Por Ben Burgis e Michael Sechman

A desigualdade econômica tem várias origens. Um empresário pode prosperar enquanto outro mal consegue sobreviver, porque tem melhores contatos, melhores ideias ou simplesmente se esforça mais. Um trabalhador pode ter um emprego sindicalizado estável e bem remunerado, enquanto outro consegue uma renda com empregos temporários de meio período. Algumas pessoas podem ser mais ricas do que outras porque esbarram em algo valioso enterrado em seus quintais.

Contudo, uma afirmação fundamental que os socialistas sempre fizeram sobre as sociedades em que vivemos, é que a fonte mais importante da desigualdade capitalista realmente existente é a exploração. Intuitivamente, concebe-se que uma economia se baseia na exploração quando uma classe tem que trabalhar em benefício de outra. Há muito tempo socialistas fazem agitação comparando a exploração ao roubo, à escravidão ou à extorsão.

Mas o que é exatamente exploração? É um conceito mais específico do que opressão econômica. A população desempregada e sem-teto das grandes cidades é economicamente oprimida pelos donos dos meios de produção (que os excluem completamente do sistema e, portanto, os empobrecem), mas não é explorada. Na verdade, esse é o problema. Como a economista de esquerda Joan Robinson memoravelmente apontou: “A miséria de ser explorado pelos capitalistas não é nada comparada à miséria de não ser explorado”. As relações de exploração envolvem um tipo muito específico de pareamento antagônico dos interesses do grupo explorador e do explorado, e nem todas as desigualdades (e nem mesmo todas as desigualdades escandalosamente injustas) se encaixam no perfil.

Por outro lado, porém, “exploração” é um conceito mais amplo do que “exploração de trabalhadores por capitalistas por meio de relações de emprego”. Senhores feudais exploravam servos, por exemplo. Quando Marx argumenta que a classe trabalhadora é sistematicamente explorada em O Capital, ele se apoia fortemente nessa analogia.

Relações de exploração, em particular, serão importantes para a teorização social, em parte porque podem ser importantes para a compreensão e previsão da dinâmica das sociedades de classes. Grupos explorados e exploradores estão presos em relações de conflito, definidas por dependência assimétrica (os exploradores precisam das pessoas que estão explorando, mas não o contrário). A expectativa, pelo menos, é que os teóricos aprendam algo importante sobre quais são os interesses de um grupo, e quais estratégias estarão disponíveis para ele na busca desses interesses, uma vez discernindo se eles são exploradores, explorados ou oprimidos em formas que não envolvam exploração.

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Então, quais mecanismos podem nos ajudar a diferenciar desigualdades decorrentes da exploração (ou de qualquer tipo) de outras fontes de desigualdade (ou mesmo de outros tipos de opressão econômica)? O economista e pensador marxista analítico John Roemer propõe um teste de três partes em seu livro de 1996, “Egalitarian Perspectives”. Segundo Roemer, o grupo A explora o grupo B se, e somente se:

(i) se B se retirasse da sociedade, levando sua quota per capita de propriedade alienável da sociedade (isto é, bens produzidos e não produzidos), e com seu próprio trabalho e habilidades, então B estaria melhor (em termos de renda e lazer) do que está na situação atual;

(ii) se A se retirasse nas mesmas condições, então A estaria pior (em termos de rendimento e lazer) do que está atualmente;

(iii) se B se retirasse da sociedade com as suas próprias posses (não a sua quota per capita), então A estaria pior do que está atualmente.

Mais tarde, em resposta a uma objeção feita por Erik Olin Wright, Roemer reforçou a condição (iii). A versão revisada é que:

(iii) [a vantagem comparativa de A revelada em (i) e (ii) advém] “em virtude do trabalho” [de B]

Tudo isso pode ser inicialmente confuso, especialmente para leitores não familiarizados com a maneira de Roemer se expressar (que frequentemente combina elementos de sua formação acadêmica como economista com o jargão da filosofia analítica).

Em primeiro lugar, Roemer obviamente sabe que as classes exploradas normalmente não conseguem se retirar da sociedade. Elas não se submeteriam à exploração se pudessem!

Em segundo lugar, observe atentamente a parte “levando sua quota per capita”. Se os servos constituíssem, digamos, 90% da sociedade feudal, então os imaginamos de alguma forma “retirando-se” juntamente com 90% das terras aráveis, 90% dos arados, 90% dos alimentos já cultivados para que pudessem continuar a se sustentar enquanto aguardavam a chegada das próximas colheitas, e assim por diante.

