O Coletivo Tarifa Zero Salvador, membro da federação de coletivos do MPL, vem por meio desta carta-resposta tornar público o seu posicionamento acerca da carta de desligamento publicada por três de nossxs ex-membros e, junto com isso, esclarecer alguns pontos.

Em primeiro lugar, gostaríamos de declarar nosso profundo pesar em perder três integrantes de extrema importância, que juntaram suas forças às nossas e deram relevante contribuição para nossa luta pelo transporte público.

Há pouco mais de um ano, este coletivo vem sofrendo um quadro de desgaste interno que resultou no afastamento de outrxs companheirxs durante esse processo. E, aqui, vale alguns esclarecimentos que, mesmo sem querer tornar público problemas internos, parecem de extrema relevância, no sentido de contribuir para um debate que vem se ampliando em espaços de construção de luta libertária, autônoma e horizontal, sobre os limites e desafios de nossas práticas e organização. Gostaríamos, inclusive, fazendo coro à própria carta de desligamento, que outras organizações que passam (ou passaram) por problemas parecidos também se manifestem, pois, quem sabe assim, consigamos encontrar soluções coletivas e outras metodologias para superar determinadas práticas/posturas/tendências e desgastes que acabam por limitar nossas ações e corroer as nossas relações internas.

Desde abril de 2014, temos passado por esse desgaste. Hostilidades mútuas começaram a partir de divergências teóricas, metodológicas e organizacionais, resultando mais tarde em desconfianças sobre as práticas políticas de algumas pessoas, se estendendo de modo geral às relações entre as demais. Em outros casos, conflitos se iniciaram a partir de relações pessoais passando também a estender para o campo político. A partir de então outrxs integrantes começaram a se afastar. O Coletivo, hoje reunido e debruçado sobre nossas questões internas – repensando nossas práticas e erros na busca de encontrar soluções – entende, ao olhar para trás, que errou enquanto coletividade deixando que os conflitos se acirrassem sem que as pessoas não envolvidas diretamente interviessem para cessar este processo. Erraram todxs aquelxs que não se posicionaram de modo mais assertivo. E por isso, fazemos nossa retratação. Mas entendemos que, acima de tudo, erraram as partes envolvidas no conflito – não apenas as duas pessoas denunciadas na carta de desligamento, como também xs próprixs signatárixs. O conflito forçou uma bipolarização dentro do coletivo, centrado em duas pessoas de cada lado. E desde então, os dois grupos passaram a protagonizar as cenas, disputando propostas dentro do Coletivo Tarifa Zero. Disputas que teriam sido produtivas, se não tivessem sido desrespeitosas – fossem nas posturas, fossem nas ofensas ou nas “alfinetadas” mútuas. Por inúmeras vezes tentaram enquadrar os demais integrantes do coletivo em torno dessa bipolarização forçada e mal colocada travando assim toda agenda do coletivo.

Aquelxs que, por alguma razão, decidiam não se envolver acabaram se transformando em merxs espectadorxs do espetáculo que se tornara essa disputa. E “não se envolviam” por alguns motivos, a saber: 1. Por acreditarem que só piorariam o clima; 2. Por não se identificarem com a postura de nenhum dos lados em conflito; 3. Por se sentirem impelidxs a escolher um lado como se fossem manipuláveis; 4. Por acreditar que o conflito acabaria por si só, na medida em que ninguém o alimentasse. Nos enganamos e precisamos reconhecer a nossa omissão, enquanto coletividade, o que levou à situação em que nos encontramos hoje. A polarização resultou em desmobilização nas reuniões e atividades, provocando um prolongamento excessivo do processo de planejamento do coletivo por mais de seis meses, sem que este fosse sequer executado. Andamos em círculos entre uma disputa e outra. No embate, ao se esgotar o terreno da razão houve desrespeito e provocações. O processo foi bem mais complexo do que a forma simplista e quase maniqueísta que o relatado na carta de desligamento, de modo que é preciso que fique claro que, entre denunciantes e denunciados, ninguém foi vítima de um processo unilateral de ataques.

A carta de desligamento com uma denúncia de “trashing” nos mobilizou a tratar do caso de maneira avaliativa, de sorte que estamos em um processo difícil de autocrítica, porém necessário para que seja possível se fortalecer e prevenir novas situações dessa natureza. Mas o entendimento que o Coletivo tem de que não se tratou de um conflito unilateral (o que já seria uma contradição em termos) faz com que provoquemos xs compxs signatárixs da carta de desligamento que procedam da mesma forma, realizando também suas autocríticas. É preciso que façamos um diálogo franco, se queremos superar limites e construir novidades na luta – que por si só já é dura demais.

Ao fazer a denúncia, a carta apresenta o “trashing” como uma forma de agressão. O problema que se coloca ao Coletivo é: como lidar com uma denúncia de agressão de maneira resoluta e firme? Devemos punir aqueles apresentados como perpetradores do “trashing”? Qual seria – se é que existe – a punição adequada? O Coletivo não pretende reproduzir tantos erros, já mencionados em outros espaços, de punitivismo, e espera ouvir dxs compxs denunciadxs seus posicionamentos acerca do caso. Mas a problemática se mantém mesmo assim: basta que façamos a autocrítica? Basta que as pessoas ditas como os autores do “trashing” reconheçam que tiveram práticas nocivas ao coletivo e axs compxs que saíram? Outro problema se soma a esta questão: o pouco entendimento coletivo do que seja o “trashing”. Ainda que o artigo de Jo Freeman* traga vários elementos para que tal prática possa ser identificada, continuamos com dificuldade de discernimento em torno do conceito. Deste modo, dentro do coletivo ainda não há consenso se houve ou não houve “trashing”. Este dissenso acerca de um dos principais tópicos da carta explicita ainda mais a complexidade do conflito em questão, principalmente sob os olhares de cada companheirx do Coletivo – complexidade esta que não se faz visível na carta de desligamento.

