir alguma coisa. Mas se quiser minimizar a possibilidade de avanços inesperados, diga a essas mesmas pessoas que não receberão recursos, a menos que gastem a maioria do seu tempo competindo entre si para convencê-lo de que sabem antecipadamente o que vão descobrir.
Nas ciências naturais, à tirania do gerencialismo podemos acrescentar a privatização dos resultados das pesquisas. Como nos recordou o economista britânico David Harvie, a investigação “open source” não é nova. A pesquisa acadêmica sempre foi de código aberto, no sentido de que os acadêmicos compartilham materiais e resultados. Há concorrência, certamente, mas é “amigável”. Isso não é mais verdade para os cientistas que trabalham no setor corporativo, onde as descobertas são zelosamente guardadas, mas a disseminação do ethos corporativo no interior da academia e dos próprios institutos de pesquisa fez com que até mesmo acadêmicos com financiamento público tratassem suas descobertas como propriedade pessoal. Os editores acadêmicos se asseguram de que os resultados publicados são cada vez mais difíceis de acessar, cerceando ainda mais os bens comuns intelectuais [intellectual commons]. Como resultado, a concorrência amigável e de código aberto se transforma em algo muito mais parecido com a concorrência clássica de mercado.
Existem muitas formas de privatização, incluindo a simples compra e supressão de descobertas inconvenientes por parte das grandes empresas que temem os seus efeitos econômicos (Não podemos saber quantas fórmulas de combustíveis sintéticos foram compradas e colocadas nos cofres das empresas petrolíferas, mas é difícil imaginar que nada disso aconteça). Mais sutil é como o ethos gerencial desencoraja tudo o que é aventureiro ou peculiar, especialmente se não houver perspectivas de resultados imediatos. Estranhamente, a Internet pode ser parte do problema aqui. Como disse Neal Stephenson:
A maioria das pessoas que trabalham em empresas ou na academia testemunhou algo parecido com o seguinte: vários engenheiros estão sentados juntos em uma sala, trocando ideias entre si. Da discussão surge um novo conceito que parece promissor. Em seguida, uma pessoa que empunha um laptop no canto, tendo realizado uma rápida pesquisa no Google, anuncia que essa “nova” ideia é, de fato, antiga; ela — ou pelo menos algo vagamente semelhante — já foi tentada. Ou falhou, ou conseguiu. Se falhou, nenhum gerente que queira manter o seu emprego irá aprovar gastar dinheiro tentando revivê-la. Se foi bem-sucedida, então é patenteada e presume-se que a entrada no mercado é inatingível, uma vez que as primeiras pessoas que pensaram nisso terão a “vantagem do primeiro a agir” e terão criado “barreiras de entrada”. O número de ideias aparentemente promissoras que foram esmagadas desta forma deve chegar aos milhões.
Assim, um espírito tímido e burocrático permeia todos os aspectos da vida cultural. Ele vem decorado com uma linguagem de criatividade, iniciativa e empreendedorismo. Mas a linguagem não tem importância. Os pensadores com maior probabilidade de fazer uma descoberta conceitual são os menos propensos a receber financiamento e, se ocorrerem avanços, não é provável que encontrem alguém disposto a dar seguimento às suas implicações mais ousadas.
Giovanni Arrighi observou que, após a bolha do mar do Sul, o capitalismo britânico abandonou em sua maioria a forma corporativa. Na época da Revolução Industrial, a Grã-Bretanha passou a contar com uma combinação de altas finanças e pequenas empresas familiares — um padrão que manteve ao longo do século seguinte, o período de máxima inovação científica e tecnológica (A Grã-Bretanha naquela época também era notória por ser tão generosa com seus esquisitos e excêntricos quanto a América contemporânea é intolerante. Um expediente comum era permitir que eles se tornassem vigários rurais, que, previsivelmente, se tornaram uma das principais fontes de descobertas científicas amadoras).