Talvez uma maneira mais clara de transmitir seu ponto de vista seria reformulando suas condições assim:

(i) Se A desaparecesse amanhã, juntamente com a sua quota per capita de propriedade alienável da sociedade (isto é, bens produzidos e não produzidos), e com seu próprio trabalho e habilidades, então B estaria melhor (em termos de renda e lazer) do que está na situação atual;

(ii) se B desaparecesse amanhã nas mesmas condições, então A estaria pior (em termos de rendimento e lazer) do que está atualmente;

(iii) A posição melhor de A é resultado do trabalho de B.

Esta é uma definição totalmente adequada de exploração? Não responderemos essa questão aqui. No mínimo, porém, (i)-(iii) são condições plausivelmente necessárias para a exploração. Certamente, é difícil imaginar um exemplo claro de exploração que não preencha esses requisitos. Acreditamos também que a análise de Roemer ajuda a revelar algo importante sobre a dinâmica da opressão econômica no mundo ao nosso redor.

Por exemplo, se a classe capitalista desaparecesse amanhã (juntamente com uma parcela dos recursos da sociedade correspondente não às suas posses atuais, mas à sua parcela da população), permitindo assim uma transição indolor para a propriedade coletiva da grande maioria dos meios de produção, a classe trabalhadora estaria em melhor situação. Se a classe trabalhadora desaparecesse amanhã, juntamente com sua parcela per capita, isso seria um cataclismo para a classe capitalista. Entretando, o mesmo não se aplica a todas as populações economicamente oprimidas. Se aquela população urbana “desempregada e sem-teto”, que mencionamos antes, desaparecesse magicamente amanhã, mesmo juntamente com os 0,2% dos meios de produção correspondentes à sua parcela da população, a reação de nossos senhores capitalistas seria o alívio de que um problema social foi resolvido sem dor. Raciocínios semelhantes se aplicam a populações que podem não estar vivendo nas ruas, mas precisam de apoio estatal porque deficiências cognitivas ou físicas graves as impedem de serem empregadas de forma costumeira pelos capitalistas.

E exemplos ainda mais sombrios surgem quando deixamos de lado a situação interna estadounidense e passamos a pensar nas economias políticas de outras nações.

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Neste ponto é útil complementar a argumentação de Roemer com uma distinção proposta por Karl Marx no final de O Capital, Vol. 1, e expandida por Karl Kautsky. Marx encerra o volume com um capítulo sobre colônias, onde especifica que está falando apenas de colônias “verdadeiras”. Ele não desenvolve a distinção, mas Karl Kautsy a aborda em vários lugares, inclusive em seu livro de 1907, “Socialism and Colonial Policy” . Lá, ele escreve:

“Se quisermos investigar a importância da política colonial para o desenvolvimento das forças produtivas da humanidade, há uma distinção clara que devemos fazer. Existem dois tipos de colônias tão diferentes quanto o fogo e a água. Quem as confunde, em vez de distingui-las claramente, jamais alcançará uma compreensão clara da questão colonial”.

O primeiro tipo, que corresponde à fala de Marx sobre colônias “verdadeiras”, é a “colônia de trabalho”. A segunda é a “colônia de exploração”.

“A colônia de trabalho é formada por membros das classes trabalhadoras da pátria mãe: artesãos, assalariados e, em particular, camponeses. Eles abandonam sua terra natal para escapar da pressão econômica ou política e fundar um novo lar, livre dessa pressão. Tal colônia se baseia em seu próprio trabalho, e não no trabalho de nativos subjugados.

“Por outro lado, uma colônia de exploração é estabelecida por membros das classes exploradoras da pátria mãe, onde o saque não lhes foi suficiente, e que, portanto, aspiram a ampliar o campo de sua exploração. Eles vão para as colônias não para encontrar um novo lar, mas para abandonar a colônia quando já tiverem se aproveitado o suficiente dela; não para escapar da pressão interna, mas para se tornarem capazes de exercer uma pressão ainda maior na pátria. A utilidade econômica de tal colônia não reside no trabalho dos colonos, mas na pilhagem ou no trabalho forçado dos nativos”.

