Será que tudo que a luta de classes faz é agir nos interesses do capital, podendo no máximo “acelerar” a dissolução de um sistema que é autocontraditório? Por Pablo Polese
Em um dos últimos trabalhos de Pierre Dardot e Christian Laval, intitulado Marx, prénom: Karl (2012), é levantada a tese de que haveria duas lógicas conflitantes operando na obra de Marx: uma “lógica do capital como sistema acabado” e uma “lógica estratégica do enfrentamento”, ou seja, uma lógica “própria à efetividade do capital, que cria as condições de sua reiteração e subordina a si, no processo, os agentes” e uma lógica “que se desenrolaria estritamente no interior da luta entre as classes, sem exprimir direta e necessariamente os interesses econômicos em princípio envolvidos”. Dardot e Laval defendem que a “lógica estratégica” constitui um “momento foucaultiano” de Marx. O argumento soa estranho e tem algo de escolástico, mas quando se observa seu conteúdo alguns pontos interessantes emergem. Segundo a tese das duas lógicas em conflito no interior da teoria de Marx, temos em seus escritos, de um lado, a “autoposição de um sujeito que delimita, quase automaticamente, os interesses objetivos a serem expressos na luta de classes” e, do outro, uma “lógica estratégica segundo a qual as classes se constituiriam uma à outra na própria luta e na relação de antagonismo entre elas, quase que de modo independente em relação às posições prévias determinadas pela produção capitalista” (NEVES, op.cit).
Em suas maiores análises históricas [Marx] elabora uma concepção ‘estratégica’ da luta de classes, para a qual o essencial não é a sociologia das classes, mas a natureza do conflito como relação entre elas. Aparece então que as classes se constituem elas mesmas no enfrentamento que as opõe, longe de preexistirem a este como posições dadas de antemão nas relações de produção. Deve-se sempre partir das relações de força, isto é, considerar os atores como sempre já tomados em relações e renunciar a conferir a uma classe um privilégio ontológico que a situaria num ‘fora’ radical. (DARDOT & LAVAL, 2010: 14).
Na verdade essa concepção está presente não só nos trabalhos históricos de Marx, mas também em suas análises “econômicas”, como por exemplo nos Grundrisse:
o que aparece como resultado do processo de produção e de valorização é, sobretudo, a reprodução e nova produção da própria relação entre capital e trabalho, entre capitalista e trabalhador. Essa relação social, relação de produção, aparece de fato como um resultado do processo mais importante ainda do que seus resultados materiais. Em termos mais precisos, no interior desse processo o trabalhador produz a si mesmo como capacidade de trabalho e o capital a ele contraposto, do mesmo modo que, por outro lado, o capitalista se produz como capital e produz a capacidade de trabalho viva a ele contraposta. Cada um reproduz a si mesmo ao reproduzir o seu outro, a sua negação. O capitalista produz o trabalho como trabalho alheio; o trabalho produz o produto como produto alheio. O capitalista produz o trabalhador, e o trabalhador, o capitalista etc. (MARX, 2011b: 377)
Dardot e Laval reconhecem que Marx “nem sempre viu com bons olhos essa ideia de uma quase autonomia da luta”. O pensador alemão teria “tentado incessantemente” fazer uma lógica “decorrer” ou “ser absorvida” pela outra, em especial “subordinar a luta à lógica do capital”, porém Marx não teria tido êxito em sua empreitada. Os pensadores franceses defendem que a força da ideia de comunismo residiria na conexão existente entre as duas lógicas: “um movimento interno e necessário de autodissolução do capitalismo que, convenientemente, se completaria através da ação contingente do proletariado, coveiro desse modo de produção, conciliando então necessidade e contingência”. No entanto, os pensadores franceses defendem que Marx “jamais teria conseguido efetivamente ligar essas duas perspectivas”, de modo que a ideia de Comunismo seria levantada por Marx enquanto uma “solução imaginária”, projetada no futuro, a funcionar como um “termo médio imaginário”, fazendo encontrarem-se, “num ponto sublime da história, a autodestruição imanente do capital e a luta parteira da nova forma social”: “A ação prática dos proletários se funde com as tendências objetivas do modo de produção capitalista, os objetivos políticos que eles se dão coincidem com a gestação do comunismo no seio mesmo do capitalismo” (DARDOT & LAVAL, 2012: 109). Neves nos informa que para Dardot e Laval essa solução imaginária “é água passada, e a atualidade de Marx estaria precisamente no diagnóstico da cisão entre as duas lógicas”. Entretanto, segundo Neves, a construção do argumento deixa a tese mais complexa, a começar porque a oposição entre as duas lógicas não aparece como sendo absoluta ou “estanque”:
