Perspectiva estratégica é pelo menos um plano de ação na luta de classes que, portanto, devemos conhecer à luz dos impasses reais do movimento. Por João Paulo
Limites da base
A propósito da luta dos secundaristas é dito que “filhos ultrapassam os pais”, “a nova geração abre caminhos”, otimismo que delineia um obstáculo: a desorganização dos “pais” aparece como limite objetivo ao avanço da juventude. Na onda de ocupações de escolas, a classe trabalhadora, como se diz, brilha pela ausência. Assim, partimos do pressuposto de que a luta dos secundaristas não poderia ultrapassar a si mesma.
Por que, afinal, as críticas não encontraram correspondência prática pela construção de um Comando das escolas em luta em São Paulo verdadeiramente democrático, erguido por assembleias nas escolas? Porque a prática da democracia direta não estava instituída no interior das ocupações, e nenhum grupo é capaz de instituí-la apenas com palavras.
A proposta da ocupação foi erguida pelo coletivo O Mal Educado. Nenhuma outra organização a defendeu praticamente. Trata-se de uma qualidade política ignorada por amplos setores da esquerda. Nas reuniões d’ O Mal Educado discutia-se as condições de possibilidade para uma primeira ocupação, que, de fato, aconteceu na E.E. Diadema. Em seguida, o aumento subsequente do número de ocupações esgota – parcial e quase imediatamente – sua função. O resultado foi antevisto por seus próprios integrantes. Não era difícil perceber que o aumento do número de ocupações traria consigo a impossibilidade de controlar o movimento. E eis o ponto: a intenção, justamente, era perder o controle. Quando estudantes de várias regiões reúnem-se e deliberam ocupar escolas há uma experiência de democracia direta embrionária. Pensa-se com a própria cabeça no que seria a efetiva “maioridade”. Talvez aqui resida diferença importante em relação a junho de 2013.
As consequências da inexistência de organização prévia se refletiram no Comando das escolas em luta de SP. Afinal, com mais de duzentas escolas ocupadas, só mesmo sua articulação num espaço eleito democraticamente pela base. Sem isto, o movimento não existe para si, não é capaz de pensar-se e influir sobre si mesmo. Esse Comando não tinha a representação de sequer um terço da totalidade das escolas ocupadas, embora continuasse referenciando a luta. Um dos exemplos foi a deliberação dos travamentos simultâneos de vias que se irradiou para além das escolas que compunham o Comando.
O núcleo “adiantado” já não tinha, porém, condições de propor avanços reais. Qualquer proposta que representasse um avanço real (tal como a ocupação em seu momento) já não resultaria da iniciativa do núcleo “destacado” que esbarrou – nunca é demais repetir – nos limites da base desarticulada.
Crise das formas de controle
Assim, as entidades abertamente atreladas ao Governo Federal (UMES, UBES, UPES) perderam o controle do movimento, retomando-o à medida que a direção até então possível (O Mal Educado) tornava-se impossível. Outras organizações oscilavam: incapazes de apresentar uma direção, mas não dispondo, ao mesmo tempo, do suficiente poder material para exercer controle como o fizeram as entidades pelegas, tais organizações (pensamos, sobretudo, em ANEL e JUNTOS) mantiveram-se nas franjas do centrismo.
Não se trata de detalhar as formas de controle. Elas aparecem reforçando tendências à burocratização imanentes à base do movimento. Onde nota-se um grupo de secundaristas com maior influência, os “gerentes” fazem renascer a dominação. Sob a pressão da experiência imediata, muitos secundaristas percebiam os sintomas de burocratização, não dispondo dos meios concretos para saná-los. A própria APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) jogou o peso gigantesco de sua força material… Da mesma forma, a utilização do crime organizado em escolas da periferia, milícias armadas etc. tinha como pressuposto político aprofundar as fragilidades organizativas do movimento.
“Não tem tu, vai tu mesmo!”. À radicalização espontânea segue-se uma “estratégia” específica imprimida por interesses estranhos ao movimento, fortalecendo uma perspectiva reformista, ou, como dizem alguns, “socialdemocrata”. Depende da realidade prática da luta. A “socialdemocracia” também cede passo, cordialmente, a mecanismos cada vez mais abertos de repressão. Todo um arsenal de ferramentas de controle da classe – em movimentos sociais, estudantis etc., mas principalmente no meio sindical – que foi historicamente constituído no interior de um ciclo histórico de acumulação do capital.
