Por Charles Júnior, Antônio Carlos e Pedro Seeger

Era um efervescente outubro de 1881 na capital do Império tupiniquim, em meio a um novo sistema eleitoral, debates abolicionistas e manifestações nas ruas. O Império estava ruindo. Já no Morro do Livramento, centro da cidade, Machado de Assis expressara o sentimento do imperador através do conto O Alienista [1].

No conto, Dr. Simão Bacamarte decide internar todos que considerava loucos. Chegando a querer internar a cidade inteira, exceto a si próprio. No final das contas, ou todos estavam loucos ou só ele seria o desajustado. Mais uma vez, a arte expressava a vida.

Convenhamos, comparando com os acontecimentos da política mundial contemporânea seu conto seria bem menor que a realidade. Nos EUA, nosso amigo laranja vem matando a pau nas taxações de pessoas, países (empresas concorrentes) e políticos. Para alguns o pato estaria insano.

Sim, esta é a forma como aparecem as atitudes de Trump e também nos mostra a limitada capacidade de observação do mundo pela esquerda democrática e outros reformadores sociais, os adeptos de que apenas a forma em sua simplicidade revela a totalidade das relações sociais (se fosse assim o papel da ciência seria nulo) [2]. Por isso, importam mais os escândalos pessoais, os berros e o teatro do que as intrínsecas relações na luta de classes mundial. Já nos avisava nosso amigo Zé: “depois do período macarthista nos EUA [e no ocidente] a política tornou-se apenas uma monótona sucessão de fofocas”.

Inversamente, em nosso último material demonstramos que Trump foi um cadim melhor sucedido que seu antecessor, o decrépito Biden; que as tarifas são utilizadas de tempos em tempos nos EUA e Trump é sim a aposta da classe dominante estadunidense — sempre tendo em vista que o Capital é global, mas a burguesia é nacional.

Mas a pergunta que fica é: mesmo taxando boa parte das economias do mundo, mandado a polícia intervir em cidades importantes, demitindo trabalhadores do Estado em massa (junto a eles a chefe de estatísticas do Departamento do Trabalho), mediando guerras, explodindo barquinhos e ameaçando invadir a Venezuela, brigando e desbrigando com gregos e troianos porque o problema da estagnação (e da ingovernabilidade) da maior economia do planeta continua?

Ou seja, onde está seu voo de condor na maior economia do planeta Sr Bacamarte?

Para finalizar essa introdução, no conto machadiano, Dr. Bacamarte acaba descobrindo que o louco era ele próprio e determina sua própria internação. Na vida real, nosso Alienista de Washington também está tendo um momento de lucidez.

As razões do irracional

Até mesmo o irracional tem sua racionalidade. Trump incorporou Dr. Bacamarte não à toa, no atual ciclo econômico ele enfrenta um contexto de economia estacionária , sem os mesmos instrumentos dos ciclos econômicos anteriores para se defender, pois a economia dos EUA tem graves problemas de dívida pública, déficit orçamentário e da conta-corrente. Problemas esses herdados das saídas das crises anteriores, restou a Trump, como diz o jargão “trocar a roda com o carro andando”.

Side note: a bola de neve que Trump enfrenta hoje se inicia com a chamada crise das empresas ponto.com, na virada do milênio. Esta marca um ponto importante para nós — naquele ano tivemos a volta das crises econômicas similares às que ocorriam no período anterior a segunda guerra mundial, desde então, a cada nova crise cíclica, a próxima é sempre pior.

Assim, as tentativas de fugas clássicas para o estado atual da economia americana vêm de longa data. No entanto, agora nada parece funcionar. Guerras, comerciais e bélicas, caça às bruxas com o ICE e injeção de bilhões no mercado para segurar a chegada do urso em Wall Street.

Tudo isso havia segurado a pletora de capital no coração do sistema, mas em alguma parte ela sempre estoura. E quem está pagando o pato (sic) desta vez são os derrotados da guerra da Ucrânia, a Alemanha e o resto da OCDE [3]. A corrida armamentista que adiantamos em junho é um sinal da possível derrocada do bloco europeu: tende a retirar direitos, intensificar a exploração dos trabalhadores, aumentar impostos e rasgar dinheiro para tentar segurar seu declínio.