Por um lado, a “lógica do capital” já contém uma concepção própria da luta de classes, ainda que os autores pretendam colocá-la na conta da “solução imaginária”, isto é, da ideia a seu ver inatual de que o capital está grávido da nova forma social e de que o papel da luta de classes se limita a realizar essa tendência. Por outro, a “lógica estratégica do enfrentamento” não é uma estratégia militar sem nenhum fundamento material, parecendo antes estar calcada numa certa “atividade prática dos homens” (NEVES, ibid: 8)
Dardot e Laval defendem a tese de que a “lógica do capital” e “atividade prática dos homens” constituem duas formas pelas quais Marx assimilou a lógica hegeliana. Estaria em questão duas concepções de atividade: de um lado a atividade própria do capital e caracterizada pela “relação a si e pela reposição dos pressupostos”. Do outro, a atividade “prática ou objetiva dos homens”, que, sendo “incapaz de pôr seu pressuposto”, permanece “condicionada do exterior por ‘pressuposições efetivas’ não produzidas por ela”. Neves observa que a oposição das duas lógicas se funda nessa oposição de duas concepções de atividade, “uma que interioriza e repõe seus pressupostos, pondo-se a si mesma (a atividade do capital), outra que permanece condicionada por pressuposições efetivas não-reflexivas (a atividade dos homens)”. (NEVES, ibid: 9). Neves ainda observa que na lógica do “sistema acabado” o capital se desenvolve como “totalidade que subordina a si todos os elementos da sociedade, aí inclusas as classes”, de modo que elas se tornam “portadoras de um processo autônomo de valorização”, e “sua história coincide com a do capital”, ou seja, “as classes ‘não têm vida própria’”:
A rigor, tem-se apenas o capital e seu desenvolvimento, que se autonomiza em relação a seu ponto de partida ao repor seus pressupostos. Essa lógica é “expressa frequentemente com acentos necessitaristas e finalistas”, fornecendo a ideia de que o “sistema orgânico” do capitalismo parirá, por seu próprio desenvolvimento, uma nova forma social, quando suas contradições internas levarem à sua dissolução. Autonomização do capital em relação a seus pressupostos naturais, finalidade interna do modo de produção, classes como portadores do capital, capitalismo como grávido do comunismo: eis os traços gerais dessa primeira lógica. (NEVES, ibid: 9)
Observa-se que Dardot e Laval operam uma certa “estereotipia” das ideias de Marx acerca da luta de classes correspondente a essa lógica, uma vez que Marx teria sustentado o caráter imanente da luta de classes com respeito ao desenvolvimento do sistema e o antagonismo entre capital e trabalho enquanto a “base econômica” que “se exprime nos diferentes interesses das classes em luta”. Mas os pensadores franceses, levando essas ideias ao extremo, acabam por colocar a luta de classes como um elemento absorvido pelo “desenvolvimento autônomo do capital”, sendo não apenas um “aspecto necessário e natural” do Capitalismo, como ainda um “processo regido por leis gerais desse mesmo desenvolvimento” (DARDOT & LAVAL, 2012: 563).
Afetada assim de necessidade, determinada pelo movimento sistêmico do capital e obedecendo a essas mesmas leis, a luta não poderia mesmo ter mais nada que ver com aquela “lógica estratégica do enfrentamento” dos textos histórico-políticos, nos quais Marx percebia os desvios imprevistos da ação e a determinação recíproca das classes no interior da luta. No Capital, ao contrário, a luta seria quase uma peça – indispensável, porém subordinada – do movimento interno e necessário do “capitalismo conduzindo inevitavelmente ao comunismo” (p. 563). E isso se deveria, no fundo, ao fato de que, “desde que ele está em condições de pôr ele mesmo as condições de seu próprio desenvolvimento, o capital não é nada de outro do que um puro processo de autoposição, no qual ele não tem mais que ver senão consigo mesmo” (p. 563). Isto é, ao assumir as propriedades especulativas da autoposição de si, o capital subordinaria, a título de momento seu, inclusive a luta das classes – ela se torna científica, passa a obedecer às mesmas leis do capital, mas perde a chance de produzir algo inesperado, exterior à dissolução interna do modo de produção. Que figura específica tem então a luta de classes, como peça da engrenagem? Ela terá o sentido não de interromper o capital, mas de acelerar suas contradições internas – portanto, de agir no mesmo sentido que ele: “acelerando o desenvolvimento do capital, a luta econômica vai acentuar as contradições do capitalismo, aumentar a amplidão das crises, e empurrar à superação do capitalismo” (587). Assim, os autores mostram como as lutas trabalhistas acabam intervertendo em impulso pró-capital: limitando a acumulação por um lado (seja, por exemplo, limitando a jornada de trabalho), forçam o capitalismo a se reinventar e acumular por outros modos (no exemplo dos autores, na intensificação da produtividade do trabalho graças ao maquinário). Nessa linha, os autores terminarão identificando a luta de classes presente no Capital à luta de alcance trade-unista. (NEVES, 2014: 10)