Aproximadamente, essa é a distinção apontada por acadêmicos de esquerda que falam sobre um subconjunto específico de colonialismos como “colonialismo de assentamento”. Ele corresponde ao subconjunto de “colônias de trabalho” de Kautsky. Embora essa forma de colonialismo seja uma parte importante da história de muitas sociedades no mundo hoje (como os Estados Unidos), o único projeto de colonialismo de assentamento em andamento no mundo contemporâneo é Israel.

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Não concordamos necessariamente com as conclusões normativas de Kautsky, quando afirma sobre colônias de trabalho que, embora “deva-se muitas vezes condenar a maneira como os nativos são tratados”, a construção inicial de tais colônias não precisa necessariamente ser condenada “por princípio”. Também não concordamos com as frações da esquerda ativista que se agarraram mais pesadamente ao discurso sobre “colonialismo de assentamento” (e muitas vezes parecem sugerir que cada judeu israelense é um “colono” com menos conexão inata com a terra do que os palestinos, e que até mesmo nos piores casos flertam retoricamente com a insinuação de que seria justo se a direção da limpeza étnica fosse de alguma forma revertida para que pudéssemos “transformar Israel novamente na Palestina”). Fincaríamos nossa bandeira em princípios democráticos-igualitários básicos. A razão pela qual o sionismo é grotesco é precisamente porque os direitos de ninguém devem depender de onde seus ancestrais viveram , e nós aplicaríamos esse princípio de uma forma amplamente universalista . Não pode existir pessoa sem o direito de viver no país em que nasceu, ponto final. E a solução mais justa para o conflito israelense-palestino seria um único Estado democrático laico com direito de retorno para refugiados palestinos e direitos completamente iguais para judeus, palestinos, trabalhadores migrantes tailandeses e todos os demais. Mas essas questões normativas não têm a ver com a questão descritiva sobre se a distinção de Kautsky pode iluminar algo importante sobre a economia política dessa situação, a montante da realidade horripilante do primeiro genocídio transmitido ao vivo do mundo.

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Israel é frequentemente comparado à África do Sul do apartheid por antissionistas de esquerda. Um de nós escreveu muitos artigos que empregaram exatamente essa analogia, e continuamos a pensar que, em muitos aspectos, ela é adequada. Mas há uma diferença crucial entre os dois casos.

Nem a República da África do Sul do final do século XX nem o Estado de Israel do século XXI são colônias no sentido literal. Ambos haviam conquistado a independência da Grã-Bretanha em meados do século XX. Mas, em ambos os casos, a elite econômica dentro do grupo étnico dominante seguiu uma política de controle sobre uma etnia subjugada, correspondendo estreitamente a dos dois tipos de colônia de Kautsky. A África do Sul funcionou como uma colônia de exploração, com as elites brancas dependendo da mão de obra explorada da classe trabalhadora negra. Israel sempre funcionou como uma colônia de trabalho, expulsando a força de trabalho palestina e tentando depender o máximo possível da classe trabalhadora judaica israelense.

Mesmo em Israel/Palestina, onde há aproximadamente o mesmo número de judeus e de palestinos (sem falar na África do Sul do apartheid, onde a população negra constituía uma grande maioria), os dois primeiros critérios de Roemer são verificados quando consideramos a relação entre a classe dominante branca/judaica e a maior parte da população negra/palestina. Se o grupo subjugado desaparecesse amanhã, juntamente com sua quota per capita dos recursos da sociedade, seria um desastre para os governantes, enquanto, vice-versa, melhoraria muito as perspectivas dessa população. Tudo isso é apenas uma maneira de dizer que os meios de produção estão distribuídos de forma desigual entre essas duas populações, e o grupo excluído é grande. (Da mesma forma, em um cenário distópico em que a automação chegasse ao ponto em que, digamos, 50% da população estadounidense estivesse desempregada e vivendo nas ruas, (i) e (ii) se aplicariam à relação entre esses ex-trabalhadores excedentes e a classe capitalista). Mas a diferença crucial é que (iii) se aplica ao caso sul-africano, mas não se aplica a Israel/Palestina. A fonte da desigualdade não é, em grande parte, o enriquecimento de israelenses ricos com o trabalho de palestinos.

