Bernadet

Por Victor Vigneron

 

É verdade que você levará mais tempo para ler este comentário do que seria preciso para assistir ao filme Cama vazia (2023). Me ocorre, porém, que o curta-metragem dirigido por Fábio Rogério e Jean-Claude Bernardet não cabe propriamente nos seus cinco minutos e que estender sua duração nos ajuda a refletir sobre a recente morte de Bernardet. Pois o filme nos coloca diante de uma contradição: por um lado, nos educa contra a longevidade a todo custo, a vida nua; todavia, reitera a impressão de que Bernardet duraria para sempre e que, portanto, morreu cedo demais. Cama vazia leva o poder da invenção ao paroxismo e, apesar da imagem rebelde cultivada pelo co-diretor, revela a fidelidade de Bernardet à posição construtiva do intelectual moderno. Ou, mais precisamente: é justamente o descompasso expresso pela sobrevivência desse corpo construtivo em nosso tempo danificado que torna desmedidos os cinco minutos.

No rasto de sua experiência, Bernardet insistiu em situar um pensamento próprio ao corpo: “Minha bunda já se tinha levantado da poltrona. Foi no cinema Marabá, quando o Alien pula para fora do peito do homem” (BERNARDET, 2021, p. 38). É verdade, acrescenta, que o salto na poltrona diante de Alien, o oitavo passageiro (1979) foi reativo, “apenas um susto”. O reparo parece ecoar a ideia de que a configuração ideológica do aparato cinematográfico induz a um amortecimento da ação. Contudo, o episódio é evocado em perspectiva com o que ocorreria depois, como ponto inicial de um despertar. Décadas mais tarde, o caso do Marabá seria rememorado à luz do deslocamento da atividade crítica de Bernardet para seu próprio corpo, no contexto de sucessivos diagnósticos que o levariam de “uma experiência” (BERNARDET, 1996) à reflexão sobre o “corpo crítico” (BERNARDET, 2021).

A essa altura Bernardet daria vazão a uma coreografia, para a qual parece ter se preparado longamente (1) pela atuação inquieta em filmes como Anuska, manequim e mulher (1968), Orgia, ou O homem que deu cria (1970) e Ladrões de cinema (1977) e (2) pela longa aprendizagem sobre possibilidades de comunicação corporal, da dança ao grito (BERNARDET, 2021, p. 39-40)[1]. A atuação ganhou densidade coreográfica em sua última trajetória, marcada na perambulação pelos vãos da cidade (Fome [2015]), chegando à automutilação (#eagoraoque [2020], filme co-dirigido por Bernardet). O atentado contra o próprio corpo foi formulado na serena reflexão conjugal, interpretada por Bernardet e Helena Ignez em conversa na cama em Antes do fim (2017). Nas mãos de Bernardet, a edição do livro Carta a D. (2006, André Gorz) antecipa a ideia do suicídio como possibilidade de resistência, retomada em Cama vazia.

A voz de Ignez é, aliás, o primeiro som que ouvimos neste filme, antes ainda das imagens. Ela reitera, em tom crescente, seu “pavor da velhice”. Junto às palavras, adivinha-se o tempo decorrido no timbre da voz da jovem atriz por ocasião de Copacabana, mon amour (1970), como se seu eco permitisse recuperar o resto contido na passagem de um tempo a outro. A fala dá sentido à sucessão de imagens que ocuparão o registro visual do filme – uma série de fotografias que se sucedem em intervalos breves e irregulares, em geral sem concatenação com a banda sonora. Fotos com uma textura homogênea que, ao mesmo tempo, remetem a imagens analógicas de registro caseiro e, no entanto, enfatizam a luz fria, verde, do mundo hospitalar em que Bernardet ingressa. As imagens são acompanhadas por diferentes registros sonoros: a voz over, com o indefectível sotaque francês de Bernardet, tendo ao fundo uma música incidental, composta por Alessandro Santana. No último minuto temos uma transição clara: as imagens em sucessão dão lugar a uma única fotografia, da cama vazia no hospital, agora acompanhada pela canção “Vazio da morte”, composta por Kiko Dinucci.

Vale comparar a derradeira experiência de Bernardet com a trajetória final de Nicholas Ray. Pois na mesma época em que o primeiro saltava de susto no Marabá, Ray era objeto da polêmica experiência dirigida por Wim Wenders, Um filme para Nick (1980). Neste, a fixação do corpo moribundo pelo diretor foi levada a um ponto-limite, que ecoaria uma década mais tarde na reflexão de Ismail Xavier (2014) sobre a “obscenidade da morte” a propósito do crítico André Bazin. Mais que uma des-moralização da figuração da morte de lá para cá [2], já em 1980 o crítico Serge Daney (2007, p. 221-228) questionava a acusação de que Wenders teria rompido a reciprocidade do contrato fílmico ao insistir em filmar Ray quase até o fim; para ele, Wenders teria se imbricado numa temática recorrente nos filmes de Ray, ao promover o problema da filiação.

 

Bernadet

Em Cama vazia, enunciado e enunciação também nos afligem. Bernardet denuncia em seu discurso a indústria da longevidade que faz do corpo produto e fonte de riqueza de uma indústria à qual interessa apenas preservar a “bio”. Historicamente, as intervenções de Bernardet tendem a escamotear suas leituras, mas é possível identificar aqui um tema caro a Giorgio Agamben em sua reflexão sobre a “vida nua” (2002). A medicina, ou pelo menos aquela que tende ao nosso horizonte, prolonga indefinidamente o corpo – uma prótese do nada. O tema já havia sido abordado no início de O corpo crítico (BERNARDET, 2021), onde se acrescenta a descrição do labirinto burocrático que acompanha a decisão da recusa de tratamento (acrescente-se, porém, que há outras perspectivas médicas figuradas no livro).