A luta de classes é vista, portanto, como “um momento necessário do desenvolvimento do capital, apenas o qual pode lançar as bases da emancipação do proletariado” (ibid: 564), de modo que o proletariado luta, “mas sua luta é interna ao desenvolvimento próprio do capital”, no sentido de que sua luta “é uma luta para vender sua mão-de-obra por preços melhores no mercado”, uma “luta econômica defensiva contra o aumento da taxa de exploração, ao qual tende sempre o capital”, em suma: a “luta trade-unista não tem por efeito e por objetivo recolocar diretamente em causa a própria relação de produção”, “é uma luta econômica pela vida do operário, não pela morte do capital” (ibid: 583-4). Paradoxalmente a luta de classes agiria, então, nos interesses do capital, podendo no máximo “acelerar” a dissolução do sistema, em virtude de suas próprias contradições internas. É levantado como exemplo a Lei das Fábricas, que ao impor limites à jornada de trabalho “teria por único resultado forçar o capital a se reinventar para intensificar a produtividade do tempo de trabalho, fazendo crescer a mais-valia relativa quando a absoluta foi restringida”. Há duas questões em jogo: por um lado, o tema é a luta sob o capital, por outro, trata-se da luta já na passagem do Capitalismo ao Comunismo, o que traz à tona a questão da apresentação marxista da história enquanto evolução. Na dialética entre continuidade e ruptura Dardot e Laval enfatizam a continuidade na passagem de um modo de produção a outro, ressaltando a questão de que o Capitalismo, segundo Marx, coloca as bases objetivas para o Comunismo (o trabalhador global, a diminuição do tempo de trabalho necessário etc). A luta de classes, nesse quadro, aparece como “uma peça que, impulsionando o próprio capital, levaria à aceleração de sua dissolução imanente”. (NEVES, 2014: 12)
Dardot e Laval defendem, portanto, que na “lógica do capital” o próprio desenvolvimento capitalista “leva internamente ao comunismo”, sendo a luta de classes tão somente uma peça que ajuda na realização dessa tendência inscrita no próprio capital. Não se trataria de uma teleologia histórica, ou ao menos não no sentido clássico: “em vez de um finalismo unívoco a percorrer toda a história, haveria uma finalidade interna operando em cada modo de produção”, ou seja, “cada modo engendra ou ‘está grávido’ do modo seguinte”.
Essa lei não seria válida para os modos pré-capitalistas, e o caso da transição do capitalismo para o comunismo colocaria “problemas à parte”, uma vez que o Capitalismo
não apenas é um modo de produção com sua finalidade interna, mas é também o modo que totaliza todos os modos passados. É nesse sentido que é o último modo da pré-história. É também verdade que só ele lança as bases materiais para o comunismo (aí inclusa a formação do trabalhador global, a associação de trabalhadores e a redução do tempo de trabalho necessário). (NEVES, 2014: 15)
Neves comenta que essa descrição teleológica se impõe a Dardot e Laval como decorrência de que procuram “zelosamente repartir” o que caberia à “lógica do capital” e o que caberia à “lógica estratégica”, “sendo obrigados a lançar por debaixo do tapete aquilo que, em uma, invadiria a jurisdição da outra”. Assim, “tudo aquilo que ‘falta’ à lógica do capital aparecerá no outro canto da obra, na ‘lógica estratégica’”. Os teóricos franceses apoiam a “lógica estratégica” numa concepção precisa de “atividade”:
não a relação a si do capital, e sim a “atividade prática dos homens”, cujos traços gerais podem ser resumidos esquematicamente nos seguintes pontos: 1) trata-se de uma atividade condicionada por resultados da atividade de gerações anteriores, que as gerações atuais encontram já aí independentemente delas; 2) essa atividade transforma essas condições no mesmo movimento em que as assume (sem que isso signifique que tais condições se revelem, em segunda etapa, de antemão postas pelo mesmo sujeito que as retoma); 3) os sujeitos se produzem a si próprios ao transformarem as condições de que partem, transformando a si mesmos dessa sorte. (DARDOT & LAVAL, 2014)
A “lógica estratégica” surge ancorada neste último ponto, o qual institui uma dinâmica histórica “irredutível à produção estritamente material do mundo, embora ocorrendo concomitantemente a ela”. Essa dinâmica é “irredutível” porque a coincidência entre “transformação das circunstâncias e autotransformação dos homens” “não indica qualquer relação de causalidade”. Como bem percebeu Neves, essa ideia, “que no fundo é a de práxis”, invalidaria a tese de “um simples engendramento dos ‘coveiros’ do capitalismo pelo desenvolvimento econômico” (ibid: 202), dado que “os homens se transformam a si mesmos”. Antagônica à lógica do capital, a lógica da estratégia “deveria ser aproximada de um processo de subjetivação” tal como pensou Foucault, isto é, enquanto “processo pelo qual os ‘atores’ engajados em relações conflituosas se transformam na exata medida do desenrolar da luta, ao mesmo tempo que transformam a situação e criam as condições de sua eventual vitória” (idem). Neves defende que a referência a Foucault é imprescindível, uma vez que as teses mais fortes de Dardot e Laval, quanto à “lógica estratégica”, estarão ancoradas justamente na obra do filósofo francês. (NEVES, 2014: 16)