É por isso que, apesar de todas as brutalidades do apartheid sul-africano, o Estado sul-africano nunca intensificou sua opressão contra a população negra ao nível de frenesi genocida que vemos todos os dias em relatos de Gaza. Nunca passaram pelos bantustões bombardeando todas as igrejas, todas as escolas, todos os prédios de apartamentos e todos os hospitais, de modo que as imagens aéreas da devastação “cada vez mais parecem a superfície da lua”, como um de nós escreveu em outro lugar neste fim de semana sobre Gaza. Nunca houve pesquisas em que a maioria dos sul-africanos brancos apoiasse a remoção forçada de todos os negros do país. O presidente sul-africano P. W. Botha nunca engendrou uma fome que produzisse imagens que lembrassem Auschwitz, numa tentativa de pressionar a população negra a simplesmente abandonar o país aos milhões e deixá-lo para os brancos.

O colega de Roemer, Erik Olin Wright, expôs o ponto de forma contundente em seu livro Class Counts. “Não foi por acaso”, escreveu ele, que a cultura estadounidense historicamente incluiu “o ditado abominável: ‘O único índio bom é um índio morto’, mas não ‘o único trabalhador bom é um trabalhador morto’ ou ‘o único escravo bom é um escravo morto’”.

Esse é um exemplo particularmente marcante da importância explicativa e preditiva de compreender quais relações sociais se baseiam (ou não) na exploração. E o resultado normativo é chocante.

A exploração econômica é profundamente questionável em si mesma e, dependendo das particularidades locais, pode levar a resultados como fábricas clandestinas ou violentas repressões a greves; ou até mesmo horrores como o incêndio da Triangle Shirtwaist ou o desabamento do Rana Plaza em Bangladesh. Como socialistas, construir um mundo livre de exploração é o telos definidor de nossa política. Mas, enquanto vivermos em uma sociedade de classes, isso está longe de ser o pior destino que pode recair sobre populações economicamente oprimidas.

Transformar Israel de um etnoestado excludente em uma democracia liberal normal (ou seja, implementar uma “solução de um Estado”) significaria, até que o próprio capitalismo seja superado, integrar os palestinos às estruturas normais de exploração capitalista. E por pior que isso possa ser, a ironia sombria da situação é que, neste caso, transformar sua forma de opressão em exploração não seria apenas uma melhoria, mas um imperativo moral urgente.

Traduzido por Leo Vinicius a partir do original: https://benburgis.substack.com/p/john-roemer-karl-kautsy-and-the-political

2 COMENTÁRIOS

  1. 20% dos cidadãos de Israel são palestinos/árabes, descendentes dos que conseguiram ficar na Nakba. O texto não fala desses, mas do que estão em Gaza e Cisjordânia, e não tem cidadania israelense. Acho que pra pensar as tendências postas, relativamente claras nos EUA do Trump, devemos encarar que até mesmo parte daqueles que são explorados estão sendo vistos como “índio” ou “bandido” (“só são bons mortos”). Supremacismo étnico e xenofobia como forma de direcionar ressentimentos que tem origem no campo econômico para objetos não econômicos. 56% dos judeus israelenses acham que os árabes israelenses deveriam ser expulsos. Não duvido que o governo israelense seria capaz de expulsa-los se tiver condições para isso, mesmo esses árabes tendo papel na economia israelense. Estamos num momento de ascensão do fascismo e da extrema direita em que a ideologia está enfrentando a racionalidade econômica (vide expulsão de imigrantes do EUA, que tem se chocado com interesse de setores empresariais nos EUA).

  2. O texto é muito interessante e traz muitas questões pra se pensar. Mas uma coisa ficou martelando minha cabeça:

    “Transformar Israel de um etnoestado excludente em uma democracia liberal normal (ou seja, implementar uma “solução de um Estado”) significaria, até que o próprio capitalismo seja superado, integrar os palestinos às estruturas normais de exploração capitalista. E por pior que isso possa ser, a ironia sombria da situação é que, neste caso, transformar sua forma de opressão em exploração não seria apenas uma melhoria, mas um imperativo moral urgente.”

    Eu concordo que a solução de um único Estado com palestinos e israelenses vivendo juntos e sem conflitos étnicos seria de fato uma pauta extremamente avançada. Mas basta pensarmos mais um pouco e a gente percebe a impossibilidade disso. E no entanto, há entre os que reivindicam uma perspectiva revolucionária (e entre os que não reivindicam também) uma dedicação teórica e argumentativa para insistir nessa questão. Ora, se for para apontar para utopias, não seria melhor dedicarmos nossas forças para defender uma solução realmente radical e revolucionária, apontando para nossa utopia internacionalista proletária, ao invés de fazer coro de defesa da utopia nacionalista burguesa?

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