Não se trata mais de “direita” e “esquerda”; trata-se, na verdade, de “capitalismo” e “anticapitalismo”. Por Fagner Enrique

Diante da possibilidade de derrubada da presidente Dilma Rousseff, uma parte da esquerda, a do terreno governista, se mobiliza para defender o mandato da presidente, como se pode concluir a partir deste manifesto. Outra parte, a do terreno “autônomo” ou libertário, segue na defensiva, exaurida pelos recentes choques com a repressão estatal, que vieram com força no início de 2014 (repressão da qual participaram os governantes petistas, nas instâncias federal, estadual e municipal, diga-se de passagem), além de se corroer por dentro, por conta da difusão de discursos e – acima de tudo – de práticas ditadas pela política de identidade. Esse é o pior cenário possível para os anticapitalistas.

Em primeiro lugar, exatamente porque a direita e a extrema direita têm ganhado terreno é que os movimentos têm de partir para a luta, à revelia dos possíveis destinos do PT, e tanto contra os governos petistas quanto contra a direita e a extrema direita, pois tanto uns quanto os outros defendem, essencialmente, as mesmas relações sociais. E a luta não se deve orientar contra este ou aquele partido: ela deve se orientar contra uma política mais ampla, que permeia vários partidos, isto é, contra a política de ajuste, que tem comprometido a valorização salarial, a já restrita estabilidade no emprego, as condições de trabalho e vários direitos sociais duramente conquistados pelos trabalhadores; e também contra outras medidas que têm sido patrocinadas pela direita mais reacionária. Lutar contra essa política não implica defender os governos petistas. Implica, na verdade, necessariamente, o contrário.

Em segundo lugar, as organizações dos trabalhadores só se fortalecem na luta, pois é aí que elas vão se afirmando como contrárias ao capitalismo e vão construindo a solidariedade – e a consciência – de classe, além de relações sociais coletivistas e igualitárias, e é justamente o “reboquismo” dos movimentos governistas frente ao PT, somado à implosão dos movimentos “autônomos” ou libertários, causada pela repressão estatal e pela política de identidade, que, mais do que nunca, nos enfraquece a todos, pois:

I. conforme o PT sofre ataques da direita e da extrema direita, e os movimentos governistas se mantêm ao seu lado, eles se colocam também na mira dos ataques, sendo indispensável que eles se afastem – e se diferenciem – ao máximo dos governos petistas, saindo de sua órbita. É preciso que as bases dos movimentos governistas rompam, o quanto antes, com os dirigentes desses movimentos, abolindo ainda a divisão entre base e direção, e colocando-se contra o PT e os direitistas; caso contrário, cairão todos juntos, PT e movimentos sociais, mesmo que o mandato da presidente não seja interrompido; e, se não caírem, seguirão definhando juntos, de mãos dadas;

II. na medida em que tais movimentos se mantêm ao lado dos governos petistas, e não somam forças com os movimentos “autônomos” ou libertários que fazem oposição ao PT, ou com o que resta deles, estes últimos ficam à deriva, presos em suas próprias contradições, totalmente isolados. E seguirão definhando também, à sua maneira;

É preciso, nesse sentido, superar a oposição “direita” x “esquerda”. Não se trata mais de “direita” e “esquerda”; trata-se, na verdade, de “capitalismo” e “anticapitalismo”. O PT é uma das forças do terreno capitalista e, por isso, não faz sentido defendê-lo, sobretudo porque é este partido que tem executado a política de ajuste contra os trabalhadores, o que evidencia a sua filiação social. A oposição de direita ao PT também faz parte do terreno capitalista, devendo os movimentos dos trabalhadores atacarem, com todas as suas forças e por todos os meios à disposição, a ambos. Para isso, a base dos movimentos hoje sob a tutela do governo federal deve se tornar autônoma e articular-se com os grupos anticapitalistas hoje isolados, reforçando o terreno anticapitalista. Seria esse o único cenário realmente favorável para todos – excetuando-se os burocratas e os gestores de esquerda, que devem ter o mesmo destino dos burocratas e dos gestores de direita, bem como da burguesia – diante da política de ajuste ora em curso.

