“A verdade está na dúvida, e a negação da fé que é a dúvida é o motor que a alimenta. Por isso, existe mais fé na dúvida do que na convicção! Por isso é a fé também um movimento”. Por testemunha ocular Douglas Rodrigues Barros

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goya01Teotônio e Alexandra, enfadados, viram chegar a hora da pregação. Hora na qual corações e mentes já estavam secos como um deserto. Mathias observava a face de ambos sorrateiramente e com certo medo que só cabia em um homem ingênuo, começava a sentir-se aliviado, como se lhe tivessem dado força e sabedoria. A regularidade do culto, até ali, tinha sido corriqueira, mas um infortúnio aconteceria. O pastor Waldomiro Macedo então se postou frente ao púlpito com o microfone nas mãos e iniciou seus ensinamentos dizendo o seguinte:

– Irmãos! A obediência à Deus se revela na frequência dos cultos, na ida à casa do Senhor e na observação de suas leis. Leis que foram reafirmadas por seu filho e que foram sacralizadas pelos exemplos dos apóstolos, sobretudo, do maior dentre eles: Paulo de Tarso. E, é por isso que leremos a primeira epístola aos Coríntios capítulo 6, versículo 12 em diante!

Teotônio, sem um porquê aparente, sentiu-se surpreendentemente reanimado e revigorado. Era como se tivesse alimentado a alma e o reforço fosse o exemplo dos Santos. Dispôs-se a divisar todos os presentes e dar atenção forçada a todas as palavras lidas; palavras as quais havia com maestria decorado. É preciso, porém, observar que se revelava nitidamente no pastor Waldomiro o seu parentesco com os antigos devido a falsa expressão afável que trazia. Isso era óbvio não apenas porque em anos de ministério aprendera como ninguém a arte da dissimulação, como também pelo fato de que, ao toque dos sons produzidos pela instrumentalização de suas palavras estudadas psicologicamente, até mesmo o homem mais racional teria a alma quebrantada. Para nossa sorte, nosso messias era louco e por isso aquilo pouco fazia efeito em sua alma.

– “Porque fostes comprados por bom preço; glorificai pois a Deus no vosso corpo, e no vosso espírito, os quais pertencem a Deus!” – Encerrou Waldomiro Macedo a leitura e continuou – Qual o problema que emperra a vida das pessoas? É a cegueira que impede as pessoas de verem a verdade. O diabo cega a pessoa, acaba com o entendimento das pessoas de forma que não é possível enxergar a luz do evangelho nessas pessoas! E, é por isso, que temos que cuidar do corpo e vigiar sobre as decisões. O vale da benção é somente possível para aqueles que sacrificam as decisões em nome de Deus!

– Como pode dizer tais coisas! – Interrompeu bruscamente Teotônio – Eu não quero vosso sacrifício coisa nenhuma! Como pode confundir e dar ensinamentos que muito mais tem a ver com o mundo tal como está, do que da pátria que se deve buscar!

– Mas, quem disse tal absurdo? – Perguntou constrangido Waldomiro Macedo.

– Fui eu! – Prontamente redarguiu Teotônio e, não se deu conta que aquela sua manifestação foi acompanhada pelo cerco de seis obreiros que o vigiavam de perto.

– Somente no nosso sacrifício o Espírito Santo pode nos tocar! Amém irmão? – Dizia Waldomiro.

– Não é verdade, o único sacrifício pedido foi o do filho de Deus, quer dizer eu… – Retrucou Teotônio e antes que terminasse, os obreiros já o seguravam pelos braços.

– Tragam-no aqui… obviamente está endemoninhado!

Teotônio não entendeu e nem atendeu amavelmente a tal pedido. Os ressentimentos do pastor melindrado contra o nosso messias se manifestaram com vigor, dando ensejo aos comentários maldosos que se alastravam mais e mais pelos bancos do templo. Isso porque àquelas conversas, misteriosas para a maioria, em breve somaram-se a outros boatos melindrosos sobre Alexandra; boatos que passavam de um para outro e a colocavam numa situação, também, bastante vulnerável. Assim, por exemplo, irmã Maria, vizinha próxima de Mathias, assegurou afoitamente que por onde passavam – Teotônio e Alexandra – secavam as folhas da árvore e coalhava o leite na chaleira. Mal essa notícia havia se espalhado, aconteceu algo terrível. Teotônio, furioso por terem-no arrastado até o púlpito, buscava se livrar com violência dos obreiros que mais e mais o paralisavam e falavam coisas irreconhecíveis.

O pastor Waldemiro Macedo assistiu impassível, e, sorrindo, disse de si para si: “Eis o que acontece com essa gente simples que diz coisas absurdas!”.