Voltando aos EUA, tivemos a maior paralisação do Estado Americano na história. “Ele ocorreu pela falta de acordo entre Republicanos e Democratas no Senado, que precisa de três quintos dos votos da Casa para avançar em matérias relativas ao orçamento.” Paralisou boa parte da máquina estatal estadounidense. Foi tão surpreendente que paralisou até nossa análise (risos). Os dados não foram publicados na data prevista, quiçá organizados ou metrificados pelas agências responsáveis. Mas agora saiu. Vamos a eles:

Tabela 1. Indústria de Bens duráveis nos EUA

Produtividade Produção Horas Trabalhadas Remuneração por hora Custo Unitário do Trabalho
2024 0.4 -1 -1.5 4.4 3.9
2025 IT 6.6 7.2 0.6 7.1 0.5
IIT 3.2 3.5 0.3 4.1 0.9

Fonte: BLS

Tabela 2. Indústria de Bens não duráveis nos EUA

Produtividade Produção Horas Trabalhadas Remuneração por hora Custo Unitário do Trabalho
2024 0.4 0.2 -0.1 2.8 2.4
2025 IT -0.2 -0.2 0.0 4.8 5.0
IIT 1.9 1.3 -0.6 5.1 3.1

Fonte: BLS

No estado estacionário, os indicadores de produção e produtividade crescem em ritmos muito baixos, próximos de zero, a manufatura funciona a passos de siri, apenas pra não afundar. Porém, essa é uma situação que não pode durar muito tempo e é exatamente o problema que enfrenta a economia reguladora do sistema global.

No ano de 2024 a produtividade de manufatura de bens duráveis [4] cresceu míseros 0.4% e a produção ficou abaixo de zero, situação que observamos de maneira mais clara desde 2023. Porém, nos dois primeiros trimestres de 2025, os indicadores ficaram bem acima dos anos anteriores, como podemos ver na tabela 1. Produtividade e produção com robustos crescimentos! Muita atenção, como dizia o saudoso Silvio Luiz “OLHO NO LANCE!” O custo unitário do trabalho apresentou um crescimento bem abaixo do ocorrido nos últimos anos. Afinal, o que esses dados representam?

Existem duas hipóteses em discussão: seria a elevação da produtividade, aumento da produção e diminuição do ritmo de crescimento do custo unitário um efeito da implementação da IA nas empresas e/ou seria apenas um VOO de galinha, um último suspiro antes do afundamento da economia reguladora. Em defesa da primeira hipótese temos vistos estudos e dados de empresas, como o resumo de um estudo do MIT publicado na revista Exame, que diz :

“Os pesquisadores identificaram duas camadas de risco. A parte mais visível, associada a demissões e mudanças em tecnologia e TI, responde por 2,2% da exposição salarial, cerca de US$ 211 bilhões. A maior parte está em funções rotineiras de RH, logística, finanças e administração, que somam o restante do total estimado.” (Tradução livre)

Uma publicação da Infomoney mostra que as demissões nos EUA aumentaram bastante em 2025, essa publicação cita o relatório da consultora de recursos humanos Gray & Christmas, que diz: “Períodos anteriores com tantos cortes de empregos ocorreram durante recessões ou, como foi o caso em 2005 e 2006, durante a primeira onda de automações que custou empregos na manufatura e tecnologia.”

Se o estudo do MIT acima realmente se comprovar na prática, com a implementação da IA eliminando boa parte dos funcionários de RH, logística, finanças e administração implicará em eliminação de trabalhadores improdutivos e diminuição da composição orgânica do capital. Generalizando esse cenário em toda a manufatura, ocorrerá uma elevação da taxa de lucro [5]. Menos custos, maior produtividade e mais mais-valia para o capitalista.

Seria simples assim? Claro que não (risos). Aqui entra a parte sensível de nosso texto, pois a resposta para essas questões define todo o cenário que a classe trabalhadora enfrentará. Observamos que alguns dados melhoraram, os mais importantes do setor de ponta da economia dos EUA. Porém, estaremos atentos à evolução dos indicadores nos próximos trimestres.

