Sim, ainda é possível vivermos tempos de delicadezas. Por Franciel Cruz
Uma característica indelével de todo bom jornalista é sempre discorrer com um ar um tanto quanto petulante sobre temas que não domina. Assim, com a autoridade de quem nunca estudou sobre o assunto, posso afirmar com convicção: entre todas as cidades dos 18 continentes, Salvador é a que tem a relação mais esquizofrênica com o transporte coletivo.
Para provar minha tese, recorro ao auxílio pernicioso do novo pai dos burros, o gugle, e relembro que no ano da graça de 1930 os soteropolitanos queimaram 84 bondes (mais de 2/3 da frota) em poucas horas de fúria e revolta contra a carestia. Na ocasião, oficinas, garagens, terminais e depósitos da empresa (ir)responsável pelos serviços também foram depredados.
Como os empresários de Pindorama só sabem privatizar os lucros e socializar os prejuízos, a Cia. Circular de Carris da Bahia, dona dos equipamentos, acionou logo o governo, ganhou a causa e não colocou mais bondes para rodar. E a ex-capital da Colônia passou a usufruir, desde então, de um dos piores sistema de transporte do país. Em meados do século passado, inclusive, a prefeitura foi obrigada a baixar um decreto oficializando a crise no sistema coletivo.
Por falar em crise, o povo, revoltado com mais uma sacanagem da prefeitura, lascou em banda mais de 600 ônibus, no inolvidável quebra-quebra de 1981. Sim, minha comadre, ainda poderia discorrer sobre a já histórica Revolta do Buzu, mas o tempo urge e ruge e tenho que contar uma experiência pessoal ocorrida na última sexta-feira, 12 de junho, que os otários acreditam ser dia dos namorados e entregam seus parcos e suados dinheiros para os capitalistas.
Mas derivo.
O fato é que, como sói, estava de ressaca e atrasado para o labor. Pouco tempo antes, haviam me ligado da firma mandando adiantar o lado. Então, mais angustiado do que o goleiro na hora fatal, desço a pirambeira numa velocidade de botar no chinelo um Bem Johnson dopado e vejo o glorioso Sussuarana R-2 do outro lado da rua. Saco do coldre 15 cepacóis e grito. “Motô, aguenta a onda aí”.
Gentil, como todo bom motorista de Soterópolis, ele vira a cara de lado e faz de conta que não escutou aquele meu grito mais angustiado (e potente) do que o de Edvard Munch.
Desesperado, pois precisava garantir o cuscuz com charque de meu rebento, disparo atrás do desinfeliz numa desabalada carreira, confiando na sinaleira que, óbvio, não fecha nunca nos momentos mais importantes da nação.
Busco o último fôlego e decido seguir correndo até o ponto seguinte. O improvável acontece. Pessoas vão entrando no ônibus, o sinal fecha e eu, cambaleante, me aproximo de meu objeto obscuro do desejo. Alcanço-o e bato na lataria traseira. O condutor do veículo olha pelo retrovisor com um cara de fazer inveja ao mais perverso personagem de Sade e avança com o Buzu sem nem esperar o sinal abrir direito.
Tensão no ponto de ônibus, pois os eruditos usuários do sistema de transporte de Salvador conhecem toda a história de depredações que relatei nos parágrafos acima e já começam a se preparar para testemunhar mais um capítulo deste secular, tumultuado e feroz conflito.
Porém, quando já me preparava para a batalha, começando por xingar toda a árvore genealógica do referido, uma moça loira, de sotaque germânico-gaúcho, sai de seu trajeto, cruza duas faixas, estaciona e diz. “É muito triste perder um ônibus, assim, depois de correr tanto. Entre. Vamos atrás dele”.
Como era dia dos namorados (sim, de quando em vez eu acredito nestas bobagens), pensei que Deus, esta invenção que raras vezes me socorre, finalmente havia dado o ar da graça. Mas, só ilusão. Era impossível que aquela loira bela fosse se interessar por este cabeludo e despenteado locutor. E a lei de Muphy deu o ar da graça quando olhei para o banco traseiro e vi a linda filhinha dela naqueles carrinhos de colo.
Então, libertei-me dos pensamentos pecaminosos e aceitei a oferta. Para conseguir seu objetivo, na verdade o meu, a moça fez mais ultrapassagens do que Nelson Piquet no GP da Hungria de 1986. É claro que o Niki Lauda que pilotava o buzu não estava pra brincadeira. E tome-lhe acelerações e imprudências. Resumo a prosa ruim informando que minha heroína venceu.
Inutilmente feliz, entrei no ônibus e nem olhei para a cara do sacana pra não me contaminar com aquela energia ruim. Apenas fui durante o trajeto todo até o trabalho pensando como atos heroicos (sim, heroicos, afinal você oferecer carona para uma pessoa mal diagramada como eu estando com uma filha pequena no carro, mais do que ingenuidade, é heroísmo) do cotidiano muitas vezes podem contribuir para a diminuição deste clima hostil, onde todos têm medo de todos nas grandes cidades.
Sim, ainda é possível vivermos tempos de delicadezas. Obrigado, moça.
P.S.: São situações completamente distintas, mas o gesto desta moça me fez lembrar do ato de bravura do motorista de ônibus do 1636, este sim uma alma generosa e corajosa, que relatei neste texto aqui, ó.
Muito bom… Gostei muito da forma da narrativa.
Isso me fez lembrar um causo semelhante, publiquei no FB:
Li essa crônica de Françuel http://bit.ly/1GAvim4 e lembrei de um caso bobo que aconteceu comigo. Estava saindo de São Lázaro, pela saída de trás, tava chovendo. E uma mulher me ofereceu carona até a parte de baixo da ladeira, pra eu não pegar chuva. Me impressionou bastanta esse gesto simples, porque para mim parecia mais que natural que mulheres desconfiassem de um homem grande DESCONHECIDO, a ponto de não lhe confiar uma carona, sozinha, dentro de seu carro. Me pareceu um gesto humano de confiança que eu havia esquecido em algum canto da memória. Vale a pena resgatá-lo nesses tempos difíceis.
Que texto sensacional Franciel! Um deleite! Parabéns!