Ao desenvolver a “lógica da estratégica” em oposição à “lógica do capital” os pensadores franceses afirmam que as classes se constituem umas às outras na própria luta, ou seja, “as classes se constituem a elas mesmas no enfrentamento que as opõe, longe de preexistirem a este como posições dadas de antemão em relações de produção” (p. 14 apud NEVES 2014) e “mais do que colocar exclusivamente o acento sobre a gênese econômica das classes para explicar a luta, ocorreu a Marx de fazer da luta ela mesma o movimento de engendramento das classes, de pensar a luta como um processo de constituição dos atores da luta” (p. 218 idem). Neves informa que Dardot e Laval se inspiram aqui nas noções foucaultianas de subjetivação e estratégia.
No que toca à subjetivação, partem da interpretação que Foucault sugeriu incidentalmente da célebre frase de Marx, “o homem produz o homem”. Ela indicaria que essa produção não se dá no mesmo plano que a produção material ou econômica (p. 212). Isso porque, “no curso de sua história, os homens jamais deixaram de construir a si mesmos, isto é, de deslocar continuamente sua subjetividade, constituir-se em uma série infinita e múltipla de subjetividades diferentes que não terão fim e não nos colocarão jamais diante de algo que seria o homem” (Foucault, Dits et écrits, apud Dardot e Laval, p. 212). O homem se constitui a si mesmo (não se trata, pois, de uma substância fixa), mas isso sob formas historicamente distintas e dependentes do conjunto de relações (práticas, dispositivos, formas de poder) a que a cada vez se submete. (NEVES, 2014: 16)
Neves informa que Dardot e Laval adotam essa tese foucauldiana para elucidar a “lógica estratégica”, e que essa adoção “cobra seu preço” no epílogo do livro, quando os autores
terão de reconhecer que, sem a idéia de um Homem novo – recusada pelo nominalismo foucaultiano em nome da “infinita e múltipla” série de subjetivações –, cuja constituição se daria na passagem da pré-história à História, fica igualmente vedada a pauta da “emancipação do homem”, que terá de ser trocada pela bandeira mais modesta das emancipações, no plural. Ao fim do capitalismo, teremos uma nova subjetivação – mas apenas isso. (ibid: op.cit)
Essa concepção da “série infinita de subjetivações” esclarece a tese da “constituição das classes no interior das lutas” e traz à tona a importância da noção de “estratégia de poder”: como não há uma “essência” anterior ou independente das relações, será a própria luta o “jogo” no qual as “identidades” dos atores se constitui. As classes sociais não aparecem como algo dado, pré-delimitado “no nível da economia conforme aos interesses objetivos, oriundos da distribuição da propriedade (na terminologia clássica, as classes “em si”): suas identidades se produzem apenas no embate entre si, na relação de luta” (ibid: 17). Nesse modelo de análise a noção de estratégia se configura da seguinte forma:
No sentido etimológico, a palavra pareceria indicar a existência de um exército em face de outro, para o qual se traça um plano ou estratégia. Porém, Foucault dirá que existem três sentidos mais precisos de estratégia: primeiro, a racionalidade de meios para fins; segundo, o cálculo num jogo, que adivinha os passos do adversário para melhor combatê-lo; terceiro, os meios, numa guerra, para obter a vitória. Contudo, e esse é o passo importante, essas definições deixam na sombra a “gênese do sujeito da estratégia” – e com razão, pois, para Foucault, ele “não pode ser pressuposto ao enfrentamento” (p. 226). Dito de outro modo, os atores da luta não preexistem à luta (do mesmo modo que as peças de um tabuleiro não preexistem às regras do jogo), de modo que é a relação de enfrentamento, de conflito, que os identifica. “Não há pólos de poder fora do enfrentamento”, as classes não são algo fora da luta de classes, “a estratégia é primeira em relação ao estrategista” (p. 226). Note-se que a tese da subjetivação (e seu corolário anti-“fim da história” e anti-“emancipação do homem”) e da estratégia de poder se acompanham intimamente: sem o antropologismo de uma essência humana substancial, externa às relações, restam apenas as diferentes subjetivações que ocorrem por meio de relações e práticas (modos de vida? jogos?), através das quais, de quebra, as subjetividades se especificam e se historicizam. No caso das classes, isso significa que é só por meio do “enfrentamento estratégico” que os combatentes se identificam. (ibid: 18)