A burocracia petista é uma excrescência contemporânea dos primórdios do ciclo histórico que se iniciou mundialmente no final da década de 70, a que muitos chamam “neoliberalismo”, e que, atualmente, vem abaixo. Com ele todo o arsenal de controle da luta de classes a nível mundial terá de ser forçosamente alterado. Nesse sentido, as ocupações de escola constituem um acontecimento singular. Uma das peças da engrenagem de controle da classe trabalhadora (as entidades estudantis) falhou. Se a reivindicação dos secundaristas pressupõe o “modelo petista de diálogo”, por outro lado este modelo não conseguiu evitar que duzentas escolas fossem ocupadas.
Aqui é importante assinalar outra consequência dos limites da base, pois, aparentemente, quando o significado estratégico do avanço prático não é exposto claramente pelo próprio movimento pode gerar uma negação (muitas vezes mesclada à “ideia de autonomia”) dos próprios instrumentos históricos de luta, sindicatos, entidades estudantis etc., que aparecem como formas prescindíveis ao avanço. Do ponto do movimento real, problema tão sério, talvez, quanto o suposto fortalecimento de ilusões “socialdemocratas”.
Perspectiva estratégica
A intervenção d’ O Mal Educado foi imprescindível à realização das ocupações, mas trouxe consigo limites análogos a junho de 2013. Não projetava espaços para discussão estratégica. Finda a luta, com o aumento da passagem a fênix-MPL renasce das cinzas. No caso d’ O Mal Educado a perspectiva de continuidade esbarra na imprecisão de posições em seu interior – não por outro motivo chamávamos O Mal Educado de “frente”. Inclusive, com relativo predomínio do empirismo “autonomista” onde classe trabalhadora é uma espécie de entidade não conceituada – inapreensível conceitualmente. Só existe no calor da revolta popular espontânea. E, como coloca Hegel sobre a formulação do conhecimento, “este pensamento pareceu tão plausível que […] retraiu o interesse pelos objetos e sua preocupação com eles. Mas a inquirição do conhecer não pode ter lugar a não ser conhecendo […] querer conhecer antes mesmo de se conhecer é tão destoante como o sábio propósito daquele escolástico de aprender a nadar antes mesmo de se aventurar à água”.
Perspectiva estratégica é pelo menos um plano de ação na luta de classes que, portanto, devemos conhecer à luz dos impasses reais do movimento. Organizações tradicionais da esquerda não foram capazes de perceber a oportunidade do ascenso secundarista; já o grupo que agitou na prática as ocupações não tinha, por sua vez, estrutura e projeção estratégica. Talvez fosse o caso de começar por extrair a estratégia latente às ocupações enquanto manifestação de uma crise maior de dominação.
Essa experiência prática de insubordinação em relação a velhos métodos de controle deve aparecer como tal, ou seja, sob o pano de fundo do último período histórico onde tais métodos foram utilizados para que chegássemos à situação atual, com a pergunta: quem vai pagar a conta da crise?
As obras que ilustram o artigo são de Jacek Malczewski
Ao ler esta análise, duas questões me vem à mente:
1) será que esperamos demasiado dos secundaristas em termos de maturidade política? Realmente, deram aula de luta para outros setores, mas há um limite a respeito do que se pode esperar em termos organizativos, especialmente no que se refere à influencia de organizações e à desorganização das bases.
2) avançando o exemplo, me pergunto se esse tipo de experiência faz os integrantes d’O Mal Educado, assim como de qualquer outra agrupação presente, sentirem-se mais estudantes ou sentirem-se mais integrantes-de-organização.
Vejo uma certa confusão entre a questão da estratégia como algo formulado e desenvolvido por um grupo político (essencialmente ideológico e prático ao nível geral da classe) e a estratégia em uma atuação gremial estudantil, que assim como nas organizações dos setores produtivos, demanda uma construção com companheiros de diferentes tendências ideológicas e agrupações.
