Por Daniel Caribé
A classe trabalhadora se apresenta hoje numa miríade de frações. A fragmentação a caracteriza e não a unidade. Claro que cada uma dessas frações se entende dentro de suas especificidades e, quando cada uma delas constrói suas lutas, estas só podem ser plurais. Se o objetivo maior é o de, dentro dessas especificidades, criar solidariedade e identificação entre as mais diversas frações, não será com a transposição mecânica de táticas e estratégias de uma fração para outra que se obterá algum resultado prático.
Quando se fala em fração da classe trabalhadora, faz-se referência a cada conjunto dos trabalhadores submetido a uma determinada relação de produção. O essencial para determinar de qual forma se está a explorar os trabalhadores não é o produto ou serviço entregue ao final da produção, mas as tecnologias e as formas de organização do trabalho empregues, as qualificações exigidas para desempenhar tais funções e a intensidade da exploração sob a qual estão submetidos os trabalhadores. Por exemplo, um trabalhador de uma rede de fast food entrega aos consumidores um produto parecido com o que é entregue pela padaria da esquina. Entretanto, é bem provável que os trabalhadores de cada empreendimento estejam submetidos a dinâmicas de trabalho bastante distintas. E afirmar isso não necessariamente significa que o produto ou serviço entregue não exerce algum papel nas lutas sociais, conforme mais à frente veremos.
Entre as formas de luta empreendidas pelos trabalhadores submetidos aos mais diferentes processos de trabalho e nos mais diferentes tempos, a greve ainda é considerada a ação mais comum e universal. Contudo, se assumirmos o pressuposto de que a fragmentação da classe trabalhadora nos coloca sob diferentes formas (e intensidades) de exploração, a greve só pode ser entendida como universal se também for capaz de variar de contexto a contexto.
Fiquemos com um tipo específico de greve: a “greve de pijama”, cada dia mais comum entre os trabalhadores dos serviços públicos. Nesse tipo de greve as pessoas simplesmente deixam de ir trabalhar, nada além disso. Nenhum processo de organização no local de trabalho se sucede, nem questionamentos mais incisivos acerca das relações de trabalho. Os trabalhadores deixam na mão dos dirigentes sindicais – inevitavelmente burocratas neste contexto de apatia – a responsabilidade de negociar com os patrões o aumento salarial e um ou outro benefício a mais. Não vamos entrar nos melindres desse processo, vamos apenas supor que os sindicatos cumpram a sua função institucional de representar aos interesses dos trabalhadores e que as empresas não utilizam de métodos ilegais para quebrar a resistência, mesmo que apática.
Neste tipo de greve – e precisamos encarar isso sem moralismos – os trabalhadores encontram na aparente ação coletiva e ativa o escudo que os protege do que de fato ocorre: uma ação individual e ativa. Na realidade, na “greve de pijama” cada trabalhador está recuperando individualmente parte da exploração do trabalho que não lhe foi remunerada. Com o tempo livre, livre do trabalho e livre das atividades da greve, os trabalhadores podem cuidar da saúde, participar de atividades culturais, passar mais tempo nos botecos ou nas igrejas, qualificar-se para novos empregos e por aí segue. Em um cenário otimista, ele recupera tempo livre sem perder o salário. Não perdendo o salário, independentemente dos outros resultados da greve, ele sai vitorioso. E os patrões saem fragorosamente derrotados, porque pagaram os salários e não extraíram valor no período da paralisação das atividades produtivas.
Obviamente nem todos os trabalhadores podem se dar ao luxo de fazer “greve de pijama”. A maioria tem mesmo é que fazer piquetes e assumir o confronto com os patrões e contra os demais trabalhadores que se recusam a aderir às mobilizações. A greve passa a ser aí uma atividade coletiva e ativa. E isso levanta outras questões que colocaremos mais à frente. O que importa agora concluir é que, independentemente do tipo de greve, caso sejam ao menos mantidos os salários e não aconteçam demissões, ela tira dos patrões e dá aos trabalhadores. A radicalidade da greve é o que vai fazer os trabalhadores avançarem ainda mais sobre os ganhos regulares dos patrões – ou, em última instância, impor novas relações de produção, sendo estas não necessariamente anticapitalistas.
Por outro lado, quando admitimos que a classe trabalhadora é fragmentada não é só para dizer que ela age de diferentes formas. Também podemos assumir que em determinados momentos os interesses de cada fração entra em contradição com os interesses das outras e a greve, ao tirar dos patrões para dar aos trabalhadores diretamente envolvidos na atividade, pode também tirar dos demais. O que significa, na prática, diminuir a exploração de uns para intensificar a de outros.
A existência da fragmentação dos trabalhadores não impede, entretanto, que os mesmos se identifiquem por outros meios. Por mais que os processos produtivos sejam concretos, as frações são abstrações – fora os momentos de acirramento das lutas (que é quando se chega a algum tipo de consciência de classe). No cotidiano os trabalhadores se veem enquanto consumidores, situando-se na outra ponta do modo de produção. É a mercadoria que dá o tom das relações entre as pessoas.
Essas mercadorias que são entregues aos trabalhadores, seja na forma de bens materiais ou na de serviços, vão ser determinantes nos dilemas que os trabalhadores têm de enfrentar quando entram em greve. O produto do processo de trabalho interfere na forma da greve, na estratégia a ser adotada, mas não determina a qual fração pertence os trabalhadores grevistas como já afirmado. Cria-se assim um quadro complexo. Os trabalhadores no processo produtivo se diferenciam a partir da forma como a própria produção é organizada, mas para os outros trabalhadores, quando não há uma generalização da consciência de classe, eles se igualam pela mercadoria que entregam.
Foquemos em um exemplo, este mesmo do trabalhador de um restaurante de fast food e similares. Os trabalhadores das redes de fast food, dos grandes supermercados e das grandes magazines pertencem à mesma fração porque é comum migrarem de uma para outra atividade e a lista delas é muito mais extensa do que as aqui lembradas. As qualificações exigidas são praticamente as mesmas, assim como os salários pagos. O sistema educacional formal, mesmo que precário, dá conta da tarefa de fabricar estes trabalhadores.