O capitalismo corporativo burocrático contemporâneo foi uma criação não da Grã-Bretanha, mas dos Estados Unidos e da Alemanha. As duas potências rivais que passaram a primeira metade do século XX travando duas guerras sangrentas para ver quem substituiria a Grã-Bretanha como potência mundial dominante — guerras que culminaram, apropriadamente, em programas científicos patrocinados pelo governo para ver quem seria o primeiro a descobrir a bomba atômica. É significativo, pois, que a nossa atual estagnação tecnológica pareça ter começado depois de 1945, quando os Estados Unidos substituíram a Grã-Bretanha como organizador da economia mundial.
Os estadunidenses não gostam de pensar em si como uma nação de burocratas — muito pelo contrário —, mas no momento em que deixamos de imaginar a burocracia como um fenômeno limitado aos gabinetes governamentais, torna-se óbvio que foi precisamente isso que nos tornamos. A vitória final sobre a União Soviética não levou à dominação do mercado, mas, na verdade, cimentou o domínio das elites gerenciais conservadoras, burocratas corporativos que usam o pretexto do pensamento de curto prazo, competitivo e visando o lucro para reprimir qualquer coisa que possa ter implicações revolucionárias de qualquer tipo.
Se não percebemos que vivemos numa sociedade burocrática, é porque as normas e práticas burocráticas se tornaram tão difundidas que não podemos vê-las ou, pior ainda, não podemos imaginar fazer as coisas de outra forma.
Os computadores desempenharam um papel crucial neste estreitamento da nossa imaginação social. Assim como a invenção de novas formas de automação industrial nos séculos XVIII e XIX teve o efeito paradoxal de transformar cada vez mais a população mundial em trabalhadores industriais, também todo o software concebido para nos salvar das responsabilidades administrativas nos transformou em administradores a tempo parcial ou a todo o tempo. Da mesma forma que professores universitários parecem sentir que é inevitável gastar mais do seu tempo gerindo subvenções, donas de casa ricas simplesmente aceitam que passarão semanas todos os anos preenchendo formulários on-line de quarenta páginas para colocar seus filhos nas escolas primárias. Todos gastamos cada vez mais tempo digitando senhas nos nossos celulares para gerir contas bancárias e de crédito e aprendendo a realizar os trabalhos que eram feitos por agentes de viagens, corretores e contadores.
Alguém uma vez descobriu que o americano médio vai passar um total de seis meses de vida à espera dos semáforos abrirem. Não sei se existem números semelhantes para o tempo que se demora para preencher formulários, mas deve ser pelo menos o mesmo tanto. Nenhuma população na história do mundo passou tanto tempo envolvida em papelada.
Nesta fase final e estupidificante do capitalismo, estamos passando das tecnologias poéticas para as tecnologias burocráticas. Por tecnologias poéticas, refiro-me ao uso de meios racionais e técnicos para trazer fantasias loucas à realidade. As tecnologias poéticas, assim compreendidas, são tão antigas quanto a civilização. Lewis Mumford observou que as primeiras máquinas complexas eram feitas de pessoas. Os faraós egípcios só conseguiram construir as pirâmides devido ao seu domínio dos procedimentos administrativos, o que lhes permitiu desenvolver técnicas de linha de produção, dividindo tarefas complexas em dezenas de operações simples e atribuindo cada uma a uma equipe de trabalhadores — embora lhes faltasse uma tecnologia mecânica mais complexa do que o plano inclinado e a alavanca. A supervisão administrativa transformou exércitos de camponeses em engrenagens de uma vasta máquina. Muito mais tarde, após a invenção das engrenagens, projetar máquinas complexas elaborou princípios originalmente desenvolvidos para organizar pessoas.
No entanto, vimos essas máquinas — quer as suas partes móveis sejam braços e torsos ou pistões, rodas e molas — serem postas a trabalhar para realizar fantasias impossíveis: catedrais, fotografias lunares, estradas-de-ferro transcontinentais. Certamente, as tecnologias poéticas tinham algo terrível sobre elas; é provável que a poesia seja tanto de moinhos satânicos sombrios quanto de graça ou libertação. Mas as técnicas racionais e administrativas estavam sempre a serviço de algum fim fantástico.