Não é possível fazer uma análise do movimento secundarista sem ressaltar o papel e a importância dos grêmios livres. Qualquer tentativa de análise política da luta estudantil que nao leve em conta essa perspectiva como tarefa organizativa do próprio movimento soa mais como pedantismo academicista do que a tentativa de analisar os problemas oriundos da própria crise de direção, sem mencioná-la, outro problema do texto, juntamente com o aparelhamento burocratico das entidades (UPES, UMES, UBES). O movimento autonomista não tem respostas para isso, pois rechassam o organizativo. A esquerda pequeno-burguesa (PSOL e PSTU) não tem inserção nenhuma nos meios secundaristas, portanto não se constituiram como direção obviamente, pois como a majoritária (Pseudobe) caíram lá de paraquedas para agir no mais característico oportunismo. A impressão que tive foi que tanto o autor do texto como o comentador acima analisam o movimento secundarista com olhos de movimento estudantil universitário, que são completamente diferentes. Não misturem alhos com bugalhos.
Lucas,
Sem dúvida, há um limite da luta secundarista no sentido básico de que não mexe na relação fundamental no capitalismo que permanece sendo a exploração do trabalho assalariado. Embora seja um local de trabalho nas escolas os estudantes não estão vendendo a força de trabalho… Tem muita diferença com a luta no terreno próprio onde ocorre exploração.
No mais, a relação da luta secundarista com a luta dos trabalhadores não estava colocada “naturalmente”, na prática.
A expectativa em relação aos secundaristas tem a ver com o significado do método de luta que eles avançaram na atual conjuntura, enquanto termômetro da perda de controle da burocracia petista. Mas a perda de controle das entidades estudantis pelegas não significa que, necessariamente, a burocracia sindical, por exemplo, tem seus dias contados… Não é uma relação causal. Mas acredito, sim, que é um termômetro.
Além do mais, essa “perda de controle” dos secundaristas, como alguns camaradas indicaram em textos anteriores foi logo contida pela burocracia e pela institucionalidade etc.
Lucco,
o principal problema do texto é não falar da perspectiva de construção de grêmios livres como “tarefa organizativa” do movimento secundarista? Discordo. A não ser encarando sua colocação como um acréscimo à perspectiva do texto, um complemento no sentido de que os limites da base — que é o ponto central do texto, o qual você sequer menciona — resultam justamente da insuficiência de organização independente. Mas a construção de “grêmios livres” é apenas um aspecto do processo de superação desses limites da base.
Em meio a tais limites que o movimento expôs, “grêmio livre” pode ser qualquer coisa, não é mesmo?
Portando, sobre a crise de direção… É o ponto central do texto. Não é questão de “mencioná-la”, mas de tentar expor um de seus aspectos concretos: o fato de que o movimento saiu do controle das direções burocráticas, mas esbarrou nos limites da base, ou seja, na ausência de quadros, de apoio de setores organizados da classe, de um programa etc.
João, acho que vários pontos da sua análise são pertinentes, mas dizer que a limitação básica do movimento secundarista é não mexer na relação fundamental do capitalismo me faz crer que tem algo muito errado.
Meu ponto de vista é que o movimento secundarista tem sérias limitações pelo perfil da base, seja no Brasil, seja no Chile, em qualquer lugar: são indivíduos extremamente jovens, no começo do processo de formação crítica.
Agora, querer analisar a luta secundarista sob o critério do avanço contra o capitalismo me parece extremamente equivocado. É como se tivéssemos perdido a capacidade de pensar as mediações. Creio que os debates atuais neste site a respeito de estratégias e organização são fundamentais para tratar estas questões, pois não é possível que estejamos a pensar a luta secundarista com critérios aplicáveis ao movimento proletário em sua totalidade.