É verdade que inicialmente algumas destas atividades exigiam qualificação um pouco diferenciada do grosso da classe trabalhadora, mas não tão elevadas quanto a dos trabalhadores de colarinho branco. Dessa forma, a meta dos capitalistas passa a ser a de não só automatizar o processo produtivo, mas também o de tornar cada vez mais ampla a parcela da classe trabalhadora com qualificações do mesmo nível, tirando suas especificidades. Esse processo de hegemonização da formação dos trabalhadores, que estabelece o mesmo conjunto de qualificações para as mais diversas atividades produtivas, por um lado permite que os salários sejam rebaixados, pois diminui o poder de barganha de cada trabalhador; e por outro amplia a fração de classe elevando sua mobilidade horizontal. Essa hegemonização da classe trabalhadora, ou o inchaço de determinada fração, possibilita a disseminação de táticas de luta, potencialmente facilitando a superação da fragmentação imposta. As greves, por outro lado, tornam-se cada vez mais ineficazes se realizadas de forma isolada em cada unidade produtiva considerada; mas abre-se a possibilidade para a realização de lutas mais amplas.
Para esses trabalhadores há dois impedimentos quanto às greves. O primeiro é a impossibilidade de se fazer uma “greve de pijama”. O outro é que a greve tradicional, quer dizer, simplesmente parar de trabalhar (mesmo que com mobilizações), causa impactos enormes aos patrões e pouco impacto aos demais trabalhadores. O nível de repressão a estes trabalhadores é tão forte e sua substituição por novos trabalhadores tão fácil que greve sem real mobilização significa demissão imediata daqueles que primeiro pararam as atividades. Ou é um processo amplo ou não vai ser nada. Por outro lado, não trabalhar ou trabalhar em um ritmo de exploração mais brando diminui significativamente o lucro dos patrões, o que acaba por demandar uma rápida solução para o conflito. Nesses casos, a greve expressa o acirramento do conflito de classe, pois os patrões têm muita dificuldade de jogar uns trabalhadores contra os outros não diretamente envolvidos, já que a mercadoria entregue aos demais trabalhadores pode ser facilmente substituída por similares produzidas em outros circuitos da economia ou em demais unidades produtivas em pleno funcionamento. Tais greves têm mais propensão a serem apoiadas, divulgadas e protegidas pelas demais frações da classe trabalhadora.
Não temos condições aqui de especular sobre os problemas e efeitos das greves para cada fração da classe trabalhadora. Muito já foi dito sobre a greve dos “operários-padrão”, os operários das fábricas. Já para os trabalhadores de colarinho branco, pouco se escreve. Por outro lado, nem sequer sabemos se um camelô pode ou não ser considerado trabalhador e, se for trabalhador, o que significaria uma greve para ele, quais as formas de luta que o levariam a atingir os objetivos pretendidos e contra quem elas deveriam ser direcionadas. Mas vamos no ater à problematização do significado e das consequências das “greves de pijama” para outra fração da classe trabalhadora: os servidores públicos de saúde e educação.
A cada dia os servidores públicos em geral são submetidos à mesma dinâmica de fragmentação pela qual já se encontra o conjunto dos trabalhadores. A cada atividade dos serviços estatais, considerados “públicos”, é imposta uma forma e uma intensidade específica de trabalho. Não só as mais diferentes qualificações e profissões coexistem no serviço público, mas também as mais variadas remunerações pelo trabalho e as mais distintas formas de controle da produtividade. E o produto entregue por “categoria” também os coloca em relação particular com o conjunto da classe trabalhadora. De qualquer forma, o produto entregue pelos servidores públicos – em especial os de educação e saúde – carrega uma contradição adicional, porque se insere tanto no ciclo de produção de valor para os capitalistas quanto na recuperação da mais-valia por parte dos trabalhadores.
Os serviços educacionais, por exemplo, têm por função fabricar novos trabalhadores (mesmo que haja recusa por parte dos estudantes de se verem assim, apesar da frequente pressão da família e das demais instituições para que o jovem aceite seu papel passivo). Quanto melhores trabalhadores os profissionais dos serviços educacionais fabricarem (quantidade e qualidade), mais valiosos eles serão considerados. Mesmo que as novas ferramentas educacionais – principalmente nos meios universitários, mas não só – usem os estudantes como se trabalhadores já fossem durante o processo formativo, a grande maioria ainda é apenas uma mercadoria para os gestores das escolas (inclusive as secretarias de educação das prefeituras e dos estados) e a recuperação da exploração deve ser posta na conta dos pais.
Já para os trabalhadores da saúde, por mais que o controle dos corpos (biopoder) também seja uma prática de exploração, os serviços prestados estão diretamente ligados à reprodução do capital: o paciente, ou o trabalhador se quisermos entendê-lo como algo além de um corpo, ao procurar o sistema de saúde, está indo atrás de recuperar sua força de trabalho. Ao manter-se saudável, torna-se apto a continuar no ciclo de exploração, mas também melhora a sua própria vida. E por mais que o capitalismo se torne cada dia mais totalitário, por mais que todas as dimensões da vida estejam a cada momento mais subsumidas ao sistema de exploração, há ainda sujeitos que reservam espaços e tempos que, se pelo menos não se opõem, ficam à margem dos sistemas produtivos baseados na exploração do trabalho. Portanto, o profissional de saúde ao atender o trabalhador na situação de paciente devolve a ele parte daquilo que ele entregou. Da mesma forma que o capitalista quer nos explorar de forma mais intensa e por mais tempo, queremos viver melhor e por mais tempo.
Mas, quando um trabalhador de saúde atende um outro trabalhador qualquer, que acontece com ele próprio? Quanto melhor for o atendimento (quantidade ou qualidade), mais mais-valia ele, enquanto trabalhador também, entrega ao Estado, seu patrão. Ele intensifica a sua própria exploração. É um dilema que sempre aparece a um trabalhador de saúde que se entende enquanto tal. Pois a preguiça, a depressão (formas de resistência individual) ou até mesmo a greve, ao mesmo passo que diminuem a própria exploração, aumentam a exploração dos demais trabalhadores. E, sendo os gestores do Estado gestores capitalistas, eles jogam com essa contradição para diminuir os salários. Assim, por vias puramente ideológicas, podem provocar um comprometimento com o trabalho para além da remuneração entregue.
O que significa para esses trabalhadores – os trabalhadores do Estado que entregam serviços e produtos que tanto servem para reprodução do capital quanto para a recuperação da mais-valia – fazer uma greve?