Naturalmente Alexandra estava excitadíssima com os rumos tomados naquele que deveria ser um simples culto, enquanto, Mathias, envergonhado olhava desconfiado para todos e todos olhavam de volta com uma marca estranha e fundante. Após ser obrigado a ficar de joelhos no púlpito, Teotônio ficou a espreitar Waldomiro Macedo e, disse-lhe em alta voz:

goya02– Pastor Waldomiro que fazes aí? Não vê que sou subjugado por teus obreiros? Tome cuidado com seus ensinamentos; suas conclusões são como espadas de dois fios. Na sua primeira apunhalada cerca-os de respostas – Fez Teotônio olhando para todos que, admirados por não verem demônios falarem tão claramente, prestavam bastante atenção – Eles agem como se a verdade coubesse as coisas mais apegadas ao chão. Tiranicamente buscam demonstrar a solidez do que escutam aqui. Passados, entretanto, a primeira apunhalada dessa espada chamada convicção, o prego não se firma, posto que, o madeiro de teus ensinamentos é na verdade areia. De rasgo em rasgo o espírito, dessas pobres almas, se dilacera e eles chegam à conclusão que a ignorância de não saber de teus ensinos os faziam mais felizes, pois seus ensinamentos pastor Waldomiro são uma grande ilusão!

– Qual demônio fala aí? – Perguntou Waldomiro Macedo para Teotônio, que sorria fraternalmente – Acho que é um demônio letrado minha gente!

– O único demônio aqui é tu mesmo! – Retrucou nosso messias, sem saber que força a palavra demônio detinha. Por isso, ecoou um vozerio no templo, porque aquele demônio era bem estranho e lúcido frente a todos os outros que já havia subido naquele púlpito – Quais ensinamentos mais infelizes irá passar para essa gente humilde? – Encerrou Teotônio.

– Está me desafiando… Como ousa desafiar um profeta de Deus – redarguiu Waldomiro – irei expor o caminho da verdade e veremos quem o povo de Deus irá seguir… Olha gente como o filho de Satanás é ousado! – Ouviu-se um sorriso parvo em uníssono e Waldomiro começou uma estranha pregação – Os enigmáticos preceitos de Deus nos empurra na tristeza do seu mundo, Satanás! Desde então, cercados de coisas as palavras vão designando cada uma não é… E formam nosso aprendizado. Aquilo que pensamos corresponde a alguma coisa no mundo, há outras ainda que aprendemos o significado e nada corresponde, mas sentimos dentro de nós. Eis que o amor me parece ótimo exemplo porque é o maior bem que existe. O amor é indescritível e cada um de nós… Amada igreja… Sente a seu modo. Todos que o sentem não deixam de gozar seu bem e sua gloriosa presença. Você Satanás! – Fez Waldomiro apontando para Teotônio – Me disse que meus ensinamentos são como uma espada de dois fios, assim, também é o amor. Elias amou de tal maneira Deus que, desafiando os profetas de Baal, verteu fogo do céu condenando-os a morrerem pela sua descabida crença. O amor concedido a Deus concedeu um bem a Elias e a humanidade que se livrou de Baal!

– Como pode dizer tantas besteiras? Besteiras que podem levar tanta gente ao precipício? Usa seu poder e fica contente em dizer tanta vulgaridade? – Disse Teotônio deixando atônito não só o próprio pastor Waldomiro Macedo, mas também, os fiéis deste: – O bem não pode ser simplesmente o amor… Não é isto que ensino… Infinitos males são causados em nome do amor. Em nossa finita existência amamos vários seres e nos dedicamos a eles. Amamos outras pessoas de paixão, e ai! Deus! Como é doloroso amar um ser finito como nós porque só vale apena se doer. No início todas as virtudes esse ser, a quem dedicamos amor, tem, e acreditamos nas qualidades que projetamos, só para nos alegrar com a miragem que nós mesmos construímos. Como um demônio a nos encantar acreditamos que nossa existência não tem mais significado sem nosso objeto de desejo, e valha-me Deus quantas dores gostosas sentimos porque descobrimos que estamos vivos. Contudo, após alcançarmos a graça de nossa louca paixão; por certo tempo sentimos a glória e detemo-nos tanto nela, que todas as outras coisas perdem sentido. Mas, o tempo do relógio que tudo revela, ensina-nos que as virtudes de outrora tornam-se vícios e a fantasia dissipa-se. A partir daí nova verdade surge; o desejo continua e o Outro que tínhamos já não nos satisfaz. Nessa nossa ordem, creio não haver um só amor carnal que não seja mediado pela necessidade mais corriqueira, tal como, um objeto que se compra. Por outro lado, Waldomiro, o amor fraterno; entre pais e filhos, irmãos e companheiros, embora tenham diferenças entre si, são nessa ordem de mundo igualmente pérfidos e causam transtornos aos que o tem como fonte de alegria. Por vezes uma mãe por demasiado amor deixa de censurar um filho. De igual modo, para não perder a amizade um amigo mente para o outro. No primeiro caso, a liberdade dada ao filho provoca os males que só uma família pode fornecer ao mundo. No segundo, a verdade torna-se falsidade.

