Nossa carta de desligamento do Movimento Passe Livre, pelas razões que se seguem:

Um movimento que se propõe ampliar suas bases se depara, cedo ou tarde, com determinados conflitos de ideias entre seus militantes. O que, num primeiro momento, deveria ser algo benéfico ao sustentar a multiplicidade de experiências em torno da luta de classes, pode se tornar um empecilho às práticas que demandam os conflitos sociais. É daí que surgem os principais problemas que impedem o real avanço das capacidades organizativas dos movimentos, tornando-os facilmente suscetíveis a um processo de burocratização constituído pelo avanço de grupos de afinidades que não pretendem perder seus postos de controle. Pois é nesta encruzilhada que o Movimento Passe Livre São Paulo se encontra.

A divisão em comissões não deveria servir somente como base de aprofundamento de um trabalho em determinadas regiões. Pouca coisa valeria se esses espaços não possuíssem autonomia para deliberarem suas ações. Ao decidirem sobre os próprios rumos da luta através da consolidação nos espaços, militantes que estão no enfrentamento direto do cotidiano de um trabalho de médio a longo prazo teriam subsídios para formações concretas que debatessem as especificidades das lutas pelo transporte em cada lugar. Não é novidade alguma saber que a aproximação de indivíduos ao movimento também traz consigo certo tipo de desconfiança. Porém, determinadas pessoas acreditam que essa falta de “confiança” atua mais como uma barreira ao fortalecimento coletivo do que algo propositivo às lutas. Antes que expandir a área de atuação do movimento, procura-se sua atrofia por meio de um discurso demagógico onde o longínquo campo da luta se esvai nas pequenas reuniões com indivíduos “confiáveis”.

A arapuca está montada. A reunião dessas pessoas que não buscam a ampliação do movimento além dos seus limites de “confiança” acaba por minar a diversidade a que se propõe um movimento que pense além dos limites de uma tática que envolva uma revolta popular. No fundo, para esse grupo específico, quando as bases ganham voz, a torre começa a desmoronar e suas hegemonias são colocadas em xeque.

Não se trata de um esforço para ampliar o diálogo entre as diversas comissões. Antes, o dispêndio de determinados indivíduos é de calar esses espaços de formação que se consolidam em diferentes locais da cidade. O que poderia se tornar um amplo ambiente de debate se configura em um espaço de coerção social.

Se a guinada do mpl-sp após junho de 2013 foi focar no trabalho de base associado às comissões locais, isto não é uma novidade dentro deste movimento. Vale lembrar, nos idos de 2004 e 2005, quando o movimento se constituía enquanto tal nesta cidade. A partir do momento em que os trabalhos realizados prioritariamente nas escolas foi deixado como segundo plano, não se tratava somente de ampliar o reconhecimento de uma organização que até então possuía pouca visibilidade. Antes, todo cuidado era necessário frente aos estudantes secundaristas que se aproximavam cada vez mais. Lógico que este não foi o único fato que fez o mpl-sp tomar tal decisão, mas essa postura teve um peso grande para o afastamento de muitos jovens militantes que buscavam questionar as pretensões do que se constituía um movimento pautado na estreita relação da “confiança” de poucos.

Voltando para 2015, o assunto em debate que remete ao grupo de afinidades é o gênero. Tema importante na discussão sobre algo que assola dentro e fora dos movimentos sociais, o punitivismo traçado pelas pessoas confiáveis do movimento não se restringe à exclusão de determinados militantes. A confusão entre o pessoal e o político presente na forma do trashing reflete-se na maneira como alguns homens e mulheres atuam. E este trashing costuma se dar, antes que na exclusão, no pavor da exclusão. É neste cenário de pavor e medo que as relações se centralizam num círculo vazio fundado por relações de afinidade que não mais visam a constituição de um movimento que defende a concepção de uma vida sem catracas.

Do ponto de vista dos últimos acontecimentos:

Ficou clara, na última reunião, a forma arbitrária que está se impondo à atual tentativa de reestruturação do Movimento a partir de sua divisão em comissões e de um trabalho concretamente enraizado desde os bairros da periferia da cidade. Sobrepondo-se a este segundo processo, o coletivo de mulheres arrogou-se um papel decisivo na organização do Movimento a partir de uma concepção inquestionável de feminismo. A divergência, a apresentação da luta pelo reconhecimento da autonomia feminina sob uma perspectiva diferente, a partir de correntes teóricas diferentes, foi tachada automaticamente de machismo. Os dois autores desta carta, e outro companheiro de muitas lutas conjuntas dentro do Movimento, bem como um informativo intimamente associado à luta por uma vida sem catracas, foram submetidos a um processo que só se pode dizer inquisitorial e instados a “abjurar” suas posições, os termos não podem ser outros – que dizer de ser intimado a mudar instantaneamente princípios de luta que só se pode esperar que sejam fruto de reflexões amadurecidas ao longo do tempo? O alvo da polêmica, como se sabe, se concentrou na publicação, por meio do site passapalavra, da resposta de um até então militante que foi alvo de denúncia de agressão a uma também militante por parte de um coletivo feminista. Publicação esta que foi acompanhada de nota crítica sobre a prática punitivista. Em termos básicos, simplesmente se rechaçou violentamente a interpretação dessa publicação como instrumento de oposição a uma concepção de feminismo excludente e se fez tábula rasa de todas as posições anticapitalistas coerentes e convergentes na luta dentro ou ao lado do Movimento daqueles que a defendiam, a saber, junto com estes dois autores, o outro companheiro do Movimento, e o próprio site. Quanto a este último, acrescente-se que, ainda que se pudesse acusá-lo, como ocorreu na reunião, de “entrismo”, isso não mudaria em nada o fato de que estamos no campo das divergências e nada justifica o ataque arbitrário para demolir uma pretensa influência externa de ideias. A autoimposição da tese do feminismo, em detrimento de outra tese igualmente defensora do feminismo, no mínimo, pedia um esclarecimento sobre as origens ideologicamente afinadas com uma política estadunidense no correr da segunda metade do séc. XX, que via no multiculturalismo o oportuno estímulo à contemporização dos “civilizados” cidadãos americanos com a “barbárie” estrangeira que imigrava trazendo mão de obra precarizada. Essa afirmação das múltiplas culturas que, pretensamante estariam “em pé de igualdade” é a base do culturalismo identitário sobre o qual se sustenta a tese da “autoevidência” da vítima e do agressor na opressão de gêneros (desde quando a esquerda se vale desse conceito espúrio com que o positivismo serve à direita? Na autoevidência da superioridade física e moral se sustentou justamente a primazia de um gênero sobre outro, de uma raça sobre outra; da necessidade de uns fazerem o trabalho manual e outros o intelectual). Em suma, trata-se de uma disputa de posições ideológicas cujos pressupostos, o alinhamento histórico e político, a filiação teórica são pouco conhecidos, permanecendo-se na superfície de princípios atraentes e fáceis como o poder masculino e a sujeição feminina; a exclusividade da condição do oprimido; o privilégio da cultura; a importância da identidade; a precedência do patriarcado e outros que, por si só, podem levar a qualquer lugar, reacionário ou transformador, e que só podem ser efetivamente julgados quando se conhece os pilares em que se sustentam e quem são os seu aliados. Isto é, devem ser inseridos em um processo que estamos cansados de saber que é importantíssimo, o processo histórico, por meio do qual chegamos à sua origem e ao desenvolvimento que os trouxe até nós.

É nítido que a forma como a tese desse tipo específico de feminismo se impõe à custa da suspensão de uma discussão vital para o Movimento, como é a reestruturação a partir das comissões e o trabalho de base, reflete a inclinação do grupo que a defende a um exercício concentrador de poder no Movimento. É oportuno mencionar a experiência da co-autora desta carta, pela profunda convergência com o atual processo centralizador, em 2013, quando se aproximou do MPL, atendendo à convocação para integrar a luta por transporte durante as jornadas de junho. Operou-se então a prática entre nós conhecida como trashing. Participando da organização de seminário articulado pelo MPL em conjunto com a Ocupação Margarida Alves, à certa altura, a companheira viu-se inexplicavelmente hostilizada e gradativamente excluída de forma mais ou menos ambígua das tarefas, alijada das discussões por uma mais ou menos discreta desqualificação de suas posições, até que, por fim, sua exclusão nas reuniões e seu consequente constrangimento tornaram-se patentes e quase insuportáveis. À tentativa de ventilar aquela situação, acenou-se com uma reunião de avaliação pós-evento que, entretanto, nunca se realizou ou para a qual ela, pelo menos, nunca foi convidada – nenhum contato mais foi feito, a despeito de continuar participando, por conta própria, das mobilizações do MPL. Enfim, para arrematar, no dia da realização do seminário, seu comparecimento foi antes fruto da teimosia e da convicção diante de um grupo que decididamente parecia esperar que ela não fosse. Assim terminou a primeira tentativa de militância no MPL, permanecendo até o início deste ano o apoio e acompanhamento sistemático fundado numa confiança no Movimento acima de conflitos contingentes com militantes. Nossos últimos acontecimentos vieram mostrar que não se tratava de um incidente subjetivo nem externo, mas de uma tática de salvaguarda do poder em conformidade com uma orientação disputada no Movimento.

O apoio a uma concepção reacionária de feminismo converge com o processo de centralização e burocratização do MPL ao qual se buscava resistir através da reestruturação do Movimento, da permeabilidade a influências de novos integrantes surgidos a partir da expansão do trabalho de base e da coesão da organização a partir de mediações sociais concretas. Os autores desta carta fazem coro com os companheiros que defendem essas medidas. Ao contrário dessa inclinação a posições consistentes e horizontais, a sustentação obscurantista da tendência atual se reflete no apelo ao sentimentalismo que carrega um forte poder de atração, próprio da sociedade capitalista altamente recalcada, largamente utilizado pela propaganda de massas e, de maneira muito típica, pela extrema direita. Da mesma maneira, fomenta convicções contraditórias com a luta emancipatória porque autoritárias, tais como as declarações de militantes pedindo a própria punição caso se comportem de modo machista, ou que afirmam que é justo sentirem-se constrangidos perante o Movimento já que, afinal, são mesmo machistas e devem ser vigiados. Sabemos muito bem que a verdadeira consciência é fruto da liberdade, da autonomia; e isso, antes de mais nada, porque pedir para ser controlado ou ser castigado é pretender usar a própria autonomia para negá-la, o que é simplesmente um contrassenso; dessa maneira, a declaração dos companheiros se torna perfeitamente nula. Evidentemente, o Movimento precisa de indivíduos capazes de refletir autonomamente, não constrangidos e obedientes a uma autoridade ou tutela superior acima de qualquer crítica, que nenhum princípio libertário jamais pôde sancionar.

As catracas não existem só no mundo material, é preciso queimá-las também no plano das ideias!

Cristina Daniels e Rafael Beverari

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