Diferentemente dos trabalhadores das redes de fast food, um trabalhador da educação ou da saúde encontra pela frente, em oposição a sua greve, primeiro os outros trabalhadores e só depois os patrões. Os patrões, no caso os gestores do Estado (incluído os políticos eleitos e os seus partidos), só podem ser atingidos quando o conjunto dos trabalhadores passa a apoiar a greve e o foco muda dos reclames para quem de fato é responsável pela qualidade dos serviços. É só a partir daí, e não pela simples paralisação das atividades, que estes gestores passam a perder seus lucros – que nesse caso se expressa na incapacidade de ser manter enquanto gestores do Estado, ameaçando a sua perpetuação na função.
Uma “greve de pijama”, assim, recupera parte da mais-valia entregue pelo próprio trabalhador do Estado, mas o outro lado prejudicado não é necessariamente o dos patrões. A “greve de pijama” é plenamente realizável para esses trabalhadores, mas é cada vez menos eficaz. São os outros trabalhadores que pagam a conta na maior parte dos casos. Se por um lado as greves dos trabalhadores do Estado podem ser articuladas de forma mais livre, pois a repressão é menos intensa do que no caso dos outros trabalhadores, por outro seu poder de obter ganhos reais é cada vez menor.
No fundo, a “greve de pijama” expressa a perda de importância de determinadas frações da classe trabalhadora que só podem recuperá-la em relação de solidariedade com os outros trabalhadores. Enquanto os capitalistas combatem os trabalhadores precários ou subqualificados expandindo a fração, a solução para combater a greve dos trabalhadores de saúde e educação do serviço público é exatamente a oposta: deixar que morram por inanição. Mesmo sendo os sistemas educacional e de saúde imprescindíveis para manter e criar trabalhadores, cada vez mais se formam novos trabalhadores por fora das escolas e cada vez mais os mantêm saudáveis através de processos burocratizados.
É claro que aqui excluímos os trabalhadores que exercem funções diretamente relacionadas à manutenção do próprio Estado. Por quanto tempo os gestores do Estado ignorariam uma greve dos trabalhadores da Receita Federal? Já os professores e os técnicos da educação, esses podem ficar um ano em greve e pouco abalar a quem de fato se pretende atingir. Quando há pressão para o retorno das atividades, esta quase sempre vem dos pais dos estudantes. Em tempos de recessão econômica e consequente adoção da política de austeridade, quando os gastos do Estado com as políticas sociais são cortados e não há a necessidade de produzir novos trabalhadores na mesma intensidade de antes, uma greve nas escolas e universidades chega a ser providencial à própria tecnocracia. E se a revolta da população não fosse tão forte e rápida quando os serviços de saúde são paralisados, é bem provável que as greves destes trabalhadores durassem tanto tempo quanto as greves dos trabalhadores de educação.
Contudo, se há esses limites, há também potencialidades. Se para o conjunto dos trabalhadores a relação que se estabelece com os outros é mediada pela mercadoria, ou seja, a relação se restringe à entrega de um produto ou serviço (que na maior parte pode ser substituído por outros similares), então, no caso dos trabalhadores que entregam serviços públicos, o trabalhador além de consumidor também é produto. Ele próprio é a mercadoria principal, por mais que também seja consumidor. Por outro lado, o fato de ser consumidor e produto, não tira deles, dos trabalhadores, a capacidade de serem sujeitos. E eles se podem ver enquanto sujeitos exatamente porque educação e saúde, entre outros serviços estatais que assumem o caráter de públicos, apesar de totalmente inseridos no circuito das mercadorias, não são vistos apenas desta forma pelos trabalhadores.
Mas como dar este salto e incorporar os demais trabalhadores em um processo de luta que, de imediato, só os prejudica?
Os “Quadrinhos sobre a Greve” que ilustram o artigo são de Silvana Martins e foram inspirados na obra de Serguei Eisenstein.
Depressão como forma de resistência individual???
Perder um dedo pode até ser uma forma de resistência individual, caso tenha sido feito deliberadamente (o que deve ser tão raro que nem vale a pena discutir). Mas não conheço alguém que tenha capacidade de se autoinfligir uma depressão. Se no lugar de ‘depressão’ é ‘simulação de depressão’, aí tudo bem.
Depressão, consequência do trabalho, não resistência ao trabalho. Que eu saiba o INSS não começou a pagar ainda benefícios por formas de resistência ao trabalho, apenas por doenças geradas pelo trabalho.
Leo Vinicius, por acaso a depressão não seria consequência de uma descrença profunda no mundo?
Por outro lado, o que podemos dizer dos usos que muitos trabalhadores fazem/faziam dos seguros desempregos? Por acaso não eram/são pagos pelo Estado?
Concordo que é uma reação involuntária quando genuína (sem entrar aqui no possivelmente longo debate entre o entrecruzamento entre consciência e inconsciência). Mas seria a consciência do sujeito que caracteriza um processo de luta? Penso que na resposta desta última questão onde resite a caracterização desta modalidade de luta como passiva.
Mas ainda penso em uma outra questão, que tem a ver com a medicalização da depressão. Não significaria isto a instituição de uma mediação técnica frente a um problema de fundo social (como você mesmo diz, de consequência de processo de exploração), ditando assim os limites do que seriam socialmente inaceitáveis para a exploração do deprimido?
E de forma ainda mais ampla e geral, toda e qualquer resistência ao trabalho não seria uma consequência do próprio processo de exploração?
AUTONOMISMO CHAPA BRANCA
Se o dedo for o menor de todos – o popular mindinho -, a perda talvez seja o investimento numa carreira: sindical e/ou política.
E se o sindicato for o dos metalúrgicos e o partido político se chamar ‘dos trabalhadores’, periga de jeca total – ex-tatu atelépode – devir presidente da república pindorâmica.
Para maior glória do kkkapital…
Certa vez, em conversa com um colega, ele sugeriu que as greves e paralisações no âmbito universitário deveriam se dar de forma diferente. Mas acredito que o princípio pode ser estendido a outra instituições públicas que prestam serviços aos trabalhadores, como hospitais e escolas.