Podemos estar vendo a nova bolha da IA se manifestar antes da queda ou a elevação da produtividade sendo resultado da implementação da IA. Veremos a retomada da economia reguladora, uma exuberante expansão da produção e consequentemente o abafamento da luta de classes no centro do sistema, restando possibilidades de ruptura nos elos mais fracos, principalmente da periferia capitalista. Muito porque, em todo período de crise cíclica há queima de capital, seja onde for, há queima de capital (armamentos, cidades, fábricas, máquinas, rodovias, satélites, seja o que for que compõem o sistema produtivo global, capital fixo e variável – haverá queima).

Caso o cenário de economia estacionária continue, nessa esteira teremos cada vez mais claro a velha dialética: aumento da ingovernabilidade, crise, guerras e revoluções!

Final note: A nova bolha, sic.

De acordo com Paul Kedrosky, um VC de longa data atualmente na SK Ventures, a bolha de IA é como se cada bolha anterior fosse lançada em uma outra (?). Há o elemento imobiliário. Há o elemento tecnológico. E, cada vez mais, há estruturas de financiamento exóticas sendo colocadas em prática para financiar tudo. [6]

Ou seja, a farra de investimento insustentável. E depois, além disso, fala-se de resgates e apoios do governo. A velha corrida contra a queda da taxa de lucro em seu atual contexto. Quem viver, verá!

Neste episódio, percorremos algumas das matemáticas que seriam necessárias para justificar todos esses gastos e como as apostas aparentemente existenciais de “ganhar a corrida da IA” estão causando uma farra de investimento insustentável. Para que lado vai a crise e quem vai estourar será decidido nos próximos passos dos sanguessugas globais.

A possível derrocada da Alemanha (leia-se OCDE) pode se alastrar pelo globo como epidemia, imaginem nos EUA, seria avassalador. O laço no pescoço da burguesia está se apertando, esperamos que continue. Algumas revoltas e pontos isolados continuam a estourar: Bulgária, Ásia, e até Portugal teve uma grande greve por estes dias.

Mas de uma coisa nós (e nossos amigos do Sinuca de Bico) temos certeza:

O dia em que o morro descer e não for carnaval

Ninguém vai ficar pra assistir o desfile final

Na entrada, rajada de fogos pra quem nunca viu

Vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil

Guerra civil

O povo virá de cortiço, alagado e favela

Mostrando a miséria sobre a passarela

Sem a fantasia que sai no jornal

Vai ser uma única escola, uma só bateria

Quem vai ser jurado? Ninguém gostaria

Que desfile assim não vai ter nada igual

Não tem órgão oficial, nem governo, nem liga

Nem autoridade que compre essa briga

Ninguém sabe a força desse pessoal

(Wilson das Neves – O dia em que o morro descer e não for Carnaval)

Notas

[1] A Revolta dos Malês , a Guerra dos Farrapos, a Revolta da Balaiada, as Revoltas Liberais e a Revolução Praieira foram algumas marcas do descontentamento popular no império de D Pedro II. Tendo a Revolta dos Malês conquistado o retorno a África.
[2] A forma é a expressão necessária do conteúdo, a porta de entrada para a investigação. Necessária, mas o ponto de partida, não o fim.
[3] Ao que tudo indica, analisaremos a situação da Alemanha e da OCDE no próximo boletim.
[4] Trataremos do setor de bens duráveis pois é o motor da economia estadunidense. Na tabela 02 é retratado o setor de bens de consumo não duráveis. Este é a base da manutenção da força de trabalho: alimentos, bebidas, cosméticos, produtos de limpeza e vestuário, atendendo necessidades diárias e imediatas dos trabalhadores. Ou seja, força de trabalho futura.
[5] “Este é o maior total para outubro em mais de 20 anos e o maior total para um único mês no quarto trimestre desde 2008. Assim como em 2003, uma tecnologia disruptiva está mudando o cenário”, diz o relatório.
[6] https://www.bloomberg.com/news/audio/2025-11-14/odd-lots-ai-is-like-every-bubble-all-rolled-into-one

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