Neves observa que embora seja louvável o “espírito antidogmático de se recusar a absorção de toda especificidade da luta na dinâmica econômica” é preciso “examinar essa recusa mais de perto”, uma vez que Dardot e Laval pretendem não só que a “lógica estratégica” seja a “grade de inteligibilidade” dos textos histórico-políticos de Marx, mas que ainda esteja fundada na “atividade prática dos homens”, tal como eles a interpretam, o que nos levaria a questionar: “o que devém daquilo que se sabe de Marx quando se o ajusta para defender as teses foucaultianas da subjetivação e da estratégia?”. Concordo com Neves quando ele defende que a semelhança entre ambos é “epidérmica”:
Em Foucault como na dialética, as essências não são dadas, mas vêm-a-ser por meio de relações, num caso, processos de constituição, noutro caso. No caso de Foucault, isso leva a não hipostasiar as subjetividades fora das relações e a falar em anterioridade da relação sobre o relacionado. Nesse sentido é que as classes não preexistem ao conflito (mas também não existem fora ou depois dele). Em Marx, seria preciso dizer não que os termos “inexistem” antes do processo, e sim que estão pressupostos – o que é muito diferente. Dizer que, antes da luta, as classes estão aí, porém implícitas ou em si – e, correlativamente, que a luta significa uma passagem ao explícito ou ao para si – não equivale a dizer que as classes se constituem uma à outra na luta. […] Há, no núcleo do problema, um modo diferente de se pensar a relação. Para Foucault, ela é anterior aos polos relacionados, e estes só se especificam no interior dessas relações, cessando de ser uma vez suspensas a relação; em dialética, o polo não apenas entra em relação, mas interioriza a própria relação, suprime sua unilateralidade e dá surgimento a uma figura superior. Evidentemente, já não se entende a relação como “oposição” de forças (como não pensar no texto kantiano da grandeza negativa?), universo ao qual Foucault se prende, mas como contradição, o que implica a noção hegeliana de negação determinada e uma síntese operando no real. (NEVES, 2014: 19)
Segundo Neves esse modo de relacionar Marx e Foucault foi ponderado por Balibar:
o que marca uma divergência irredutível [entre Marx e Foucault] é a idéia mesma que Foucault propõe da estrutura do conflito social. A divergência (…) diz respeito à oposição entre uma lógica da relação de forças, da qual a ‘contradição’ não é quando muito mais do que uma configuração particular, e uma lógica da contradição, da qual a ‘relação de forças’ é apenas o momento estratégico. (…) Foucault as entende puramente como exterioridade, o que quer dizer ao mesmo tempo que as ‘visadas’ que se enfrentam num conflito estratégico se destroem, se neutralizam, se reforçam mutuamente ou se modificam, mas não formam qualquer unidade ou individualidade superior. Ao contrário, para Marx, o desenvolvimento de um conflito tem por condição a interiorização da relação ela mesma, de sorte que os termos antagonistas se tornam funções ou portadores dessa relação (p. 70 apud NEVES, 2014).
Neves elogia Dardot e Laval por assumirem coerentemente as implicações de sua tese, uma vez que, não havendo o momento da negação, não há interiorização da relação e, portanto, não há salto para uma figura superior, o que significa que nenhum dos polos da relação tem o privilégio de “encarnar a supressão da própria relação de antagonismo”, ou seja, nenhuma das classes carrega em si a promessa da emancipação do Homem, mesmo porque o Homem foi dissolvido em diversas “subjetivações”. O proletariado, então, deixa de ser visto como o sujeito universal da história, e a própria distinção entre pré-história e História se dissipa: “o que virá é ‘mais uma’ subjetivação, jamais a constituição do Homem”, de modo que “a ideia de emancipação dá lugar às múltiplas emancipações”. (NEVES, 2014: 21)
Por tudo isso, Neves indica que Dardot e Laval devem ser vistos como como anticapitalistas não-marxistas. Eles recusam a “solução imaginária” do comunismo, em torno da qual toda a tradução marxista teria orbitado, deixando na sombra “a percepção do dilaceramento – teórico e prático – das duas lógicas”. Essa recusa é saudável, na medida em que se supera a crença dogmática de que a superação do capitalismo está inscrita na estrutura do sistema e, por isso, necessariamente se realizará. Por essa via os pensadores franceses se situam na tradição da “crítica do progresso”. Uma vez delineado esse quadro, voltaria a ter importância central a retomada de questões políticas que teriam permanecido “soterradas sob o economicismo da vulgata marxista”. Por outro lado, a teoria de Marx acerca do capital como um “movimento automático” continuaria atual, muito embora a experiência do século XX tenha mostrado que o sistema é capaz de relativamente “neutralizar sua natureza autodestrutiva”.