Sabemos que a Universidade e seus programas e departamentos internos, cada vez mais, são geridos através da imposição de índices e metas, que por sua vez culminam numa dada pontuação. No entanto durante uma greve, por exemplo, sobretudo as que Caribé chamou de “greve de pijama”, o que acontece é a que produção desse índice não só não é interrompida como tem oportunidade de ser acelerada. Afinal, quantos aqui já não aproveitaram o tempo de paralisação para “pôr em dia” algumas tarefas atrasadas, concluir escritas de artigos, participar de eventos em outras instituições que não estão paralisadas e, muito importante, atualizar o Lattes?
Nesses casos, o efeito prático da greve só é danoso para aquela parcela da classe trabalhadora que usufrui dos serviços prestados pela instituição, porém, a mediação da produtividade ,que é a cada vez mais importa, continua inalterada, com chances até de ser aumentada.
Esse meu amigo sugeria, no que estou de acordo e penso que possa ser uma boa chave para pensarmos mobilizações futuras no âmbito de instituições similares, era que as recusas deveriam ser pensadas nos termos da produção dos índices e não das atividades em si: mantêm-se as aulas (ou o atendimento num hospital, por exemplo), mas paralisa-se o preenchimento de formulários e de quaisquer sistemas que visam pontuações e rankeamentos.
Difícil vai ser ficar de olho nos fura-greve de novo tipo, mas é uma forma bem interessante de manter a utilidade de serviços tão importantes a certas parcelas dos trabalhadores, favorecendo a conquista de apoios, ao mesmo tempo que interrompe um mecanismo de controle cada vez mais em voga e caro aos gestores de nosso tempo.
Rodrigo Araújo,
Respondendo por partes:
“Leo Vinicius, por acaso a depressão não seria consequência de uma descrença profunda no mundo?”
Não. Com que base se afirma algo assim? Se você dissesse que isso é sintoma até faria mais sentido.
“Por outro lado, o que podemos dizer dos usos que muitos trabalhadores fazem/faziam dos seguros desempregos? Por acaso não eram/são pagos pelo Estado?”
Pois então, por que será que o Estado paga por afastamento por depressão e não por “preguiça”? Claro que o Estado pagar ou não pagar um benefício não diz nada sobre uma prática do ponto de vista dos trabalhadores. Mas é preciso estar completamente, eu disse, completamente, alheio à realidade dos trabalhadores para aventar que uma doença, ou doenças que acometem trabalhadores possam ser uma forma de resistência (contra o capital suponho). Pior, colocar uma doença no mesmo pé da vaga “preguiça” (mesmo que ache que todos devem ter direito a ela). Pergunto: a quem serve tal tipo de visão de mundo? A quem serve colocar doenças do trabalho no mesmo status da “preguiça”? A linguagem não é mera descrição, ou melhor, toda descrição visa ao mesmo tempo uma ação, parte de um interesse. Se já sabemos que só a esquerda é capaz de implementar certas políticas anti-trabalhadores, também vemos agora que só a extrema-esquerda é capaz de aprofundar uma descrição/ação que nem os patrões tem a ousadia de levar tão longe, a de equacionar diagnósticos de doenças consolidados no estado da nossa ciência e acidentes de trabalho com “preguiça”, má vontade etc. etc. Sim, porque quem afirma que depressão é uma forma de resistência individual deve considerar logicamente as demais doenças e os acidentes de trabalho como forma de resistência da mesma maneira. E chegamos ao ponto que é a extrema-esquerda que afirma que o eletricitário que perde os dois braços e a perna por ter encostado no fio de alta tensão acabou de praticar um ato de resistência!!!
“Concordo que é uma reação involuntária quando genuína (sem entrar aqui no possivelmente longo debate entre o entrecruzamento entre consciência e inconsciência). Mas seria a consciência do sujeito que caracteriza um processo de luta? Penso que na resposta desta última questão onde resite a caracterização desta modalidade de luta como passiva.”
Claro que nem todas as formas de luta são conscientes, assim como nem todas as ações na atividade de trabalho são conscientes. Mas ser acometido por uma doença não é uma ação!!!
Fazer corpo mole é uma ação, ficar parado é uma ação… Ficar doente não é. Lutar é agir!!! Sinceramente, me espanta a confusão de conceitos. Se tudo vira resistência e luta esses conceitos não definem mais absolutamente nada e são inúteis. Mesmo uma luta individual e passiva é uma forma de ação. A doença não é ação, pelo contrário, ela pode ser definida pela diminuição da capacidade de agir.
“Mas ainda penso em uma outra questão, que tem a ver com a medicalização da depressão. Não significaria isto a instituição de uma mediação técnica frente a um problema de fundo social (como você mesmo diz, de consequência de processo de exploração), ditando assim os limites do que seriam socialmente inaceitáveis para a exploração do deprimido?”
Que os sofrimentos psíquicos são medicalizados e com isso não se coloca em questão a organização do trabalho por trás deles, é fato. Mas não entendi a pergunta.
“E de forma ainda mais ampla e geral, toda e qualquer resistência ao trabalho não seria uma consequência do próprio processo de exploração?”
Mas claro, as relações causais vão ao infinito. Mas não vejo o ganho que se tem em afirmar isso.
Por fim deixo o trecho abaixo de um artigo:
“Os bancários nos revelaram que a depressão se apresenta entre eles perante um cenário dominado pela ética do individualismo, do espírito da competição, da cultura do narcisismo e exaltação do eu. Referidos fatores contribuíram para que os trabalhadores bancários, presos às armadilhas de seus próprios desejos (encarreiramento e manutenção no emprego), deflagrassem a crise da solidariedade do coletivo do trabalho e a destruição das relações de confiança” (Vivências depressivas e relações de trabalho: uma análise sob a ótica da psicodinâmica do trabalho e da sociologia clínica http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-39512014000300011 )
Leo Vinicius, é um procedimento muito duvidoso isolar um único termo de um texto e daí inferir uma visão de mundo. Para se chegar a esta conclusão precisaria no mínimo identificar a estrutura significativa do texto, compará-la ao conjunto da trajetória e dos escritos do autor para expor os motivos que o levariam a aderir a esta visão de mundo. Precisaria provar materialmente a capacidade de existir esta visão de mundo no autor, já que é a situação de classe a condição para edificação de uma visão de mundo. E, obviamente, você sabe que nem o conjunto do texto, nem o conjunto dos escritos do autor, menos ainda a trajetória dele até o momento corroboram com a insinuação sobre a adesão a uma visão de mundo tecnocrática ou coisa que o valha. Então, por favor, deixe de logro. Você fez um estardalhaço para ofuscar ter admitido que o argumento sobre o INSS pagar ou não o benefício não tinha validade alguma.