No mais, esse fetiche pela “perda de controle” me parece estar duplamente equivocado. No caso “original” do MPL, a suposta direção que eles exerciam se limitava à convocatória. Não estamos falando aqui de um sindicato ou partido poderoso que vigia os trabalhadores e persegue as dissidências. Dizer que o MPL tinha qualquer tipo de controle é forçar o sentido da palavra “controle”, poderia dizer até que se trata de um recurso retórico para pintar algo puramente formal como “libertário”. O mesmo se aplica aos secundaristas: a UBES não tem controle de nada sobre a base dos estudantes, no máximo ela chega atrasada para aparecer na foto, o Mal Educado também não tinha “controle” de nada, era apenas o polo mais combativo dos estudantes se esforçando para mobilizar os seus companheiros. Numa base desorganizada, como você mesmo bem reconhece que o era, não existe “controle” pois não há atividade gremial para ser controlada. O máximo que existe é a patrulha policial para impedir repressivamente que surja qualquer organização, e acusar a UBES disso é algo bastante sério que precisaria de mais provas públicas (quanto às diretorias das escolas, ficou claro seu papel policial nas ocupações, mas também no cotidiano).
Para mim, ambos casos são exemplares de nosso afã de fazer análises críticas anti-capitalistas em terrenos onde os movimentos nessa direção são parcos e apenas embrionários. Ao recusar o “eterno acúmulo de forças” do reformismo, terminamos simplesmente ignorando a necessidade de se acumular forças e assim qualquer tipo de expressão de luta, por formativo ou simbólico que seja, se torna um candidato a “mexer nas relações fundamentais no capitalismo”, como se a auto-gestão da sociedade estivesse ao dobrar-se a esquina. Como se fosse apenas a falta de uma direção lúcida…
Por sua vez, o tal Lucco quer nos fazer crer que a História impõe como necessidade que a tarefa atual do movimento secundarista é organizar os gremios livres. Oras, se você deliberou isso com tua organização talvez fosse melhor expor a fonte ou o documento com a devida argumentação. Porque que eu saiba, quem decide uma tarefa é um conjunto de militantes, não uma necessidade superior que se impõe.
E por acaso organizar diretórios estudantis livres também não é algo importante no movimento universitário? Ou aquela velha militância das universidades públicas já é suficiente para garantir que os estudantes sejam um setor dinâmico e mobilizado na sociedade brasileira?
Meu Deus! De novo esse negócio de crise de direção! Fosse assim o movimento estudantil tava bem porque pra cada 1 estudante há 1 dirigente (risos). Como diz um amigo meu: É muito Lenin para pouco operário!
Meu já que é crise de direção… Vamos todos tirar a CNH que resolve!
Lucas,
entre a luta secundarista e a auto-organização da classe no cotidiano — sobretudo na defesa do salários — existem várias mediações que não estavam claras na luta secundarista. Foi isso que eu disse. Qual o seu ponto? Você quer as mediações? Também quero, sobretudo na prática! Nessa última jornada de atos do MPL contra o aumento da passagem ouvi a seguinte afirmação (sintomática): “se a gente conseguir barrar este aumento, vai encorajar os trabalhadores a lutarem contra todos os aumentos…”, a pessoa que o disse tentou fazer alusão à crise. Como quem diz: “estamos cientes dela”. Nem tanto.
De fato, a questão do preço das mercadorias é central na vida dos trabalhadores. Fugir disso é tapar os olhos. Mas, de todas as mercadorias, qual a mais valiosa? A força de trabalho. Não faz o menor sentido pensar que os trabalhadores devam se levantar contra o aumento de todas as mercadorias pontualmente, sendo que eles detém a mercadoria mais valiosa, a força de trabalho. Aliás, todo trabalhador sabe que, para combater o aumento da luz, feijão, aluguel… é mais “prático” aumentar o salário. Trata-se da manutenção da força de trabalho. O que isso tem a ver com a questão dos secundaristas? Outro salto sem mediação? Vejamos.
“Se a gente conseguir barrar este aumento, vai encorajar os trabalhadores a lutarem contra todos os aumentos…”, tá aí a falta de economia política num argumento. A questão é que, se disser isto corre o risco de ouvir a mesma coisa que você disse pra mim: “não se pode analisar a luta contra o aumento da passagem do transporte público sob o critério do avanço contra o capitalismo”. Ou então “Não se pode analisar a luta do MPL sob critérios aplicáveis ao movimento proletário em sua totalidade”. Por que não? Ninguém tá querendo obrigar o MPL a deixar de ser um movimento reformista. Ou querendo forçar para que a luta dos secundaristas derrube o capitalismo, rs… Não é isso, companheiro.
