Mais entranhados nas lutas populares, os movimentos conseguem organizar hoje, mais do que partidos ou sindicatos, os trabalhadores que entraram no exército de reserva. Pensar sobre essas formas de organização e seus problemas intrínsecos é tarefa atualíssima. Por Douglas Rodrigues Barros
Todos sabemos que os caminhos da institucionalidade colocaram o partido da ocasião, o PT, como gestor do capital. Essa máxima, difícil de desdizer, é um dos prognósticos mais evidentes do declínio de parte da esquerda instituída em partidos. O gosto pela gestão dentro do quadro de funcionamento do capitalismo pode levar, sem dúvida, a mudanças qualitativas no terreno social. Entretanto, a instituição está limitada material e espiritualmente pela ordem vigente, e a realização das demandas sociais só é passível de ser levada a cabo, quando o capital está funcionando satisfatoriamente. Caso contrário, como temos assistido atualmente, não apenas se perde o que a pouco se conquistou, como perde-se também conquistas históricas.
Há então para a esquerda uma dialética complicada entre a garantia da institucionalidade – que fortalece contraditoriamente a ordem instituída – e a busca pela transição, que só pode ser efetivada nos marcos de uma radical política social, em que haja o empoderamento de amplos setores sociais. O Partido dos Trabalhadores, em seus primeiros anos, tentou criar políticas de acesso à Política, entretanto, foi barrado por interesses escusos de seus próprios membros e também por parte de setores conservadores da sociedade. E, desse modo, lhe sobrou somente a Instituição.
Parte da esquerda forjada pelos anos petista, assim, perdeu de vista o aspecto de transição, ou seja, perdeu de vista o socialismo. Resignou-se a aceitar políticas públicas que visam estancar o poder neoliberal e; reformistas, acreditam que a defesa das instituições é o que sobrou e a única coisa a ser feita nos difíceis dias atuais. Esta, dentro do escopo da recente história brasileira, é hegemônica.
Por outro lado, todas as diminutas cédulas partidárias e seitas de toda espécie, grupos trotskistas, maoístas, stalinistas etc., são frutos da esquerda sindicalista, que inclusive erigiu Lula e seu partido. Não convém demarcar aqui a longa tradição que o sindicalismo exerceu no Brasil, mesmo porque excederia o objetivo desse texto. Convém demarcar, no entanto, que, dentro do amplo espectro da esquerda, existem dois tipos de atuação ideológica que são determinantes para a manutenção do status quo: a governista e a “radical”.
Para a primeira, existe tal como existia para a antiga esquerda – anterior a 64, cuja órbita era direcionada pelo PCB – uma espécie de desenvolvimentismo possível. Para estes o neoliberalismo não é um resultado do capitalismo, é algo em separado, simplesmente um projeto hegemônico elaborado por Wall Street e pelo governo norte-americano reunido nos vários consensos. Para a segunda, saudosista e ainda ligada a cartilha soviética, o momento da revolução está à espreita e será efetivada pelo profético proletariado, mesmo que este seja, em vários momentos de crescimento e expansão do capital, cooptado pelas benesses do consumo. Falemos delas:
a) esquerda governista.
A esquerda de corte implicitamente keynesiano é a que mais tem voz e, não por acaso, é a mais ouvida atualmente. Sua ideologia baseia-se na noção de que a globalização e o neoliberalismo não são o resultado da lógica do desenvolvimento do capital. Embora, saibam que sim, preferem defender a noção de que foram os consensos malvados dos neoliberais que resultaram no estado de crises que hoje atingimos em escala mundial. Para estes, a defesa do papel do Estado e das instituições terá como consequência o pleno emprego, a dinamização do consumo e, por isso, o acesso e a inclusão de parte da classe trabalhadora.
Entretanto, se é verdade que o neoliberalismo foi efetivado em meio a um consenso, ela é uma meia verdade, pois desde a mudança do padrão ouro para o dólar em 1970, a saída do capital foi sempre a especulação; uma tentativa de jogar para frente a crise, por não haver mais capacidade de absorção da demanda de riqueza produzida. Assim, desliga-se da real produção de riqueza para lucrar, por meio da especulação, com altas taxas de juros e os financiamentos em setores estratégicos.