A primeira afirmação que fiz foi baseada em um senso comum e talvez pudesse sim ser qualificada de forma mais adequada como um dos sintomas. Mas a partir de seu questionamento fiz uma pesquisa e descobri que a depressão é uma doença multifatorial. Existem fatores genéticos, hormonais, etários, medicamentosos, psicológicos (estresses e traumas) e sociais (de interação com o meio). Curiosamente encontrei um lugar onde dizia que, ao contrário do que o senso comum pensa, normalmente a depressão não decorre de fatores de interação com o meio, mas estaria mais associada aos outros fatores mencionados, o meio servindo muito mais como gatilho disparador do que como causa da doença.
Curioso e significativo, porque quem sabe o que é trabalhar conhece exatamente que as condições influenciam, e muito, na aquisição desta doença. Mas obviamente afirmações como esta são totalmente ideológicas. E é sabido que as condições da vida moderna (cujo trabalho ocupa no mínimo 1/3 do dia, sem contar os momentos de cuidado e formação necessários para trabalhar) tem aumentado bastante os casos de depressão. O artigo que você cita também corrobora isto, já que o quadro ideológico ali descrito como desencadeador da doença compõe o instrumental tecnológico contemporâneo que condiciona o trabalhador ao trabalho. Desde Elton Mayo que isto é visto com muita clareza pelos gestores, mas pelo visto muita gente ainda engatinha quando o assunto é a racionalização do trabalho. Quando o objetivo é desvendar as causas do ponto de vista da interação entre as classes, o que interessa saber é qual destas relações desencadeia determinado quadro. Deste ponto de vista eu insistiria que minha afirmação inicial é parcialmente verdadeira, que a descrença profunda no mundo é causada por relações opressivas decorrentes da exploração e que isto é um dos fatores que levam ao quadro depressivo. Somente agregaria aí outros elementos, mas que inclusive alguns deles também podem ser consequência deste tipo de relação opressiva.
Mas daí vem outro problema, que é por você não visto: quem é que diagnóstica a depressão remunerada pelo INSS? Um técnico da área médica designado pelo INSS. Problematizar este tipo de relação é fundamental para compreender parte da dinâmica de exploração. Instituições como o INSS compõem um quadro de organizações que existem justamente para não deixar o conflito social chegar a níveis incontroláveis. Não é outra a história das instituições trabalhistas do período varguista. Sem ver isto as pessoas passam a acreditar que o capitalismo é sustentado exclusivamente com um troglodita munido de um tacape, quando na verdade os capitalistas dispõem de um arsenal tecnológico muito mais amplo. De toda forma é sabido que a depressão só é diagnosticada quando o sujeito chega ao fundo do posso, se tornando incapaz de qualquer interação com o meio (e com o trabalho, principalmente). Não se questiona fatores de risco, ou até mesmo estes fatores são usualmente minimizados, como citei anteriormente. Aliás, o INSS anda liberando benefícios só pra quem está muito mal mesmo, mesmo em casos de outras doenças mais obvias e isto também é significativo do momento, mas deixemos isto pra outra hora.
De toda forma é de uma obviedade ululante que quando a pessoa entra em estado depressivo ela não consegue mais produzir, e que isto ocasiona quebra na produtividade. Ainda mais quando é uma doença decorrente da exposição do trabalhador a um determinado quadro tecnológico. Por mais inaceitável que isso seja (e eu concordo que é), isto é uma constatação. Se você concorda que não é a consciência que determina uma modalidade de luta, é forçado também a concordar que uma doença, que tem entre as causas fatores psicológicos e sociais, acaba se constituindo como forma uma resistência da mente ao processo de exploração. Simplesmente isso, vida escrota, gente escrota, deu tilt e parou. Não serve mais como capital variável. E todo o conjunto de questões sobre os fatores psicológicos e sociais a desencadear a depressão nunca serão admitidos por nenhum capitalista, já que isso implicaria em admitir que a maravilha do mundo deles causa pessoas incapacitadas para o trabalho que dizem ser tão bom. Me desculpe a comparação totalmente desproporcional, mas eu fico imaginando o que Marx responderia se alguém lhe objetasse que se escrevesse o capital estaria ali explicando para os capitalistas como explorar os trabalhadores.
Por tudo isso parece bem leviano considerar que o autor iguala depressão e a preguiça, quando na verdade ele somente as enquadrou dentro de uma modalidade de resistência comum e mesmo assim sob determinados critérios bem específicos, que é o fato de se constituírem enquanto individuais e passivas. Individual por motivos óbvios e passiva porque não tem capacidade de questionar por si o quadro de exploração (já que é completamente assimilada pelos mecanismos de exploração, tais como os técnicos do INSS que já mencionei e que fazem a mediação social do conflito, dizendo o que é ou não depressão, ou seja, dizendo o que é ou não aceitável como depressão). Apesar disso, uma situação de depressão pode se converter em uma luta ativa e coletiva. Basta o sujeito não ter tratamento ou assistência e isso indignar seus colegas de trabalho a ponto de se levantarem contra a precariedade da assistência que recebem. E é por este motivo, a capacidade de se tornar em algo mais amplo, que é considerada como uma modalidade de luta, já que pode ter implicações sobre os demais trabalhadores. Se é boa, útil, ou se é precisamente o inverso disso é uma outra questão. Pode concordar ou não, mas precisa dizer porquê e não somente colocar em suspeição.
Não dá pra aceitar o sujeito se fazer de desentendido e chutar pra relativização total. Quando levantei a relação de causa e efeito me referia ao fato de que todas as interações e resistência elencadas pelo artigo decorrem do processo de exploração (o que você chamou de trabalho) e que isto é uma obviedade. Eu estava questionando seu encadeamento lógico que surgia abruptamente, sem maiores explicações além de um jogo de palavras.
No mais, o artigo que citou é útil para conhecer a condição de uma categoria da qual não faço parte, mas de toda forma corrobora para que a depressão seja vista como uma reação ao quadro prático e ideológico a que são submetidos os trabalhadores. É uma reação que pode destruir o próprio indivíduo, mas não deixa por isso de ser uma reação.