Como bem coloca Neves, o fato do capital viver de suas crises não significa que o sistema “não seja capaz de adiar a derradeira delas, recriando-se quase sempre em patamares mais desiguais e violentos”. Não obstante, a estrutura antagônica do sistema tampouco significa que necessariamente encontraremos “um sujeito histórico capaz e empiricamente interessado em levar a cabo sua contradição inerente, completando o penoso parto de uma nova forma social”. Temos, portanto, uma leitura que nega qualquer aspecto teleológico no desenvolvimento histórico das contradições do capital. Fica para trás aquele “otimismo marxista”, ancorado em certa visão do progresso histórico, que “supunha existir entre lógica do capital e lógica da luta uma espécie de complementaridade, se não homogeneidade”, no sentido de que o Capitalismo levaria internamente ao Comunismo. Coloca-se então a questão de que uma vez que “a crença marxista morreu deixando bem vivo o capital” “resta a pergunta, óbvia porque crucial: como sair dele?” Neves observa que a pergunta só surge em Dardot e Laval depois que “não mais se enxerga a ponte entre as duas lógicas, e quando a repisada metáfora da gravidez, subproduto dessa ponte, segundo a qual o comunismo nascerá do ventre do capitalismo, tornou-se virtualmente inverossímil”. Segundo Neves esse “dilaceramento é ilustrado, talvez de modo até involuntário, pelo epílogo do livro, que tem algo de construção literária”:
A dada altura, os autores começam a narrar o estado atual da dominação capitalista, mostrando como ela invade todas as esferas da vida pública e privada, confundindo tempo de trabalho e não-trabalho, mercado e não-mercado, produzindo subjetividades que não apenas consentem em serem dominadas, mas gozam em produzir mais e mais, colocando em marcha um movimento autônomo de valorização que lhes escapa. Em termos de redação, os parágrafos entram numa progressão vertiginosa, até desembocarem numa confissão de pessimismo da qual nem mesmo a Escola de Frankfurt teria suspeitado (a lembrança é deles). E então, de repente, o texto muda de tom, garante que nada disso é inelutável, que se trata de uma construção política, e que há o que fazer. Para o leitor, é um novo autor (uma nova lógica?) escrevendo, e de humor, digamos, mais otimista. Em suas mãos, o capítulo terminará convocando seu público em tom grandioso: que fazer? “Lutar”. Dada a descrição anterior, nada de mais artificial. Há algum desequilíbrio no texto, mas que acaba evidenciando o desespero da solução encontrada: quando o círculo do capital parece se fechar indefinidamente, as palavras de ordem que proclamam haver tudo a se fazer se tornam, à primeira vista, meramente verbais. Até porque, quem vai ouvi-las, dado o que os autores mostraram acerca das novas “subjetivações”? (NEVES, 2014: 23)
Mas ao fim de seu texto o próprio Neves parece resignar-se ao pessimismo (ou falso otimismo) de Dardot e Laval, quando conclui que constitui um “trunfo dos autores” ter mostrado “literariamente o divórcio das duas lógicas, a saber, a impossibilidade de ligar diagnóstico do presente e projeto de luta”.
Em outro livro, intitulado A nova razão do mundo (2013), Dardot e Laval avançam um pouco suas compreensões acerca da luta política. Pretendem que seu livro seja uma obra de “esclarecimento político”, no sentido de que a compreensão do neoliberalismo teria um “alcance estratégico” fundamental para a transformação social. Resistir eficazmente, defendem Dardot e Laval, não requer apenas uma boa organização e estratégia eficaz, mas sobretudo uma “inteligência coletiva da situação”, que pode ser alcançada “através da discussão de trabalhos teóricos de profundidade nos e pelos movimentos”.
