Por Observatório da Cultura do Brasil
Análises realizadas a partir de auditorias de órgãos de controle como TCU (Tribunal de Contas da União) e CGU (Controladoria Geral da União), outros documentos públicos, reportagens, relatos de testemunhas e estudos, chegaram a uma apuração que remonta a um quadro que revela um rearranjo pouco usual na forma como o Ministério da Cultura (MinC) estruturou sua área de tecnologia nos últimos anos através de contratos e convênios ineficazes, sem economicidade e repassados sem licitação para aliados.
Segundo apuração jornalística que chegou a um dossiê, estes agentes políticos externos passaram a ter influência em informações estratégicas do Ministério da Cultura, tais como o banco de dados, o sistema de cadastro e prestação de contas, de consulta e transparência das informações, mapas digitais, sites e arquitetura de software digital da pasta (em conclusões do estudo do Observatório da Cultura do Brasil, realizado em 2025).
Auditorias da CGU sobre o MinC, referentes aos exercícios de 2015 (Relatório nº: 201601439) e 2016 (Certificado 201700874) trazem achados sobre convênios para prestação de serviços de Tecnologia da Informação (TI) na categoria Termos de Execução Descentralizada (TEDs) com universidades (UFPR, UFABC, UFPB e UFG), negociados entre 2008-2010, 2015-2016 (retomando em 2023). Os convênios firmados entre 2015 e 2016 somam um pacote de cerca de R$ 4,3 milhões para desenvolver serviços digitais e o (naquela época) novo site do CNPC – Conselho Nacional de Política Cultural, além de novos convênios assinados na atual gestão, com montantes em milhões, ainda em fase de apuração.
Entre os principais problemas, segundo auditorias da CGU estavam o fato de que os projetos não tinham objetos claros nem planos de trabalho, não previam multas, careciam de controles, não havia estudo prévio de viabilidade, falta de critérios de economicidade, falta de sanções claras por descumprimento e com fragilidades de prestação de contas. Por fim, as auditorias apontam os resultados como “sem economicidade ou eficácia”. O ministério pagou caro por soluções que não entregaram o que prometiam, e ainda assim abriu portas sensíveis da sua infraestrutura para aliados.
A pasta desembolsou cerca de R$ 4,3 milhões nestes convênios por sistemas que apresentaram resultados limitados, ao mesmo tempo em que ampliou o acesso de atores externos a fluxos internos de informação. Quando se segue o rastro desses agentes, a partir do começo dos anos 2000, ficam tênues as fronteiras entre prestação de serviços, atividades de mobilização digital, articulação cultural, representação estadual do MinC, ativismo nas redes sociais, “consultoria técnica”, gestão de banco de dados e informações, militância política governamental, formulação de políticas culturais, captação de recursos de editais e atuação política, ou seja, atuando em todas as posições, numa confusão entre público e privado.
A Rede Livre funciona como uma malha tecnológica que conecta iniciativas culturais, redes de comunicação e projetos de incidência social. Em depoimentos aos quais a reportagem teve acesso, seu coordenador descreve o grupo como uma “organização política”, ainda que sua apresentação pública seja a de uma plataforma de serviços digitais. Estranhamente, no site existem doações para sua construção, e até campanhas coletivas para sustento do empreendimento.
Seu domínio (redelivre.org.br) engloba diversas iniciativas, entre elas, o LAB Cultura Digital, projeto que funciona dentro da própria Rede Livre, agraciado por convênio TED na UFPR (conforme relatado na auditoria nº 201601439 da CGU), tendo a Rede Livre e o Lab Cultura Digital o mesmo coordenador, que hoje está à frente do Comitê de Cultura do Paraná. Um percurso institucional que, no mínimo, suscita questionamentos sobre compatibilidade de funções e conflitos de interesses. Entre outras iniciativas conectadas ao domínio da Rede Livre no ambiente virtual (muitas iniciativas no mesmo endereço físico, no bairro Hugo Lange, em Curitiba), estão:

Há ainda registros na imprensa em reportagem publicada na Folha de Londrina em 2023 com críticas envolvendo a Rede Livre, o Lab Cultura Digital (ambos questionados na matéria sobre problemas envolvendo a produção do site do CNPC) e o Soy Loco Por Ti, que “à luz da teoria política são reconhecidos aparelhos ideológicos”, conforme explica a reportagem. Outra reportagem, no Le Monde Diplomatique Brasil em 2022, confirma as conexões entre estes agrupamentos e coletivos. Enquanto uma reportagem do Estadão em 2024, cita o SoyLocoPorTi como ONG que coordena o Comitê de Cultura do Paraná.