Recorrer a uma espécie de julgamento da moralidade dos sujeitos envolvidos pode ter sido uma prática frequente, como tentativas de se utilizar de características de personalidade de umx ou outrx para justificar um julgamento moral negativo sobre a sua atuação ou posicionamento político. Posturas essas apontadas pelxs compxs que se desligaram. Porém, o julgamento daquelxs que ficaram poderá ser a reprodução do mesmo erro. E por isso, esta carta nos colocou em uma situação tão delicada e dura. Deste modo, ainda esperamos ouvir xs compxs diretamente envolvidxs que ainda permanecem no coletivo. Ademais, é importante aprofundarmo-nos para além dos mecanismos que estão por detrás do “trashing”, investigando as raízes que permitem que esse sintoma se manifeste, quadro que tem como pano de fundo, muitas vezes, o acirramento de rivalidades pessoais, egóicas e idiossincráticas, o que evidencia a nossa incapacidade de lidar com as diferenças, muito comum no campo libertário.

Temos a esperança de que possamos amadurecer nosso entendimento, de modo que seja possível encontrar soluções de blindagem a este tipo de prática. Se necessário, consideramos a possibilidade de afastamento dxs outrxs compxs envolvidxs, a depender dos seus posicionamentos, mas questionamos se esta medida por si só seria suficiente para que isso não volte a acontecer entre outras pessoas. A questão que fica é: em organizações que convivem internamente com a hostilidade polarizada entre parte de seus membros, como não ser punitivista e ao mesmo tempo não deixar passar batido condutas de agressão e provocação entre as partes, como foi observado aqui? Ou ainda, em que medida é possível não ser punitivista em ambientes em que as práticas de hostilidade tornam-se endêmicas? Por isso queremos estimular o diálogo amplo, sincero e, acima de tudo, respeitoso – para que seja possível dirimir tal ameaça às nossas relações internas.

Sobre a disputa em torno da questão “minoria ativa” x movimento social: preferimos não colocar nesses termos devido às dúvidas e diferenças de entendimento sobre esses conceitos. De todo modo, é preciso que fique claro que o Coletivo não adere, como um todo, à proposta de “minoria ativa”, tampouco se pretende constituir limitado à grupos de afinidades. Temos diversidade de posições entre nós, e nesta, há aqueles que defendem tal proposta (de “minoria ativa” e não, necessariamente, de grupo de afinidades). Porém esta proposta foi colocada em votação e não teve adesão. Em uma longa discussão, foi decidida a forma mais ampla e menos burocrática para entrada de novxs compxs a somarem-se às nossas lutas. A disputa relatada, ocorrida neste coletivo, é identificada na carta de desligamento como um elemento disparador do “trashing”. Porém os conflitos e a confusão entre pessoal e político já tinha iniciado seu curso bem antes, com curtas épocas de tranquilidade, até que novos desentendimentos causassem nova sequência de tensões. Entendemos que é preciso superar os limites que nos impedem de ampliarmo-nos em número e qualidade. E, principalmente, é preciso termos clareza de nossas intenções e projetos políticos, no sentido de assumirmo-nos enquanto movimento social que contempla a pauta do transporte público. Indo além, precisamos sim neutralizar certos vícios e “facilidades” políticas em torno das afinidades espontâneas que se estabelecem no interior  do coletivo. Esta característica, em aproximação ao que coloca Freeman acerca da sororidade, pode ser o campo de perigo no qual o “trashing” pode ser promovido.

Ainda acreditamos na ideia que a melhor forma de “lavar roupa suja” seja no processo de discussão e debates internos, evitando expor questões de funcionamento interno de qualquer que seja a organização. Consideramos esta abertura das entranhas do coletivo ao público uma ação equivocada, por parecer uma ferramenta revanchista, e que pode resultar em um processo maior de fragilização de todo o coletivo. Por outro lado, esse “dedo na ferida” pode, ainda que pareça paradoxal, nos tornar mais fortes, blindando-nos das posturas e das condutas denunciadas, num processo refletido a partir de nossas experiências e, agora, dialogado publicamente. O Coletivo Tarifa Zero Salvador afirma que houve práticas nocivas ao coletivo e axs compxs que se desligaram e não quer desconsiderar os prejuízos para a outra parte envolvida que ficou neste espaço de luta. Porém, não pretendemos nos esquivar da tarefa de tratar as atitudes das pessoas envolvidas pelo que é devido a cada uma, ao invés de simplesmente colocar o mesmo peso em todxs sem uma análise mais pormenorizada. Não passaremos por cima deste caso, sem dar-lhe a devida importância, nem mesmo deixar de responsabilizar as partes responsáveis. Deste modo, gostariamos de declarar, por fim, que xs companheirxs que permaneceram neste coletivo, apontados como a outra parte diretamente envolvida no conflito, encontram-se, doravante, em avaliação – o que significa que serão ouvidxs e de seus posicionamentos depende sua permanência entre nós. Este procedimento deveria ter sido feito com ambas as partes do conflito, ao longo deste processo de desgaste e quem sabe assim teríamos evitado o desfecho dado com a carta de desligamento.

POR UMA VIDA SEM CATRACAS, SEM AGRESSÕES E SEM PUNITIVISMOS!
TARIFAZERO – SALVADOR
Salvador, junho de 2015.

NOTA
(*)Trata-se do artigo “Trashing: o lado sombrio da sororidade” escrito por Jo Freeman, militante feminista estadunidense. Disponível aqui http://passapalavra.info/2014/12/101362

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