Ao serem indagados sobre se a crise de 2008 teria posto em cheque o neoliberalismo, Laval esclarece que, ao invés de questionar a legitimidade do neoliberalismo, a crise teria conduzido a seu reforçamento sob a forma de “planos de austeridade destruidores”. Ao se desdobrar a crise teria demonstrado a potência do marco institucional que instalou as políticas neoliberais, um marco que “se impõe aos atores atuais exatamente como o desejaram os grandes promotores da racionalidade neoliberal desde os anos 30” (ibid: 7). Ao não poder e nem mesmo almejar o rompimento com esse marco, os atores políticos teriam sido arrastados em uma “fuga para frente” visando adaptar-se aos efeitos de sua própria política neoliberal anteriormente posta em prática. Seria por isso que vemos hoje em dia uma “corrida suicida para saber quem será o campeão da austeridade”. Nesse sentido, Laval defende que
a União Europeia, tal como foi concebida, é uma máquina construída para transformar a sociedade sobre o modelo da concorrência capitalista generalizada. O impulso e fomento da competição entre os países membros favorece aos mais fortes e obriga aos menos competitivos a empreender “reformas estruturais” que introduzem a lógica de mercado no coração mesmo dos Estados e das relações sociais. O imperativo da competitividade que anima cada país membro a fazer uso do dumping fiscal e salarial para atrair capitais é na realidade um princípio autodestruidor da democracia e da Europa. (ibid: 8)
Dardot e Laval defendem que “não se sai de uma racionalidade ou de um dispositivo mediante uma simples mudança de política, tal como não se inventa outra forma de governar aos homens mudando de governo”. Eles chegam a essa assertiva a partir de uma diferenciação entre “governo como instituição” e “governo como atividade”. O governo como “instituição” seria aquele relativo ao Estado e seus dirigentes, enquanto o governo como “actividade” designaria a maneira pela qual as personas, independentemente de serem ou não membros de um governo, “conduzem’ outras pessoas e se esforçam em “orientar e estimular suas condutas”. A base teórica dessa reflexão está na ideia de Foucault de que o governo é a forma pela qual algumas pessoas “conduzem a conduta” de outras. A partir dessa diferenciação, Dardot e Laval fundamentarão a tese de que uma simples troca de equipe governamental não pode nem mesmo chegar perto de mudar o “modo de governo dos seres humanos”. Como exemplo os pensadores franceses observam, quanto ao caso da alternância de governo estatal na França, que a política de Hollande “prolonga em perfeita continuidade a que desenvolveu antes com Sarkozy”, de modo que “não há neste sentido a menor ruptura, e sim a prossecução do modo de governo neoliberal sob outras envolturas retóricas (‘patriotismo econômico’, etc.)” (ibid: 9).
Vemos então que Dardot e Laval defendem, a seu modo, que não existem possibilidades emancipadoras na instância do poder político:
nenhum governo, por mais progressista que seja, pode emancipar o povo. Não pode mais que ajudar-lhe a sua própria emancipação, o que já é muito”. Para isso deve favorecer a todos os níveis (do local ao nacional) a participação dos cidadãos na atividade do próprio governo. O único governo cuja atividade é um ponto de apoio para a emancipação é o que ajuda praticamente à constituição do autogoverno. O que importa são as práticas de governo dos governantes: vão no sentido de uma “desestatização” ou contribuem pelo contrário com o reforço do poder de Estado à custa do autogoverno? (ibid: 10)
Quando indagados sobre as “políticas anti-neoliberais” dos “governos progressistas” da América Latina, Pierre Dardot afirma que a experiência da América Latina deve ser vista diferenciando-se Chiapas, que “constitui uma autêntica experiência de emancipação”, e os governos chamados “progressistas”, que embora em alguns casos tenham recorrido a nacionalizações “não romperam verdadeiramente com a lógica neoliberal”. Por isso, conclui:
o populismo que diz governar “em nome das massas” não é uma alternativa à racionalidade neoliberal, mas pelo contrário não faz senão reforçá-la. Há que compreender que o Estado não é um simples instrumento neutro, mas que impõe frequentemente sua própria lógica a todos aqueles que pretendem servir-se dele “pelo bem do povo”. (ibid: 11)
Qual seria a alternativa, então? Dardot e Laval afirmam que “a única via prática consiste em promover desde agora formas de subjetivação alternativas ao modo de empresa de si”, no sentido de que é preciso contrapor “outras formas de subjetivação” antagônicas à racionalidade neoliberal, naquilo que os autores chamam de “contra-condutas”. Pierre Dardot comenta que o último livro da dupla Commun (2014) buscou analisar as “práticas de resistência ativa à lógica normativa do neoliberalismo”. É citado como exemplo “formas cooperativas e colaborativas de produção, consumo, educação ou habitação que surgem em âmbitos diversos (agricultura, arte ou novas tecnologias), novas práticas democráticas que emergem da própria luta, comunidades ativas em formação (muitas vezes através da Internet), etc”. O pensador francês defende que o “compromisso voluntário em uma prática coletiva democrática é o único meio para os indivíduos de viver ao abrigo das enormes pressões mercantis, das pressões competitivas e das obsessões do ‘sempre mais’. É também a maneira de converter-se em autênticos ‘sujeitos democráticos’”. Laval complementa que o contato com estes movimentos permitiu aos autores superar o plano “resistencial” que “era ainda prioritário em Foucault quando ele falava de contra-condutas”.