O neoliberalismo, dessa forma, adentrou as ruas da história econômica, como possibilidade de tomada de lugares estratégicos do antigo Estado de bem-estar social. Uma necessidade do capital que garantisse a possibilidade de investimentos, com margem de lucro alta pelos manipuladores do mercado financeiro. Isso significa que, embora, haja um projeto político e ideológico no neoliberalismo, balizado sobretudo pelo consenso de Washington, ele só existe por uma necessidade imposta pelo capital e não o contrário, como clama diariamente os porta-vozes da reforma.
A retomada do desenvolvimentismo por parte da esquerda governista revelou-se, portanto, como um véu de maia, pois o Brasil não apenas está inserido na economia global, como é joguete nas vacilações e oscilações do capital. Como a história é desgraçada, não demorou muito para que ficasse evidente o engodo desse grupo ideológico, hoje o país enfrenta a recessão. Com efeito, parte dessa esquerda governista ainda enxerga a “alternativa”, no enquadramento da economia por intermédio de reformas de corte keynesiano e um papel preponderante do Estado.
A disputa, desse modo, fica entre um capitalismo neoliberal, maligno e etc., e outro de “rosto humano”. Assim sendo, a defesa das instituições por parte dessa esquerda governista, ao invés de levar para uma alternativa de emancipação, levou para uma alternativa de tentar salvar o capital. Enquanto, os neoliberais apresentam a receita do caos, estes apresentam a receita da ordem.
b) A esquerda trabalhista (radical).
A esquerda trabalhista radical está mais ligada aos “valores” construídos pela ideologia soviética. Muito menos marxista [1] e muito mais bolchevique; esta esquerda se centra num dos polos da sociedade capitalista: o proletariado. Esqueceram, contudo, que historicamente os interesses do proletariado não se revelariam, de todo, incompatíveis com o desenvolvimento do capitalismo.
Embora fique patente que o sofrimento, humilhação e a desumanização para a classe trabalhadora, ainda são pressupostos das economias atrasadas do globo; fato é que o movimento operário com a longa conquista dos direitos abdicou, nos países de economias mais desenvolvidas, pelo menos momentaneamente, de seu papel político. Só agora mediante a crise que se agudiza, volta a rondar, tal como um espectro insistente, a consciência de classe nos trabalhadores europeus. Mas, como no caso grego, parte dessa esquerda luta pela defesa e manutenção do trabalho, e raramente se ouve uma voz dizendo: “trabalhar menos, para trabalharem todos!”.
É preciso ressaltar que no Brasil o longo período de agitação e greve juntamente com a formação da CUT (Central Única dos Trabalhadores) em 1980, fora o que forjou a esquerda trabalhista radical e, ao mesmo tempo, fechou as cortinas das lutas operárias no país. Infelizmente, o que reina hoje em termos oficiais de organização de trabalhadores é um corporativismo de setores trabalhistas que pedem somente o que precisa para sobreviver bem, dentro é claro, da ordem vigente. Sem esquecer do famoso calendário de greves efetivadas para, como dizem no futebol, “cumprir tabela”.
Entretanto, esse tipo de organização cada vez mais encontra forte resistência de trabalhadores que se emancipam do burocratismo das centrais sindicais e organizam-se livremente, como ocorreu com as greves de ônibus em Salvador. O problema é que grande parte dessa esquerda dita radical nega a dinâmica de que o trabalho é face da mesma moeda do que se chama Capital. Muito ligado à ética protestante do trabalho – sim eles fazem, mas não sabe que fazem! – vê nele a possibilidade de emancipação, a despeito da alienação e da coisificação da vida, imperantes na sociedade que mais trabalhou em toda história humana.
No entanto, com a precarização do trabalho, via tercerização, e o afunilamento do operariado – que se tornou uma classe até com bastantes privilégios frente a, por exemplo, um operador de telemarketing –, estes grupos entraram em crise porque seu referencial tornou-se raro. O desemprego aumenta espantosamente, levando centenas de milhares para o glorioso exército de reserva. A própria dinâmica do desenvolvimento e colapso do capital que se evidencia atualmente tem levado à crise desses grupos. Assim, esses grupos ficaram espalhados por locais supostamente “estratégicos”. Com uma doutrina pouco atraente e com membros afastados do dia-a-dia da maioria, já não detém o mínimo de organicidade com a massa da população. Sobrando para esta as igrejas, bares, ONGs e os movimentos sociais. E, é aí que surge uma novidade.
c) Os movimentos sociais.