Rodrigo,
Aqui neste site em muitos artigos buscou-se apontar o que havia ou o que há de familiar ao fascismo no pensamento e práticas da esquerda. Isso nunca significou dizer que os movimentos ou grupos com essas práticas eram fascistas. Portanto não sei por que apontar o que existe de familiar com uma visão de mundo patronal no pensamento de extrema-esquerda possa significar automaticamente desqualificar o interlocutor.
Apontei o absurdo que é, para mim, colocar uma doença como forma de resistência no sentido de luta de classe. Algo que nem é central ao texto, por isso fiz um comentário curto inicialmente. Mas se, pelas suas respostas, tal absurdo, do meu ponto de vista, é defendido a ferro e fogo, não se trata de um descuido, mas sim de algo mais profundo.
O que você escreveu acima e reproduzo a seguir deixa mais claro o que me parece sem sentido:
“Apesar disso, uma situação de depressão pode se converter em uma luta ativa e coletiva. Basta o sujeito não ter tratamento ou assistência e isso indignar seus colegas de trabalho a ponto de se levantarem contra a precariedade da assistência que recebem. E é por este motivo, a capacidade de se tornar em algo mais amplo, que é considerada como uma modalidade de luta, já que pode ter implicações sobre os demais trabalhadores.”
Você percebe que o que você escreveu não se aplica apenas à depressão mas a toda e qualquer doença ou acidente de trabalho? Aliás, se aplica às consequências da própria repressão estatal etc etc etc?
Pela sua definição, tudo que possa levar a uma luta ativa e coletiva é por esse motivo uma forma de luta. Pois a mesma hipótese que você aventou sobre a depressão, muito mais frequentemente ocorre em função de acidentes de trabalho com mortes (por consequência as mortes consequentes de acidentes de trabalho são uma modalidade de luta).
Então como é tema inédito, e se achar que é uma boa contribuição para a luta da classe (ou para pensa-la, do ponto de vista dos trabalhadores), seria bom escrever e teorizar sobre os acidentes de trabalho como luta do trabalhador contra a exploração, ou melhor, sobre as lesões ou mortes decorrentes de acidentes de trabalho como luta contra a exploração, para ser mais preciso.
É possível que alguém ache que se trata apenas de exercício de encaixar a realidade numa teoria, mas isso é problema da realidade.
Leo Vinicius,
Para não me alongar mais em um assunto que também considero marginal frente ao conjunto do texto, eu acredito que o ponto seria o de considerar a depressão como uma modalidade de resistência passiva e individual. Tem suas especificidades para ser caracterizada como tal, como o não enfrentamento aberto contra a exploração capitalista, além do fato de não ser deliberada pelo coletivo dos trabalhadores.
Não acho que a depressão possa ser enquadrada como um mero acidente de trabalho, existem muitos outros fatores que permeiam seu acometimento. Mas me espanta você se colocar ao lado da passividade completa do indivíduo trabalhador deprimido frente aos controle exercito pelos técnicos da medicina.
Penso que qualificar doenças como estas, que dependem da interação com fatores psicológicos, como uma modalidade de luta, seja um impulso para que ela seja entendida como uma situação decorrente da luta de classes, podendo assim ser retirada do controle exclusivo da medicalização e a partir daí posta no plano de luta dos trabalhadores contra a exploração.
Eu acho que é preciso diferenciar as coisas: me parece que o Rodrigo não chegou a igualar “resistência” e “luta”. O que ele está afirmando é que a depressão seria uma forma de resistência passiva do indivíduo, mesmo que inconsciente, em relação ao processo de trabalho, e que isso pode desencadear uma luta ativa e coletiva, se os demais trabalhadores se solidarizam com a pessoa doente. Ele não afirmou que “tudo que possa levar a uma luta ativa e coletiva é por esse motivo uma forma de luta”. Além do mais, comparar depressão com acidentes de trabalho, para mim, não faz qualquer sentido. Uma coisa é o esgotamento psicológico do trabalhador, e outra, muito diferente, é o esgotamento físico, que propicia erros na manipulação dos instrumentos de trabalho e, portanto, acidentes (se estamos falando, por exemplo, de acidentes numa linha de montagem ou na construção civil). A única resistência possível ao esgotamento físico, nesses casos, é a recusa em continuar trabalhando, ou, pelo menos, em continuar trabalhando num ritmo de trabalho insuportável, ou sob condições de trabalho insuportáveis. É claro que o esgotamento físico pode ser causado pelo esgotamento psicológico, e vice-versa, mas isso já é outra questão. Sendo assim: 1) acho que a depressão pode ser, sim, uma forma de resistência passiva, inconsciente (outras doenças também podem sê-lo); 2) isso não significa que é, também, uma forma de luta; 3) se estamos discutindo se a depressão é uma forma de resistência passiva e inconsciente, não faz sentido colocar, no meio da discussão, a questão dos acidentes de trabalho, que não são, para começo de conversa, doenças: existe uma diferença entre “acidente” e “doença”; caso contrário, teremos de admitir que todo acidente de trabalho é causado por doenças, por um lado, e que todo trabalhador doente se envolve em acidentes de trabalho, por outro.
Caros, evitei entrar no debate porque nem de perto era este o que pretendia fomentar. Mas é o que temos para hoje…
Sim, afirmar que a depressão é uma forma de resistência (eu disse “resistência individual”, não “luta”) foi irresponsável, não porque não seja, mas porque não tenho elementos para afirmar tal coisa. O que me chega, dos relatos e observações do meu próprio mundo do trabalho (não, Léo, não sou afastado do mundo do trabalho, mas não é minha trajetória funcional que está em questão aqui), é que a depressão, entre muitas causas e consequências, é também uma forma de negar o trabalho. Uma forma não consciente, mas ainda sim é uma rejeição. O trabalhador não só nega o trabalho porque está em depressão (fica impossibilitado de trabalhar); ele entre em depressão porque nega o trabalho (não aguenta mais o trabalho logo adoece). Há os dois movimentos. E isso não significa que todas as causas, muito menos as consequências da depressão, sejam vinculadas ao trabalho.