Não é porque utilizamos tais critérios que ignoramos as particularidades da luta secundarista (ou do MPL). Pelo contrário: só partindo desses critérios é que podemos compreender as particularidades. Para um certo “acúmulo de forças” inevitável, ao qual não podemos renunciar, como você disse, justamente é preciso um esforço para assimilar a luta dos secundaristas ao conjunto de experiências da classe. Mas como não é um setor da classe, diretamente, esse esforço deve levar em conta essa diferença. Dizer isto não é ignorar as particularidades da luta secundarista.
“Meu ponto de vista é que o movimento secundarista tem sérias limitações pelo perfil da base, seja no Brasil, seja no Chile, em qualquer lugar: são indivíduos extremamente jovens, no começo do processo de formação crítica”
Concordo, e acrescento: muitos ainda não ingressaram no mercado de trabalho, ou estão desempregados etc. Não tem experiência de militância. Aspectos do limite da base, de que falamos. Nesse sentido, estarem empregados ou não; fazer a luta junto com companheiros de trabalho ou numa escola é diferença fundamental para compreender a “formação” desses jovens, o “processo de formação crítica” deles etc. É isso. As mediações não foram evitadas, só precisam ser desenvolvidas (sobretudo na prática). Acho que tem que tomar cuidado é pra não atolar nas mediações… Você diz ainda:
“Dizer que o MPL tinha qualquer tipo de controle é forçar o sentido da palavra “controle” (…)No caso “original” do MPL, a suposta direção que eles exerciam se limitava à convocatória”
Cara, eu pessoalmente nem acho que o MPL tinha controle. Não tinha controle em 2013. Tinha a primazia na convocatória dos atos e na sua preparação. Era a forma encontrada para conduzir a uma certa “perda de controle”, sim. Constituía a direção dos atos, não a direção da classe, ou coisa do tipo. Realmente, uma direção tênue e frágil. Mas, por mais paradoxal que pareça, convocar atos aparecia, naquela conjuntura, não como forma de controle mas de criar um tipo de revolta espontânea nas ruas, que massificou, levou à revogação do aumento e caducou a função do MPL caducou. Desde ali o MPL caducou, de certa forma. Acho que junho de 2013 tem mais a dizer sobre as limitações históricas da esquerda do que sobre a “capacidade de direção” ou controle do MPL (coisa que o próprio MPL, atualmente, ainda não compreendeu).
Agora, quanto a dizer que não existe controle na base dos secundaristas, dentro das escolas, tenho que discordar. Além disso, você distorce os argumentos: “o Mal Educado também não tinha ‘controle’ de nada, era apenas o polo mais combativo dos estudantes se esforçando para mobilizar os seus companheiros”. Em primeiro lugar, não disse que O Mal Educado tinha controle. Pelo contrário, disse que a importância d’ O Mal Educado foi o esforço para colocar em prática uma primeira ocupação no momento certo. E isso desatou a onda de ocupações e o movimento saiu do controle. Isso é bem claro no texto. O outro ponto do argumento:
“Numa base desorganizada não existe “controle” pois não há atividade gremial para ser controlada (…) e acusar a UBES disso é algo bastante sério que precisaria de mais provas públicas”.
Provas públicas de que a UBES é um bloqueio histórico à luta dos estudantes? Bom, deixemos isso de lado… Há uma inversão na ordem das determinações: como a base está desorganizada, não tem o que controlar. É este o seu raciocínio, simplório. Discordo. Penso que a desorganização da base resulta justamente do controle, mas o controle, aqui, é pensado historicamente e não só empiricamente. Ou seja, funciona ao longo do tempo e conduz a um grau tão profundo de desorganização, que o processo se automatiza. Realmente, quando a base está desorganizada não precisa sempre um controle explícito, aberto. Há uma combinação entre consenso e coerção (sendo o próprio “consenso” uma forma velada de coerção). Nesse sentido, bastou as ocupações explodirem que a coerção aberta desvela-se.