Dentro desse ecossistema, estão inseridos os coletivos ou organizações que fazem parte do núcleo gestor da Rede Livre: Mutirão, Hacklab, SoyLocoPorTi, Mídia Ninja e Fora do Eixo. Este último, formado em 2005, teve grande atuação nas jornadas de junho de 2013, quando lançou uma de sua rede de comunicação Mídia Ninja, braço de jornalismo ativista midiático. O FdE já foi descrito pela grande imprensa como uma rede de coletivos de ativistas e produtores culturais que surgiu para articular a produção independente, conectando artistas, produtores e eventos. Conexão atenuada por meio de festivais (que captam recursos públicos de editais de cultura) ligados a uma de suas iniciativas, a Abrafin – Associação Brasileira de Festivais Independentes, que em seu site se apresenta com uma iniciativa com “o objetivo de dialogar com o poder público ações em favor do segmento de música ao vivo”.

No entanto, uma série de polêmicas envolveu tanto o Fora do Eixo (vide Dossiê no Passa Palavra) quanto a ABRAFIN, como por exemplo o não pagamento de cachês de artistas, mesmo em festivais agraciados com recursos públicos em editais (tema tratado na “carta aberta aos músicos e artistas”, publicada no site de música Scream & Yell, 2010), acusações de “trabalho semalhente à escravidão”, entre outros episódios que apontam indícios de utilização questionável de recursos públicos.
Esses agrupamentos iniciaram sua inserção institucional junto ao poder público federal através do Ministério da Cultura, tendo mais atuação em 2015, segundo a Folha de São Paulo, apontando práticas do FdE dentro do Ministério da Cultura, como dar expediente dentro do MinC (sem serem funcionários, nem terem qualquer vínculo formal). No ano seguinte, convênios na modalidade TED de TI foram firmados com universidades, permitindo que estruturas tecnológicas do MinC fossem executadas por laboratórios vinculados a integrantes dessas redes.
Um dos convênios, firmado com a UFPR, tinha como objetivo a construção do site do CNPC – Conselho Nacional de Política Cultural, em 2016, no valor de R$ 1,4 milhão, sendo intermediado por um responsável técnico do Lab Cultura Digital (o mesmo da Rede Livre e do Comitê de Cultura do Paraná) que, segundo documentos, negociou aspectos do convênio como se integrasse o quadro do próprio Ministério, sendo ao final o próprio beneficiário dos recursos (algo vedado em leis de licitações). Quando um conselheiro levantou dúvidas sobre a condução do projeto, enfrentou constrangimentos, retaliações políticas e dificuldades para apresentar formalmente seus apontamentos na plenária do Conselho após manobra política dos comissionados no MinC (situação registrada no Mandado de Segurança MS 22794 no STJ). Anos depois, as denúncias do conselheiro foram confirmadas pela auditorias da CGU e do TCU (que foram publicizadas neste ano de 2025 em estudo do Observatório da Cultura do Brasil sobre o MinC), que trouxeram achados sobre falhas estruturais nos TEDs de TI firmados com as universidades, apontados como “sem economicidade ou eficácia”. Em 2023, após denúncia do caso em reunião de conselheiros, o site do CNPC saiu do ar por um mês. Embora o ministério tenha atribuído o fato a ataque hacker, reportagens levantaram suspeita de possível apagamento de dados relacionadas ao convênio. Tempos depois, o site foi alienado, e o CNPC voltou a ter páginas dentro das estrutura gov.br.
No caso do Paraná, com base em informações obtidas, especula-se que há indícios de que parte dos recursos destinados ao convênio apoiou (financiou direta ou indiretamente) iniciativas políticas, como a vinda do ex-presidente uruguaio José Mujica a Curitiba, um evento chamado Circo da Democracia (ambos em 2016, em que o nome do Lab Cultura Digital aparecia como realizador em materiais de divulgação) e uma campanha de candidato a reitoria na UFPR.