Mas ninguém nega o trabalho em um acidente de trabalho e uma doença não é um acidente. Se um operário se joga do 20º andar de uma obra ou se ele cai de lá, ambas ações podem ter implicações idênticas para os patrões, inclusive nas indenizações caso se comprove que o suicídio foi causado por uma depressão, mas o acidente não partiu da negação de nada, nem do trabalho nem da própria vida. Portanto, a questão a ser respondida, não por mim, é se as formas inconscientes de negar o trabalho podem ser consideradas formas de resistência. E se estas formas de resistência podem desencadear um processo de luta. Se levantar esta questão é ser fascista ou colaborar com os patrões, nossa…
PS: A sua afirmação/insinuação (“E chegamos ao ponto que é a extrema-esquerda que afirma que o eletricitário que perde os dois braços e a perna por ter encostado no fio de alta tensão acabou de praticar um ato de resistência!!!”) é uma das coisas mais absurdas que tive que ler.
Creio que há um certo equívoco do autor em sua diferenciação das greves no setor público e no setor privado. Sem querer fazer qualquer apologia, é preciso uma retrospectiva histórica um pouco maior para entender a questão.
A partir da década de 90, os trabalhadores do setor privado passaram a sofrer mais ataques que os trabalhadores do setor público. É preciso lembrar que até a Constituição de 1988 era proibido aos trabalhadores do setor público formar sindicatos ou fazer greve. Esse é um dos motivos que do final dos anos 80 e durante os anos 90 grandes (e inéditas) greves foram protagonizadas pelos trabalhadores do setor público, em especial pelos professores e, o que é o principal, nada tinham a ver com “greve de pijama”, ao contrário foram muitas as manifestações que levaram milhares a ocupar diversos espaços públicos.
Esta tática de ação e mobilização continua sendo a forma de luta dos trabalhadores do setor público e, aparentemente, até mais ativa do que nos trabalhadores do setor privado: quantas não são as assembleias em praça pública e quantas não são as passeatas, especialmente dos professores, muitas delas contra ou a reboque das burocracias sindicais a demonstrar suas lutas, tantas vezes reprimidas violentamente pelo estado? Mas, justamente com a chegada “estratégica” do PT ao poder, as greves no setor público foram perdendo a intensidade (assim com no setor privado) por motivos que vão desde o fim da estabilidade no serviço público (poucos sabem, mas não existe mais estabilidade “LEGAL” para o servidor público), a terceirização e precarização (metade dos professores da rede pública de ensino em SP não são concursados, o que poderia ser motivo para fortalecimento das lutas, acaba fragmentando-a), métodos produtivistas de produção, avaliação ou promoção, fiscalização, etc, até um “contrato de trabalho” (na verdade, juridicamente, é um contrato administrativo) com clausulas penais específicas que não se impõe aos trabalhadores do setor privado (há uma legalização do assédio moral através de um regime cruel baseado nas hierarquias do serviço público).
Mais uma vez, que fique bem claro que não se quer fazer qualquer apologia aos trabalhadores do setor público, mas afirmar que a “greve de pijama” é uma de suas características, é fazer coro aos discurso neoliberalizantes de direita. Não que não exista um certo comodismo, uma certa tendência a transferir a responsabilidade da luta à burocracia sindical. Mas isto não é exclusividade do trabalhador público. O trabalhador do setor privado também lança mão deste artifício na mesma medida, afinal, ambos, além de trabalhadores, são consumidores, e num mundo onde domina a mercadoria, a classe trabalhadora passa a ver a luta como mais uma mercadoria que pode ser adquirida das mãos da burocracia sindical.
Pequena sugestão sobre esse dilema:
GREVE E PRODUÇÃO LIVRE
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2014/11/greve-e-producao-livre.html
“Dado que:
a) as greves nos serviços deixam mais em apuros o resto do proletariado do que os próprios patrões. Por exemplo, na saúde, nos transportes (de cargas e passageiros), supermercados, etc.
b) isso acarreta que o resto do proletariado tende a considerar estas greves não como afirmações de sua classe, mas de interesses corporativos, pequeno-burgueses, mesquinhos. (Apenas muito indiretamente, por uma longa e tortuosa cadeia de raciocínios, alguns proletários chegam à conclusão de que os apuros são efeito colateral de uma luta que pode beneficiar a todos.)
c) a greve, além disso, é, há cem anos, um método de luta mais do que domesticado pelos patrões e pelo Estado, através dos sindicatos. E mesmo contra os sindicatos (greves selvagens), as reivindicações das greves, se atendidas, são logo ultrapassadas, por exemplo pela inflação, e por incessantes e permanentes represálias patronais, etc.
Frente a tudo isso, defendemos:
1) a superação da greve pela tática da produção livre, gratuita;
2) a abertura dos meios de produção para a população da cidade, chamando-a para decidir o que fazer e participar da produção (tornando sem significado as palavras “emprego”, “desemprego” e “empresa”). Isso, num único ato, reduz a jornada de trabalho e alivia o resto do proletariado dos apuros impostos pelos proprietários (desemprego, necessidades insatisfeitas e o terror empreendedorista);
3) produções que se revelarem escassas serão submetidas à decisão democrática da população. Porque a escassez causa conflitos (escasso é o que não é suficiente para todos os que desejam, o que causa mesquinhez e propriedade privada) que precisam ser resolvidos – por exemplo, é preciso decidir se é justo que uma produção deva atender primeiro os necessitados, ou se ela deve atender a população mediante outros critérios considerado justos (por ex., participar em alguma outra atividade específica assumida como necessária para todos, ou vouchers pela proporção do trabalho feito, ou até mesmo simplesmente quem chegar primeiro… as possibilidades de critérios são inúmeras);
4) produções que se revelarem abundantes, serão desfrutadas à maneira comunista: “Ninguém vota; nunca a maioria e nem a minoria fazem a lei. Se esta ou aquela proposta reúne um número suficiente para executá-la, quer seja a maioria ou a minoria, então a proposta será executada, se for esta a vontade daqueles que aderem a ela.” (A Humanisfera, 1857). Com isso, supera-se, juntamente com o consumo espetacular, o próprio trabalho enquanto tal.