Nesse exato instante Waldomiro Macedo se deu conta de que todos os seus fiéis prestavam viva atenção as palavras de Teotônio. Por todos os bancos do templo espalhavam-se uma vertigem que anunciava um estranho movimento, o demoníaco Teotônio tinha uma estranha razão do seu lado e sem se importar com nada continuou:

goya03– Há ainda outro amor, que dos exemplos anteriores é o maior causador de todos os males; o grande valor dado as riquezas. Os homens cegos pela ambição adentram caminhos tortuosos. Se acaso almejam liberdade pelo lucro, ao alcançá-lo se veem acorrentados pelo oficio de buscá-lo indefinidamente. Se almeja sair do reino da necessidade Waldomiro – coisa de que duvido! – é tanto melhor que se diga, que não se faz isso através do acúmulo. Infelizmente a pobreza, amiga da fome e companheira do diabo, guia a cabeça do homem para a utopia das riquezas e por isso templos ricos, como o seu, estão de pé. Centenas de milhares perdem a vida nesse sonho idiota e os raros homens que conseguem alguma coisinha trocam seus grilhões antigos por novos e, disso vem insegurança e desconfiança geral com tudo e todos. Assim, o desejo desse tipo de amor é explorar outro homem. Matam e matam-se por ouro e prata. Uns tanto carregam na alma a esperança do ouro, outros tendo-o carregam temor e receio de perdê-lo. A este descritos agora, temos um outro tipo de amor; o amor a si próprio. Amar a si próprio é não ter conhecimento de si mesmo. É contemplar o próprio reflexo nas cristalinas águas. O homem que assim age, busca com todas as forças seus desejos independentes dos outros. Essas tristes almas não tratam de outras coisas a não ser suas conquistas, fingem escutar os outros, quando na verdade só querem ser escutados. Dificilmente estes homens interessam-se por assuntos que envolvam algo para além deles mesmos, perdem-se chafurdados no triste reflexo de sua miséria! Assim, pastor Waldomiro, mente e erra ao falar do amor como coisa vazia e sublime, nada existe em si mesmo… Mas, faltam duas espécies de amor que não falei; o amor ao saber e o amor ao próximo.

Mesmo os obreiros que tinham arrastado Teotônio até o púlpito miravam e escutavam suas palavras atentamente, os olhos de Waldemiro Macedo tornavam-se coléricos, e Teotônio continuou:

– A verdade tornou-se um acordo de vozes mortas do passado que ecoam no presente, sei que o céu é azul e, só sei que sei, porque a mim foi passado isso, e minha verdade se faz também porque você assim admite. Há entre nós um acúmulo de saberes transmitidos. Podemos partir agora da seguinte questão; o que é o céu? O que é o azul? O que é o próximo? Ambos os três são palavras que designam algo. O céu é algo sobre nossas cabeças que firmam as esferas e regulam as órbitas. O azul é uma cor primária e por meio de sua mistura com outra cor, exemplo, amarela, adquirimos o verde. Admitimos que a mistura da cor, gera novas cores. Admitamos agora que a mistura dos diversos objetos transforma os antigos em novos objetos. Assim, sucede ao Próximo que, não sendo um objeto, se altera e se transforma pelo acúmulo de conhecimento passado de geração em geração. A diferença é que o homem pode precipitar-se e retirar o que necessita do futuro. Isso é tolerado não pela lógica, mas pela vida e firmamos uma verdade, mas, se perguntamos; o que o céu faz e qual sua serventia? O que a cor faz e sua serventia? O que é nosso próximo e sua serventia? Fazer e servir são mover, logo, a verdade é um movimento, este se dá nos acúmulos passados de geração em geração, no ambiente da nossa história, logo, a essência está no movimento, por isso o nosso próprio sentido é a relação com o próximo. Amar o próximo é amar o conhecimento, porque conhecer é conhecer alguma coisa no seu peculiar e particular movimento, reinventando seus significados que são passados pelo próximo. Cada coisa, uma particularidade e cada particularidade, um todo que oculta nossa relação com o Outro, por isso, o amor ao conhecimento livra-nos do trivial amor, porque amar o conhecimento é amar o próximo, pois só conheço pelo Outro! – Teotônio encerrou retomando a serenidade do santo sábio. Sentiam-se suas palavras refulgir nas paredes do templo.