Nessa perspectiva, todos esses planos soviéticos loucos — mesmo que nunca realizados — marcaram o clímax das tecnologias poéticas. O que temos agora é o oposto. Não é que a visão, a criatividade e as fantasias loucas não sejam mais encorajadas, mas que a maioria permanece flutuante; não há mais a pretensão de que eles possam tomar forma ou corpo. A maior e mais poderosa nação que já existiu passou as últimas décadas dizendo aos seus cidadãos que já não podem contemplar empreendimentos coletivos fantásticos, mesmo que — como exige a crise ambiental — o destino da Terra dependa disso.
Quais são as implicações políticas de tudo isso? Em primeiro lugar, temos de repensar alguns dos nossos pressupostos mais básicos sobre a natureza do capitalismo. Um deles é que o capitalismo é idêntico ao mercado e ambos são, portanto, hostis à burocracia, que se supõe ser uma criatura do Estado.
O segundo pressuposto é que o capitalismo é, na sua natureza, tecnologicamente progressista. Parece que Marx e Engels, em seu entusiasmo vertiginoso pelas revoluções industriais de sua época, estavam errados sobre isso. Ou, para ser mais preciso: eles estavam certos em insistir que a mecanização da produção industrial destruiria o capitalismo; eles estavam errados em prever que a concorrência de mercado obrigaria os proprietários de fábricas a mecanizar de qualquer maneira. Se não aconteceu, é porque a concorrência de mercado não é, de fato, tão essencial para a natureza do capitalismo quanto haviam pensado. Se nada mais, a forma atual do capitalismo, na qual grande parte da concorrência parece assumir a forma de marketing interno no interior das estruturas burocráticas das grandes empresas semi-monopolistas, teria sido uma completa surpresa para elas.
Os defensores do capitalismo fazem três afirmações históricas gerais: primeiro, que ele promoveu um rápido crescimento científico e tecnológico; segundo, que, por mais que assegure enormes riquezas a uma pequena minoria, o faz de forma a aumentar a prosperidade global; terceiro, que, ao fazê-lo, cria um mundo mais seguro e democrático para todos. É claro que o capitalismo não está fazendo mais nenhuma dessas coisas. De fato, muitos dos seus defensores estão afastando-se da alegação de que se trata de um bom sistema e, em vez disso, recuam para a alegação de que é o único sistema possível — ou, pelo menos, o único sistema possível para uma sociedade complexa e tecnologicamente sofisticada como a nossa.
Mas como alguém poderia argumentar que os atuais arranjos econômicos são também os únicos que serão viáveis em qualquer possível sociedade tecnológica futura? O argumento é absurdo. Como alguém poderia saber?
É verdade que há pessoas que assumem essa posição — em ambos os lados do espectro político. Como antropólogo e anarquista, encontro tipos anticivilizacionais que insistem não só que a tecnologia industrial atual leva somente à opressão ao estilo capitalista, mas que isso deve necessariamente ser verdade para qualquer tecnologia futura e, portanto, que a libertação humana só pode ser alcançada voltando à Idade da Pedra. Nós não somos, na maioria, deterministas tecnológicos.
Mas as reivindicações da inevitabilidade do capitalismo têm de basear-se numa espécie de terminismo tecnológico. E por isso mesmo, se o objetivo do capitalismo neoliberal é criar um mundo em que ninguém acredite que qualquer outro sistema econômico possa funcionar, ele tem de suprimir não somente qualquer ideia de um futuro redentor inevitável, mas qualquer futuro tecnológico radicalmente diferente. No entanto, há uma contradição. Os defensores do capitalismo não podem querer convencer-nos de que a mudança tecnológica acabou — uma vez que isso significaria que o capitalismo não conduz ao progresso. Não, eles querem nos convencer de que o progresso tecnológico continua, que vivemos num mundo de maravilhas, mas que essas maravilhas assumem a forma de melhorias modestas (o iPhone mais recente!), rumores de invenções prestes a acontecer (“ouvi dizer que vão haver carros voadores muito em breve”), formas complexas de fazer malabarismos com informações e imagens, e plataformas ainda mais complexas para o preenchimento de formulários.