Acompanhei algumas escolas na ZL em várias tinha integrantes da UBES, UMES, etc, dando ordens e gritando com estudantes etc. Você duvida?? Quem acompanhou a luta por dentro, sabe do que estou falando. “Não existe controle pois não há atividade gremial para ser controlada”. E por que não o contrário? Ou seja: não há atividade gremial justamente porque os grêmios estão controlados!
Nas escolas que acompanhei, inclusive, em várias tinha diretor da UMES, estudante com cargo em entidade. Coincidentemente, estavam instalados em grêmios. Enfim, a tese de que não existe controle porque a base está desorganizada “naturaliza” a desorganização. É um ponto de vista estático, mecânico e empirista. A desorganização cotidiana que acaba dispensando formas mais duras de controle, resulta, ela própria, de um controle historicamente estabelecido.
Não por outro motivo, companheiro, terminei o texto dizendo:
“Essa experiência prática de insubordinação em relação a velhos métodos de controle deve aparecer como tal, ou seja, sob o pano de fundo do último período histórico onde tais métodos foram utilizados para que chegássemos à situação atual”.
O desafio, no caso da luta secundarista, é pensá-la do ponto de vista do avanço da auto-organização da classe trabalhadora. Dizer isto, não é abstrair as particularidades da luta secundarista. Muito pelo contrário: sem esta perspectiva o esforço de análise é inútil. Sé é útil à perspectiva predominante, que enxerga a luta secundarista numa perspectiva de “luta pela educação pública de qualidade” etc.
João, a sua tese sobre a função coerciva da UBES soa bem, mas melhor do que soar, ela se encaixa perfeitamente na caracterização de uma “crise de direção”. Bastaria tirar a atual direção da UBES e substituí-la pela direção lúcida e anti-burocrática que as coisas se resolveriam; a organização “natural” dos estudantes floresceria, já que hoje se encontra mecanicamente barrada. Sem esse controle, entre o histórico e o estruturalista, os estudantes são “naturalmente” organizados.
Descobrimos assim que a classe trabalhadora hoje está desorganizada por culpa das direções mal-intencionadas; que os estudantes secundaristas (e talvez de todo o Brasil) são espontaneamente auto-organizados, mas um pequeno número de burocratas desanima a enorme maioria em escolas que nem sequer ouviram falar da UBES.
Ou seja, será necessária uma grande votação a favor dos anti-burocratas, concedendo-lhes um mandato plenipotenciário “sob nova direção!”, para que então os estudantes e a classe passem a estar organizados.
Esperemos sentados.
Lucas,
Não disse que os mecanismos de coerção, repressão e controle dos estudantes resumem-se às entidades estudantis ou que o bloqueio representado por estas últimas resume-se à porrada. Isto são conclusões suas.
A rigor, “tudo é controle”. Sendo o maior as relações sociais de produção na forma como estão organizadas (e ainda ampliando, para dizer que todas as relações sociais sempre “produzem” algo, reproduzindo-se a si mesmas… antes que você acuse o reducionismo do meu argumento, muito embora a vida real continue orbitando em torno da produção do mais-valor, apesar do seu incômodo).
Você quer me atribuir a falsa autoria do seguinte “argumento”: só as direções burocráticas servem de bloqueio. Logo, as entidades estudantis substituem a polícia e, portanto, basta “remover” tais direções dos aparelhos que tudo se resolve! Eu começo a crer que você tende a acreditar nisso…
Os secundaristas foram “controlados” pelos pais, mídia, polícia, pastores evangélicos, a necessidade de trabalhar num call center, o desemprego… etc. Mas por que, afinal, destacar especialmente a coerção (velada ou não) dos aparelhos, entidades estudantis e organizações políticas?
Porque estes eram os setores políticos existentes imediatos, num processo de luta política prática. Setores previamente organizados e que, supostamente, estão ao lado dos estudantes. Não equiparei a repressão da polícia à burocratização da UBES, embora, como se sabe desde o começo da modernidade (ou desde a antiguidade?) a guerra é a continuação da política por outros meios.
“Sem esse controle os estudantes são “naturalmente” organizados. Descobrimos assim que a classe trabalhadora está hoje desorganizada por culpa das direções mal intencionadas”.