No capitalismo brasileiro, a possibilidade de se incluir pessoas historicamente segregadas foi efetivada, de maneira problemática e quantitativamente, somente nos anos da gestão petista. Foi nela que tivemos um salto estatístico do número de acesso a universidade – inclusive pública – e aos bens de consumo. O que resultou nas tolas declarações de Lula sobre o surgimento de uma patética nova classe média. Talvez esse sonho de uma noite de verão para o partido dos trabalhadores, agora tenha se convertido num verdadeiro pesadelo, pois o desdobramento histórico cobra seu quinhão.
Como se viu, o antagonismo existente entre o capital e a inclusão dos menos favorecidos é uma questão de gestão e capacidade de crescimento do capital, pois a busca pela inclusão ajuda a dinamizar a economia e desenvolvê-lo. Coisa que Rosa Luxemburgo já dizia lá atrás. Ao mesmo tempo, a cooptação pelo mundo novo, do feliz consumo, faz seu estrago naquele que, antes sendo oprimido, torna-se um legitimo opressor, tal como o escravo machadiano. O que destrói a lógica reformista de que existindo acesso se poderá chegar à emancipação.
Desse modo, a inclusão e o acesso, embora sejam legítimos, só podem fornecer uma ação política de emancipação se houver a crítica radical contra a sociedade da mercadoria, e o contínuo desenvolvimento da teoria no interior dos movimentos sociais. Mesmo com todos os problemas internos que existem nas diferentes organizações, são estas que tem, não apenas, levado a pauta da transição a frente, como também tem demonstrado formas de organizações anti-burocráticas e horizontais mais eficazes.
Além disso, os movimentos sociais, embora tenham problemas quanto ao caráter específico de suas pautas, que muitas vezes estagnam na perigosa questão da inclusão, estão conseguindo ultrapassar a imediatez das resoluções e adequar-se às necessidades impostas pelo próprio movimento. Mediando, assim, novas relações que surgem no terreno da vida social. Mais entranhados nas lutas populares, os movimentos conseguem organizar hoje, mais do que qualquer partido ou seita sindical, os trabalhadores que entraram no exército de reserva. Pensar sobre essas formas de organização e seus problemas intrínsecos é, portanto, tarefa atualíssima.
Notas
[1] Ela é menos marxista, no sentido, de que o valor do marxismo é o método de análise utilizada por Marx. E, mais bolchevique, porque este se baseia numa ortodoxia dogmática que será repetida inúmeras vezes independente do país que se esteja. Como ocorreu no terceiro congresso da Internacional e, como ocorre até hoje quando estes repetem os conceitos, como se os conceitos não fossem historicamente determinados.
Devemos, de saída, pensar a crise que abateu os movimentos depois, sobretudo de junho
se o sindicalismo é um dos polos da sociedade capitalista, ligados ao setor econômico da produção, não seriam os movimentos sociais essencialmente polos da sociedade capitalista vinculados à reprodução das forças de trabalho?
ou seja, existirá algum motivo para acreditar que dentro de 30 ou 40 anos não estaremos lendo e escrevendo textos sobre como os movimentos sociais em realidade eram apenas mais um polo da sociedade capitalista cujos “interesses são plenamente compatíveis com o desenvolvimento do capitalismo”; convocando a atenção da esquerda para a mais nova modalidade de luta econômica da classe trabalhadora?
Acredito que o artigo expressa outra coisa Lucas. Por não estar diretamente ligado ao setor de produção, mas de reprodução da força de trabalho,como você mesmo escreve, os movimentos sociais tem maiores chances de radicalização por cuidar do forte contingente do exercito de reserva, que a cada dia cresce mundialmente. Já os sindicatos estão limitados a defensiva que esteve sempre ligada a sua atuação.
Lucas,
existe sim. Mas o texto deixa bem claro que certas insitituições e conceitos assumem diferentes funções sociais de acordo com o período histórico. Os movimentos sociais podem ser cooptados pelo capitalismo? Claro que sim. Já não é de hoje “movimentos sociais” patrocinados pelos patrões.
Alias, o texto fala do presente. Acredito que o autor não tenha o objetivo de profetizar nada.
No contexto brasileiro o autor cita o PT e a CUT como modelos para a crítica aos partidos e sindicatos mas quais movimentos sociais tem em mente quando afirma que estão a superar o imediatismo das resoluções e pautas e criar novas relações antiburocráticas e horizontais? Na prática que respostas esses movimentos tem conseguido dar no sentido de avançar na transição de uma sociedade pós-capitalista? Ou mesmo diante do retrocesso de direitos na conjuntura nacional o que eles tem feito?