Resta saber se quem vislumbra uma sociedade socialista é capaz de superar a ilusão de que o governo petista, sendo de esquerda, está do lado de cá das barricadas. E se quem já se apercebeu disso é capaz de perceber também que a política de identidade, que vai de encontro à solidariedade e à consciência de classe, está do lado de lá.

Fotografias de Robert Capa

5 COMENTÁRIOS

  1. Lula em 2006:
    O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse nesta sexta (22) que seu governo não é de esquerda, embora ele, pela forma como governa, pelo que defende, se considere como tal. Mas ele disse que, antes de tudo, se considera um torneiro mecânico, que é sua profissão.

    “Se você perguntar para mim se sou de esquerda ou de direita, eu vou dizer que sou torneiro mecânico de profissão, católico por opção religiosa, e corintiano por opção futebolística”, disse, durante café da manhã com jornalistas credenciados no Palácio do Planalto. Em seguida, afirmou que se considera de esquerda, mas que seu governo não é.

    “Acho que ser de esquerda é defender as coisas que eu defendo. Eu sou de esquerda, mas o governo não é um governo de esquerda, é um governo que governa em função da correlação das forças políticas e pela sociedade, que tem inclinação pelo atendimento das demandas sociais, que é para isso que o povo me elegeu”.

    No último dia 11, em discurso para uma platéia de empresários em São Paulo, o presidente afirmou que a “evolução da espécie humana” era o centro. Na ocasião, afirmou que pessoas de esquerda e direita com mais de 60 anos — como ele, que tem 61 — tendem ao equilíbrio e disse que “idoso esquerdista tem problema”.