Não quero sugerir que o capitalismo neoliberal — ou qualquer outro sistema — possa ser bem-sucedido nesse sentido. Primeiro, há o problema de tentar convencer o mundo de que se está liderando o caminho no progresso tecnológico, quando você estiver impedindo-o. Os Estados Unidos, com a sua infraestrutura decadente, paralisia face ao aquecimento global e o abandono simbolicamente devastador do seu programa espacial tripulado, enquanto a China acelera o seu próprio programa, estão fazendo um trabalho de relações-públicas particularmente ruim. Em segundo lugar, o ritmo da mudança não pode ser retido para sempre. Avanços acontecerão; descobertas inconvenientes não podem ser permanentemente suprimidas. Outras partes do mundo menos burocratizadas — ou, pelo menos, partes do mundo com burocracias que não são tão hostis ao pensamento criativo — alcançarão lenta, mas inevitavelmente os recursos necessários para retomar de onde os Estados Unidos e seus aliados pararam. A Internet oferece, de fato, oportunidades de colaboração e divulgação que também podem ajudar a ultrapassar o muro. De onde virá o avanço? Não podemos saber. Talvez a impressão 3D faça o que as fábricas robóticas deveriam fazer. Ou talvez seja outra coisa. Mas vai acontecer.
Podemos nos sentir especialmente confiantes sobre uma conclusão: isso não acontecerá no quadro do capitalismo corporativo contemporâneo — ou de qualquer forma de capitalismo. Para começar a construir cúpulas em Marte, ou para desenvolver os meios para descobrir se existem civilizações alienígenas para contactar, teremos de descobrir um sistema econômico diferente. O novo sistema deve assumir a forma de uma nova burocracia maciça? Por que assumimos que deve? Só quebrando as estruturas burocráticas existentes é que poderemos começar. E se vamos inventar robôs que lavem a nossa roupa e arrumem a cozinha, então teremos de nos certificar de que tudo o que substitui o capitalismo se baseia numa distribuição muito mais igualitária de riqueza e poder — uma distribuição que já não contém nem os super-ricos nem os desesperadamente pobres dispostos a fazer o seu trabalho doméstico. Só então a tecnologia começará a ser orientada para as necessidades humanas. E esta é a melhor razão para nos libertarmos da mão morta dos gestores de fundos de hedge e dos CEOs — para libertarmos as nossas fantasias das telas nas quais esses homens as aprisionaram, para deixarmos a nossa imaginação voltar a ser uma força material na história da humanidade.
As imagens que ilustram o artigo são da série Andor – Uma história da Star Wars.
Traduzido por Marco Túlio Vieira a partir do original em inglês.






Eu gosto muito dessa conclusão, que já expressei da seguinte forma. A nossa espécie é interplanetária, ela tem capacidade de viajar e habitar outros planetas (Marte, por exemplo, já é habitada por robôs controlado por nós), no entanto, para seguir existindo e seguir seu rumo interplanetário ela precisa superar a forma capitalista de produção e estabelecer uma utilização eficiente dos recursos tanto humanos quanto tecnológicos. O filme Terra a Deriva trata dessa questão de uma maneira surpreendente. Por isso, gosto de texto. O que acho desnecessário é dizer que Marx e Engels apostaram numa mecanização sim ou sim… A teoria que eles foram voz principal mas que ultrapassa eles mesmos, deixa uma pista muito interessante para ler esse processo que é a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção. Em uma palavra, o capitalista alavancou forças produtivas inimagináveis, e fez isso alterando e instaurando no mundo todo uma nova forma de relação de produção (a separação dos meios de produção e da força de trabalho e a exploração através da extração de mais-valia). Ora, passado o impulso da alavanca, essas mesmas relações passam a ser um impedimento para o avanço das forças produtivas que agora podemos produzir e avançar. São justamente essas relações que temos que revolucionar. Obrigado pela tradução do texto.