Bom, se basta suspender o controle que os estudantes se organizam naturalmente não dá para compreender porque isto não aconteceu na luta secundarista do final do ano passado, onde, de fato, como tentei apontar no texto, houve um “descontrole”, ou seja, não foi possível impedir que duzentas escolas fossem tomadas de assalto por alunos. E, no entanto, esse princípio de auto-organização “sem controle” esbarrou logo num limite. Estranho, não?
No texto há um tópico onde tento explicar isto como resultado dos limites últimos da base do movimento. Mas, companheiro, agora eu não entendi: se você está dizendo, através de ironia, que os estudantes não podem se organizar “naturalmente” então quer dizer que necessitam algo mais que o impulso da revolta inicial. Esse algo mais não seria de certa forma… direção?
Só acho que você deveria parar de pensar a palavra “direção” como a representação de meia dúzia de iluminados. Ausência ou crise de direção significa isto mesmo que está parecendo: direção = para onde ir? como dar o próximo passo? agora que as escolas foram ocupadas — pensavam os secundaristas — pra onde caminhar?
Não há, nesse sentido, uma ausência de direção, norte, horizonte?
E, portanto, quando tentei apontar os limites da base estava pressupondo que a própria base é que devem conhecer a direção a seguir. As primeiras escolas ocupadas apontaram uma direção, um caminho. Assim como os atos anteriormente. O movimento seguiu, porque era um destino certo. Mas o passo posterior não emanava da base. Não haviam setores preparados na base capazes de vislumbrar e preparar um próximo passo adiante. Sobretudo porque este passo — a direção — não se fala, da boca pra fora. É necessário demonstrá-lo praticamente.
Direção, portanto, não são indivíduos, isoladamente. Mas sim um “mapa”, os “meios” reais de percorrê-lo. Um exército preparado etc. Aqui entramos na discussão sobre a “estratégia democrático-popular”, ou “socialdemocrata”, ou (como prefiro) simples cooptação via consumo dos setores mais empobrecidos da população combinado a altas doses complementar de repressão aos mais “descontrolados” (por exemplo, secundaristas).
Quando falamos dessa estratégia aí, não é uma “crise de direção”, uma estratégia que aponta na direção da derrota dos trabalhadores? Ou por acaso essa “estratégia” aparece como perspectiva de futuro? O problema pra você começa quando a discussão sai um pouco do nível teórico e tenta apontar a função prática dos aparelhos, correspondentes a essa “estratégia” de conciliação.
A desorganização na base também não é “natural”. Para além da própria vida dos trabalhadores, e para além dos problemas internos do movimento, a influência vem “de fora” sem dúvida. E também aquela que pode apoiar, sem alarde, as tendências objetivas, porém embrionarias, à auto-organização dos trabalhadores. Tais tendências, tanto quanto a ideologia burguesa, resultam das mesmas condições objetivas.
Enfim…
Creio que a discussão aqui esgotou.
João, acho que a discussão foi sendo saldada em alguns pontos, mas você usar o termo “crise de direção” de forma tão ingênua assim é bastante estranho e para mim é justamente o principal problema; não faz sentido usar uma consigna da 4a internacional e tentar se afastar dela de forma argumentativa. Eu recomendo que você repense o uso desse “lugar comum”, que parece ser a função que você deu a essa premissa do Programa de Transição.
O curioso é que, nesta discussão (tanto no texto quanto noscomentarios) eu não utilizo a expressão “crise de direção”, até o momento em que você o faz, interpretando meus argumentos.
Isto significa que o pressuposto central dos meus argumentos estava claro. Pois sim, é de crise de direção que tentei falar.
Portanto, ou eu estou utilizando a noção de “crise de direção” ingenuamente, ou é você que está reduzindo ela a uma fórmula mecânica do tipo:
“será necessária uma grande votação a favor dos anti-burocratas, concedendo-lhes um mandato plenipotenciário “sob nova direção””
para então superar a crise de direção, nas suas próprias irônicas palavras.
Mas, como eu disse no meu comentário acima, e permanece: não é nesse sentido tão “ingênuo” que a crise de direção está pressuposto.
E certamente, também não é nesse sentido mecânico e pobre que a crise de direção aparece no Programa de Transição.
Abraço.