O que hoje se reafirma de maneira muito forte é que a forma da atividade alternativa, seja econômica, cultural ou política, é inseparável do objetivo global que se persegue, a saber, a transformação da sociedade. Essa lógica geral, essa racionalidade alternativa, não é só crítica ou de oposição, mas sobretudo criadora porque planteia, na prática e em cada ocasião de modo específico, a questão das instituições democráticas que há que se construir para conduzir juntos uma atividade qualquer. A essa lógica chamamos “razão do comum”. (2014: 10)
A “razão do comum” aparece em Dardot e Laval enquanto uma “razão política, um modo de condução das condutas oposto ao da competição”:
O sentido profundo do “comum” como princípio político é o seguinte: não há mais obrigação (cum-munus: co-obrigação) que a que procede da coparticipação na deliberação e decisão. A noção de “política” toma então um sentido distinto de uma atividade da ordem do monopólio dos governantes, ainda que sejam bem intencionados: a de uma igualdade no fato de “tomar parte” na deliberação e a decisão pela qual as pessoas se esforçam por determinar o justo. A co-producão de normas ou regras que compromete a todos os que participam em uma atividade. Assim reconectamos com a ideia aristotélica da política. (ibid: 12)
Quando indagados sobre como pensam os problemas da estratégia e organização política, a partir desta aposta na “razão do comum” os autores afirmam que “o combate pela emancipação exclui seguramente a figura do estrategista que decide a partir de uma posição de superioridade a escolha dos meios a por em prática”. A seguir afirmam que, como a tarefa da transição impõe que se coloquem objetivos e se escolham os meios para se chegar à realização destes objetivos, toda a questão passa a residir em “como se leva a cabo uma atividade assim”. Dardot e Laval afirmam então que é preciso “romper com a lógica do partido” enquanto “representante” do povo, de modo que a organização política futura deve renunciar a “representar” à maioria, “invocando uma compreensão superior do sentido da História”. Deve, pelo contrário, “atuar favorecendo a convergência prática das resistências nos setores de atividade mais diversos”, de modo a construir um “comum” “verdadeiramente transversal que procede de uma co-atividade e de uma co-participacão”. (ibid: 13)
A meu ver Dardot e Laval desenvolvem sua proposta política da “razão do comum” de modo muito abstrato, não incorporando teorizações de pensadores autonomistas e mesmo de alguns marxistas – para não falar das experiências históricas que fundamentaram essas teorias – que dariam maior concretude à estratégia política de superação da lógica neoliberal enquanto racionalidade a ser combatida. Ainda assim, o modo como os pensadores franceses abordam a contradição interna entre “duas lógicas” na obra de Marx me parece muito instigante para pensarmos a relação social capitalista e o papel das lutas de classes no fazer histórico.
Bibliografia
DARDOT, P. & LAVAL, C. (2010) “Néoliberalisme et subjectivation capitaliste”, in: revue Cités, no. 41, Paris, PUF, 2010, pp. 35-50. Disp. em http://questionmarx.typepad.fr.
. (2012). Marx : prénom Karl. Paris: Gallimard.
. (2013). O que é neoliberalismo? Trechos de Néolibéralisme et subjectivation capitaliste. Tradução de Eleutério Prado. Disp: https://eleuterioprado.files.wordpress.com/2013/05/dardotp-e-lavalc-o-que-c3a9-o-neoliberalismo2.pdf
. (2013b). The New Way of the World: On Neoliberal Society. Londres: Verso Books.
. (2014). “El neoliberalismo es una forma de vida, no sólo una ideología o una política económica“. Entrevista disp: http://www.eldiario.es/interferencias/neoliberalismo-ideologia-politica-economica-forma_6_312228808.html.
. (2014b). Commun. Essai sur la révolution au XXIe siècle. Paris: Gallimard.
. (2015) Introdução à edição inglesa: A nova razão do mundo – Pierre Dardot & Christian Laval. Disponível em: https://overquil.wordpress.com/2015/04/30/a-nova-razao-do-mundo-pierre-dardot-christian-laval/
MARX, K. (2011b). Grundrisse. SP: Boitempo
NEVES, J. L (2014). Marx, entre Marx e Foucault. Disp: http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=05&t=07.