Mesmo entre as gestões do governo federal de 2016 a 2022, as articulações dos agrupamentos continuaram avançando. Em 2020, durante a Conferência Popular de Cultura, declarações proferidas pelo líder do Fora do Eixo, Pablo Capilé, sugerem o uso estratégico de recursos da cultura, especialmente da LAB (que era assistencial e emergencial durante a pandemia de Covid-19), como combustível para a disputa eleitoral de 2022. O fato, que ocasiona um possível desvio de finalidade da verba emergencial (em todo Brasil, já que são centenas de coletivos espalhados que integram estas redes), tema que foi abordado em matéria publicada no Passa Palavra.
As conexões se adensam quando se observa a atuação dessas mesmas redes na aplicação da Lei Aldir Blanc (LAB, criada para socorrer trabalhadores da cultura durante a pandemia) no Paraná, descrita na série “A Crise da Cultura” no Le Monde Diplomatique Brasil com cobertura na imprensa. Núcleos ligados à Rede Livre como Rede Coragem (coragem.redelivre.org.br) e Fórum de Emergência Cultural (observatorio.redelivre.org.br), com sites hospedados na Rede Livre), participaram da formatação de editais em reuniões com órgãos públicos de cultura e, mais tarde, apareceram entre os principais premiados. Estudos mostram concentração expressiva de recursos em poucos proponentes, em grande parte localizados em bairros nobres de Curitiba, enquanto trabalhadores vulneráveis ficaram à margem do recebimento de recursos.
Em 2024, uma reportagem do Estadão revelou a existência do chamado “gabinete da ousadia”, grupos de influenciadores e coletivos digitais que atuam politicamente na comunicação em redes sociais em prol do governo com recursos da SECOM. Fontes apontam que agentes atuaram em redes políticas anteriores (citados nesta reportagem) participaram dessas mediações de narrativas de guerra cultural e polarização política como exército digital, em ações descentralizadas de propaganda governamental nas mídias sociais. O mesmo jornal noticiou contradições no programa de Comitês Estaduais de Cultura, apontando que essas estruturas passaram a beneficiar organizações e coletivos com vínculos políticos com o partido do governo. No Amazonas, o Comitê de Cultura usado para as eleições de 2024, foi descredenciado pelo Minc. No Paraná, em caso ainda mais grave, o MinC não reagiu mesmo com as vinculações reveladas de que o comando do Comitê de Cultura do Paraná ficou com um de seus articuladores mais conhecidos, que coordenou a Rede Livre e o Lab Cultura Digital, sendo candidato nas eleições de 2024, utilizando comitê eleitoral que funcionava no mesmo endereço do comitê de cultura do MinC. Episódio que reforça o padrão de repetição dos mesmos atores e conexão com agrupamentos de apoio com agenda governamental
O padrão que emerge ao se analisar auditorias, depoimentos e demais documentos é o de uma estrutura com elevado grau de integração interna e externa, ocasionando evidentes conflitos de interesses: convênios de TI alimentam laboratórios ligados a redes culturais; essas redes operam plataformas digitais do MinC; as plataformas influenciam a formulação de políticas públicas e editais; os editais financiam coletivos que participaram dessa mesma cadeia decisória; e esses coletivos, por fim, atuam na comunicação pública e política governamental em ambientes digitais.

Do ponto de vista legal, ainda faltam investigações conclusivas das autoridades competentes que carimbem esse arranjo como ilícito. Mas, sob a ótica da ética pública, da impessoalidade e do interesse coletivo, a pergunta se impõe: é aceitável que grupos que controlam sistemas, dados e fluxos digitais do Estado sejam, ao mesmo tempo, beneficiários recorrentes de verbas públicas, participem da formulação de políticas, operem campanhas e façam militância orgânico governamental e partidário de um projeto de poder?
Quando um modelo de serviço de TI de um órgão público escolhido sem estudos prévios, sem sanções por descumprimentos e sem garantias de economicidade transfere recursos e informação estratégica a um ecossistema politicamente identificado, não estamos apenas diante de um problema técnico. Estamos diante da hipótese incômoda de um Estado hackeado por dentro. Não por inimigos externos, mas por aliados que aprenderam a usar a nuvem pública como extensão e subsistência de sua própria nuvem ativista.
O dossiê completo e documentos da apuração podem ser acessados neste link.