Dinâmica:
Estes pontos podem ser compreendidos como etapas condicionadas à difusão exponencial da luta. Se, ao efetuar o ponto 1, se perceber uma adesão crescente do resto proletariado à mesma tática de produção livre contra os patrões, passa-se ao 2º, 3º e 4º pontos. Simultaneamente, há a necessidade de espalhar (quebrando o “segredo industrial”) o conhecimento do modo como a produção e os fluxos materiais são interligados e interdependentes mundialmente. Com base nisso, mostra-se a necessidade de que o resto do proletariado de outras cidades e outros continentes passe a adotar a mesma tática. O proletariado se constitui como classe quando ultrapassa todas as fronteiras (nacionais e empresariais) inventadas como “fatos naturais” pelos patrões e privilegiados, numa luta internacionalista contra eles (luta capaz de acabar com todas as guerras).
Objetivo:
A finalidade da produção livre é a solidariedade imediata do resto do proletariado, favorecendo que se adote a mesma tática por toda parte. O proletariado, ao constituir-se como classe autônoma, força, por si só, que a classe dominante e os políticos (de esquerda ou direita, é indiferente) concedam muito mais do que se pode imaginar agora. Além disso, se se tornar uma situação sem retorno, permanente e generalizada, é, por si mesmo, um novo modo de produção no qual os desejos, as necessidades e as capacidades humanas determinam, em livre associação, a produção. Um modo de produção que consiste na auto-realização e auto-satisfação dos indivíduos livremente associados sem fronteiras torna completamente obsoleto o mercado de trabalho (e, consequentemente, torna obsoleto o capitalismo, seja particular, como dos EUA, ou estatal, como Cuba). Ou seja, desaparecem as condições materiais que forçavam a população a aceitar se arrastar por salários em troca da alienação de suas capacidades – de pensar, sentir e agir – ao comando e arbítrio dos donos do dinheiro (os capitalistas: burocratas, empresários, políticos…).
Humanaesfera, novembro de 2014
Bibliografia (com links):
-Eclipse e Reemergência do Movimento Comunista (1972), por Jean Barrot e François Martin
-Contra o trabalho – Teses (1979), por GCI
-Atividade Humana contra o Trabalho (1982), por GCI
-Le Humanisphère (1857), por Joseph Déjacque
-Nova Babilônia (1959-74), por Constant Nieuwenhuys (publicado no Dossiê “Constant”, revista Sinal de Menos nº 5)
-Um Mundo sem Dinheiro: o Comunismo (1975-76), por Os Amigos dos 4 Milhões de Jovens Trabalhadores
-A reprodução da vida quotidiana, por Fredy Perlman
-Grundrisse, A Ideologia Alemã (capítulo: Feuerbach) e Comentários sobre James Mill, por Karl Marx
-What is Dadaism and what does it want in Germany? (1919)”
———————————————————–
E sobre os serviços (já que costumam ser considerados equivocadamente como trabalhos improdutivos):
SERVIÇOS: SUBSUNÇÃO FORMAL
Trecho de Misery and debt (2010), por Endnotes
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2014/04/servicos-subsuncao-formal.html
“[…]Se, como temos argumentado, a reprodução ampliada gera crescimento dinâmico quando o aumento da produtividade libera de alguns ramos capital e trabalhadores que depois são recombinados em indústrias novas ou em expansão, então isto tem consequências importantes para a compreensão do crescimento do setor de serviços. Quase por definição, os serviços são atividades cujo aumento de produtividade é difícil de atingir exceto numa margem. A única maneira conhecida de melhorar drasticamente a eficiência dos serviços é transformá-los em produtos e depois produzir esses produtos em processos industriais, que se tornam mais eficientes com o tempo. Muitos bens são de fato antigos serviços – por exemplo, havia antigamente criados que lavavam as roupas nas casas dos ricos; hoje em dia, as máquinas de lavar roupa executam esse serviço de forma mais eficiente e são elas mesmas produzidas com cada vez menos trabalho. As atividades que permanecem serviços tendem a ser precisamente as que até agora se mostraram impossíveis de serem substituídas por produtos fabricados.
É claro que o conceito burguês de “serviços” é notoriamente impreciso, incluindo tudo, desde os chamados “serviços financeiros” até o trabalho de escritório e o pessoal de limpeza de hotéis , e até mesmo alguns empregos industriais terceirizados. Muitos marxistas tentaram assimilar a categoria de serviços ao de trabalho improdutivo, mas se refletirmos sobre a caracterização acima, fica claro que ela está mais próxima do conceito de “subsunção formal” de Marx. Marx havia criticado Smith por ele ter um entendimento metafísico do trabalho produtivo e improdutivo – aquele produzindo bens e este não – e ele o substituiu por uma distinção técnica entre o trabalho realizado como parte de um processo de valorização do capital e trabalho realizado fora desse processo para o consumidor imediato. Em “Os Resultados do Processo de Produção Imediato”, Marx argumenta que, teoricamente, todo o trabalho improdutivo pode se tornar produtivo, pois isso apenas significa que ele foi formalmente subsumido ao processo capitalista de valorização. No entanto, as atividades formalmente subsumidas são produtivas apenas de mais-valia absoluta. Para ser produtiva de mais-valia relativa é necessário transformar o processo material de produção para que seja passível de rápidos aumentos de produtividade (cooperação, manufatura, grande indústria e maquinário) – ou seja, passível de subsunção real. Quando economistas burgueses como Rowthorn falam de “serviços tecnologicamente estagnados”, eles sem perceber se remetem ao conceito de Marx de um processo de trabalho que foi apenas formalmente subsumido, mas não realmente subsumido.
Assim, quando a economia cresce, a produção real de “serviços” tende a crescer, mas apenas pela adição de mais empregados ou intensificando o trabalho dos trabalhadores existentes, isto é, por meio de produção de mais-valia absoluta, em vez de mais-valia relativa. Na maioria desses setores os salários formam a quase totalidade dos custos, de modo que os salários têm de ser mantidos baixos para que os serviços permaneçam bancáveis e lucrativos, especialmente quando as próprias pessoas que lhes pagam são pobres: assim é o McDonald´s e o Wal-Mart nos EUA – e também o grande proletariado informal na Índia e China.”
—————————-
Para uma perspectiva mais ampla:
-Propriedade privada, escassez e democracia
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2014/07/propriedade-privada-escassez-e.html
-Breve crítica à idéia de economia paralela anticapitalista
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2014/09/breve-critica-ideia-de-economia.html
-Condições de existência universalmente interconectadas/interdependentes
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2015/07/condicoes-de-existencia-universalmente.html
-O capital num rápido histórico
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2015/07/o-capital-num-breve-historico.html