  2. A despeito do que o próprio Lula já disse, considero que o PT é, sim, de esquerda, por mais que seja também, olhando da nossa perspectiva, de direita, no sentido de um partido que reforça as relações sociais de tipo capitalista. Sempre conseguiremos encontrar uma organização que está mais à esquerda do que outra, da mesma forma que sempre conseguiremos encontrar uma organização que está mais à direita do que outra. O que importa é que fomos derrotados, nós, do que se costuma chamar de extrema-esquerda, e a esquerda é (1) isso aí que está no poder, porque é essa esquerda, dentre tantas outras, que conseguiu se consolidar como referência de esquerda; e a esquerda é também (2) quem fica com receio de atacar isso aí que está no poder, temendo a direita que está por aí, à espreita. Então, já que eles conseguiram se afirmar como “a esquerda”, a referência de esquerda, e nós perdemos a capacidade de dizer que eles não são “a esquerda” ou “parte da esquerda”, pois entre a própria extrema-esquerda ainda há relutância, hesitação, vacilação, indecisão, dúvida, confusão, embaraço, e uma perspectiva do “mal menor”, como se apoiar o PT etc. fosse melhor do que deixar ascender o PSDB etc., deixemos estes termos de lado, direita e esquerda, que, na verdade, já não nos servem mais, e usemos outros termos: capitalismo e anticapitalismo. Quando o Lula diz que é de esquerda, mas diz também que o governo do PT não é de esquerda, que é um governo que tem uma inclinação pelas demandas sociais, ele está justamente dizendo que, na verdade, não importa mais direita e esquerda: o que importa é que um governo capitalista, sendo governado pela direita ou pela esquerda, tenha uma inclinação pelas demandas sociais, para além de uma identificação com a esquerda ou a direita, o que é a democracia capitalista no sentido mais puro. Ele está dizendo que é nessa democracia, que se inclina para as demandas sociais, e somente nela, que os movimentos de esquerda conseguirão realizar as suas demandas, e estes, por sua vez, ficam convencidos disso; e é aí que está a raiz dos nossos problemas. Aqueles que temem a possibilidade de um novo golpe, de um novo regime autoritário, se o PT for tirado do poder, devem entender que a democracia, já consolidada no Brasil (nada de “autocracia burguesa”, portanto), foi capaz de cooptar a esquerda e de, ao mesmo tempo, reprimir brutalmente a extrema-esquerda (sem ficar devendo em nada para os regimes autoritários); e que isso foi feito para consolidar a democracia capitalista como única alternativa para qualquer conquista à esquerda. Portanto, deixemos também de pensar que somos, nós, os anticapitalistas, parte de uma determinada coletividade, chamada de esquerda, que, querendo ou não, incluirá também aqueles que participam e/ou apoiam o governo (ou ficam relutantes em atacá-lo). Que nos definamos como anticapitalistas, apontando como a esquerda (sim, a esquerda) no poder é, na verdade, uma esquerda capitalista, a esquerda do capitalismo ou o capitalismo à esquerda, tão capitalista quanto a direita do capitalismo ou o capitalismo à direita. Se insistirmos em nos definir enquanto esquerda, a “verdadeira esquerda”, como parece querer o comentador acima, sempre nos defrontaremos com uma confusão, com um quadro onde fica tudo embaralhado, com armadilhas, com uma dificuldade em diferenciar quem está do nosso lado e quem está do lado de lá, pois na base do governismo existem pessoas, tão experimentadas na luta quanto nós, tão derrotadas na luta quanto nós, tão comprometidas com a defesa dos interesses dos explorados quanto nós, que leem as mesmas coisas que nós, que “falam a mesma língua” que nós, que têm os mesmos ideais que nós, que partilham, enfim, uma mesma “cultura de esquerda” conosco, mas cuja prática está, de fato, em contradição com a sua ideologia, quando defendem e/ou participam do governo. E isso se aplica também aos para-governistas, aos que querem “ser governo” ou apoiar outro governo, verdadeiramente de esquerda: inclua aí os partidos da oposição que estão à esquerda do PT, como o PSOL, o PSTU, o PCB etc. Se continuarmos a pensar em termos de esquerda e direita, e se insistirmos em nos definir enquanto esquerda, a “verdadeira esquerda”, sempre encontraremos, em suma, pontos em comum com aqueles que são governistas ou para-governistas. O que precisamos é que as “bases” dos movimentos de esquerda percam as suas ilusões e integrem, em ruptura com as suas “direções”, junto aos movimentos autônomos, apartidários, que pretendem e se esforçam para desenvolver uma luta que pratique a autogestão, uma mesma e nova coletividade: a dos anticapitalistas. Enfim, este artigo recebeu o título de “O pior cenário possível”, mas poderia ter recebido o título de “Abaixo a esquerda” ou algo do tipo, porque o desaparecimento da esquerda, no sentido que defini acima, seria a melhor forma de permitir a afirmação do anticapitalismo.

  3. Excelente texto, camarada. Mais um excelente texto. Avante com a crítica. Os poucos comentários e a ausência de compartilhamentos apenas indicam que tem acertado o alvo, que a crítica foi certeira.

    Não compartilhar é a nova forma de censura.

  4. Fiquei intrigado com o que o texto chama de “política de identidade” que supostamente estaria corroendo os movimentos anti-capitalistas por dentro. Gostaria que o autor esclarece o que são, e se possível desse algum exemplo, dessas tais políticas de identidade.

    Pessoalmente pensando no assunto me pareceu um ponto equivocado do texto, mas não tenho certeza se o que eu entendi era o que vc quis dizer.

  5. Caro Gabriel, eu me refiro, mais especificamente, à difusão da ideologia multiculturalista e – mais importante ainda – dos modelos de organização que se expressam nesta ideologia. Uma abordagem desse problema pode ser conferida aqui: http://passapalavra.info/2015/01/102033. Outra pode ser conferida aqui: http://passapalavra.info/2014/05/93828 (conferir, em particular, os pontos c e d do tópico 8). Conferir também, por exemplo: http://passapalavra.info/2015/05/104166 e http://passapalavra.info/2015/06/105085. Hoje, na esquerda, são as questões de gênero que suscitam um embate mais radical entre as ideologias e práticas multiculturalistas – que, a meu ver, vão de encontro à solidariedade e à consciência de classe – e as ideologias e práticas classistas.

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