As mãos de Waldomiro tremulavam e com forte incerteza a transir seus pensamentos conservava o olhar no horizonte escutando aflito um Glória e Aleluia saindo das bocas de seus fiéis e sendo endereçadas as palavras de Teotônio. Homens aturdiam-no com olhares felizes e, a um só tempo, desconfiados. Clamavam aos céus e pareciam saber que ali havia algo de diferente e inusitado estava acontecendo. Nos pensamentos do pastor do Templo a tragédia ganhava espaço. Para não cair em despeito ou desrespeito, enfim, para não perder fiéis e sair desmoralizado, Waldomiro tentava, mesmo diante da força filho do homem, empreender a devida resposta e ergueu sua voz dizendo:

– Eita diabinho danado hein! Tu não me assustas não! – Dizia o pastor sem graça esperando encontrar coro de risos – Quer dizer que para você, não podemos encontrar a resposta em essência de nossas perguntas? Segundo você a essência se encontra na relação que temos com as coisas e com o próximo? – Teotônio confirmou com olhar ao que Waldomiro prosseguiu – Se a verdade é então movimento e transformação, como o diabo diz, se a essência do conhecimento se estabelece com as coisas que mudam, ao acreditar nisso se pode sucumbir diante da impossibilidade de se ter fé, pois, a fé é dura e enraizada e, segundo o que o diabo acaba de ensinar, tudo que existe está em movimento. Isso torna claro que tudo será dissolvido mesmo a fé! – Fez Waldomiro quando o soar das vozes confundindo-se nos largos adros do templo impunha-lhe uma terrível dúvida de seu triunfo contra Teotônio:

– Se acredita ser a fé aquilo que escreveram nas cartilhas terá razão – Redarguiu Teotônio – Mas se leu minimamente a Bíblia notará que a fé de cada apóstolo, discípulo ou profeta eram diferentes entre si e que não há na fé nada de duro e enraizado… Veja os questionamentos do paciente Jó, a teimosia de Jonas em ir para Nínive ou a incredulidade de Tomé! A fé é algo em movimento, assim, como a relação dela com a vida está na transformação.goya05

– O que diz? – Retrucou ultrajado Waldomiro pela inesperada resposta e pelo evidente conhecimento que tinha Teotônio da bíblia – Está me dizendo que a fé muda?

– A fé baseada no milagre e na santidade não surge do existente, mas, da narrativa que pode, pelo seu engenho, atingir ou não os corações. A verdade está na dúvida, e a negação da fé que é a dúvida é o motor que a alimenta. Por isso, existe mais fé na dúvida do que na convicção! Por isso é a fé também um movimento.

Meio surpreso, meio insatisfeito com a habilidade invejável de raciocínio tresloucado de Teotônio, Waldomiro Macedo sacudiu a cabeça, um sorriso taciturno nos lábios fez com que a longa barba se eriçasse. Sem querer levar aquela discussão adiante, ele aprontou-se às pressas, ainda sorrindo, e partiu para o ataque. Ataque que consistia na acusação de que nosso messias estava endemoninhado. Agora com as faces sofríveis, ele tateou o rosto inchado com a angústia de um doente porque pela primeira vez em seu ministério tinha perdido o desafio para o demônio. Pensava incessantemente no que havia sido dito por Teotônio e tudo escapava do raciocínio que lhe tinham imposto desde sempre. Relembrou, um a um, os caminhos argumentativos que Teotônio tomou. Sob o efeito dessas lembranças, parecia-lhe que a impotência se tornava maior, até que um lance maluco de Alexandra lhe retirou todo o peso das costas:

– Ladrão! É isso que você é! Ladrão!

– Quanto mais a igreja de Cristo se torna perfeita, mais ela é perseguida! – Falou Waldomiro Macedo languidamente no microfone.

As imagens que ilustram o artigo são de Francisco de Goya

2 COMENTÁRIOS

  1. Prezada Rebecca e demais leitores,

    Esta semana tivemos um incomum problema de comunicação com o autor e por este motivo o capítulo seguinte da novela não pode ser processado em tempo para ser publicado no domingo passado. Por este motivo, a publicação do referido capítulo está prevista para o próximo domingo (dia 6). Lamentamos o inconveniente e agradecemos a compreensão.

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