Diante desse discurso, e ultrapassando sua versão em livro, Cama vazia funciona como reverso dessa prótese do nada ou, ainda, como uma contra-prótese, no limite daquilo que é possível fotografar (o tipo de contestação presente no filme é diverso da invasão “instagramável” de hospitais, empregada nos últimos anos pela extrema-direita brasileira, que se compraz em encenar sua própria força). Nesses termos, o filme comunica um mal estar que nos mobiliza na poltrona não de forma reativa mas de forma crítica, tal como Bernardet afirma que ocorreu a si diante do filme Jogo de cena (2007). O caráter construtivo da posição de Bernardet se revela, precisamente, pela insistência nessa potência crítica do cinema, situada ali onde Susan Buck-Morss (2009) denunciou o amortecimento da ação pelo prolongamento da percepção.

Pois o dispositivo presente em Cama vazia articula o enunciado a uma enunciação perturbadora, de modo que o gesto criador se torna visível junto àquilo que é mostrado. Se, por um lado, as fotografias sugerem a irreversibilidade do ingresso no hospital, a certa altura nos damos conta de que a circunstância do registro e o destino da personagem são coisas distintas. Para isso contribui a exploração fílmica de elementos (1) verbais (a menção explícita ao “suicídio consciente e lúcido”) e (2) visuais (Bernardet não é apenas registrado, as fotos também manifestam poses, arranjos de objetos, seleções de detalhes, uma cenografia do paroxismo). A própria dimensão fotográfica das imagens que se sucedem no filme é enfim perturbada pela longa exposição da cama, que, apesar da homogeneidade da textura em relação às imagens anteriores, fica no limiar entre fotografar e filmar o vazio[3].

Em sentido próprio, a canção de Dinucci menciona o desejo de companhia no vazio da morte. Sabemos que Bernardet não está sozinho, pois é buscado pelo olhar fotográfico. Mais discretamente do que ocorre na relação entre Nicholas Ray e seus alunos no filme We can’t go home again (1972-1976), Cama vazia dá indícios da presença de uma equipe[4]. Daí a dificuldade em definir um foco narrativo, não se sabe se o filme é construído na primeira, segunda ou terceira pessoa. É certo, porém, que alguns dos olhares lançados sobre a personagem se destacam e se prolongam em nossa memória, como a pose sorridente de Bernardet, vértice de fios e tubos – como que assumindo seu lugar em Alien. Sua presença é rompida, enfim, pela longa exposição da cama vazia, distendida de modo que podemos ouvir a canção de Dinucci (encurtada no filme, mas contendo toda a letra). Agora estamos sozinhos e conscientes do fato construído na elipse entre mostrar o paciente e mostrar a cama vazia. E no entanto Bernardet torna-se ainda mais vívido em nossa imaginação. Talvez a posição polêmica desse intelectual que por vezes demonstrou dificuldade para ponderar a singularidade de sua própria experiência, permitiu que ele se tornasse exemplar na hora da morte.

Ouvi de mais de uma pessoa que a primeira ocorrência após a notícia da morte de Bernardet foi o choque diante de algo que poderia nunca acontecer. À sua maneira, Cama vazia endossa essa percepção. Pois o que vemos em cinco minutos é a fidelidade a uma posição construtiva que atravessou décadas e que agora é refuncionalizada diante da reversão de expectativas que marcou a segunda metade do século XX. Uma passagem, em certo sentido, análoga àquela observada na obra de Chico Buarque e de Eduardo Coutinho a partir dos anos 1980. Pois a história à luz do fim do mundo deita suas raízes num tempo em que Bernardet já se insinuava nas frestas da figuração ambígua do progresso brasileiro em filmes como Arraial do Cabo (1959). Sobrevivendo à trajetória do intelectual moderno, Bernardet se situou, enfim, não como reprodutor cínico das formas de vida da classe média (uma forma eletiva de coma), mas aproximou-se de outra coisa, da experiência radical do nosso tempo inscrita no vazio da morte. Tudo isso no limite contemporâneo da atenção.

 

Bernadet

Notas

[1] A trajetória de Bernardet compõe uma pesquisa coreográfica mais ampla no cinema brasileiro, também expressa na ideia de “câmera na mão” do Cinema Novo.

[2] Objeto do interesse reiterado do diretor Cristiano Burlan sobre Bernardet, que se desdobra agora em Nosferatu (2025).

[3] Diferentemente do filme A pista (1962), onde uma sucessão de fotografias é brevemente rompida por um movimento, aqui a ausência de movimento sugere a solidariedade in extremis entre fotografia e cinema.

[4] Lembro da inesperada companhia que entra em cena no último capítulo do romance The Buenos Aires affair (1973, Manuel Puig) e que anula a terrível elipse antecipada pelo leitor.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer – o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

BERNARDET, Jean-Claude. A doença, uma experiência: ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

BERNARDET, Jean-Claude. O corpo crítico. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

BUCK-MORSS, Susan. A tela de cinema como prótese de percepção. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2009.

DANEY, Serge. A rampa: Cahiers du cinéma, 1970-1982. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

XAVIER, Ismail. “Apresentação” In. BAZIN, André. O que é cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 15-23.

 

As imagens que ilustram o texto são fotogramas do curta-metragem “Cama vazia”.

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