A lei ao passo que garante os privilégios e a funcionalidade da hegemonia em voga destina-se em seu caráter punitivo aos revoltosos funcionando como estrutura que fundamenta os comportamentos e as mentalidades a um regime de obediência. Por Arthur Moura [*]
A polícia tem nesse momento na cidade do Rio de Janeiro importância fundamental e imprescindível, pois ao passo que garante as obras e os megaeventos internacionais a um custo bilionário (estima-se que até o momento foram investidos quase 300 bilhões), contém e controla boa parte da população num movimento ao mesmo tempo lucrativo para a especulação funcionando como limpeza social para o novo projeto de cidade, a cidade-empresa. O ressentimento, portanto, não tem como ser anulado em diálogos por mais produtivos que possam ser já que na prática o que se opera são antagonismos entre classes que historicamente enfrentam-se num movimento dialético de superação de contradições.
Por isso pensar a questão da segurança pública implica em compreender os debates que se dão nesse campo e os discursos produzidos pelos partidos de esquerda e demais segmentos de orientação reformista para que possamos chegar a conclusões que não só refute a idéia de disputar as polícias em favor da democracia, mas que coloque definitivamente a impossibilidade de se reformular as instituições policiais como alternativa à emancipação dos trabalhadores abrindo portanto o campo para se produzir um pensamento favorável a criação de forças que enfrentem seu inimigo histórico a partir de uma organização de classe pautada não mais por um programa eleitoral. É preciso, portanto, definir os limites da social democracia.
A social democracia é, como definida por Guy Debord, “a representação operária que se opõe radicalmente à classe”. Ela é, desse modo, uma fração de dirigentes, intelectuais e forças religiosas oriunda da classe trabalhadora que possui todo um instrumental técnico para impedir a eclosão de conflitos na luta de classes. Porém, a social democracia é um comportamento político que tem uma série colorações histórica e geograficamente localizadas. Isso quer dizer que a social democracia brasileira tem diferenças internas muito significativas e também em relação a sua forma européia no melhor estilo “desigual, mas combinado” ou ainda “diverso, mas não alheia”.
Essa definição de Lindberg Campos introduz a que queremos dar a social democracia também muito discutido em “Capitalismo e Social-democracia” de Adam Przeworski. Diz o autor:
Ao emergir por volta de 1850, o socialismo era, pois, um movimento que completaria a revolução iniciada pela burguesia, arrebatando-lhe o “poder social” exatamente como ela conquistara o poder político. O tema recorrente do movimento socialista desde então tem sido essa noção de “estender” o princípio democrático da esfera política para a social, a qual, na verdade, é principalmente econômica. (…) A democracia política, especificamente o voto, era uma arma já pronta, à disposição da classe trabalhadora. Tal arma deveria ser rejeitada ou empunhada na trajetória da “emancipação política para a emancipação social?”.
E continua Adam:
Alex Danielson, um dos fundadores da Social-Democracia sueca, afirmou em 1888 que a participação eleitoral modificaria o socialismo, transformando-o “de uma nova teoria da sociedade e do mundo em um reles programa de um partido meramente parlamentarista, e nesse instante extinguir-se-á o entusiasmo no núcleo do proletariado e o ideal da revolução social degenerará em uma busca de ‘reformas’ que absorverão todo o interesse dos trabalhadores. Como observou em retrospecto Errico Malatesta, “os anarquistas sempre se mantiveram puros, continuando a ser o partido revolucionário por excelência, o partido do futuro, pois foram capazes de resistir ao canto de sereia das eleições”.
Para Adam, “os socialistas passaram a tomar parte em eleições porque precisavam ocupar-se da melhora imediata das condições dos trabalhadores. Entretanto sua participação visava à efetivação do socialismo. Os que conduziram partidos socialistas a batalhas eleitorais acreditavam que as classes dominantes podiam ser “vencidas em seu próprio jogo”. A revolução dar-se-ia nas urnas.
Para obterem êxito na competição eleitoral, os partidos social-democratas devem apresentar-se a diferentes grupos como instrumentos para a realização de seus interesses econômicos imediatos, no sentido de que tais interesses podem ser concretizados quando o partido sair vitorioso da próxima eleição. Alianças com elementos de outras classes devem fundamentar-se em uma convergência de interesses econômicos imediatos da classe operária e de outros grupos. Os social-democratas precisam oferecer crédito aos pequenos burgueses, pensões aos empregados de colarinho-branco, salário mínimo aos operários, proteção aos consumidores, instrução aos jovens, salário-família às famílias. Tal convergência de interesses não pode ser encontrada em graus que reforcem a coesão e a combatividade dos operários contra outras classes. Quando os social-democratas estendem seu apelo, têm de prometer lutar não pelos objetivos específicos dos operários como coletividade – aqueles que constituem os bens públicos para o operariado como classe – mas somente pelos objetivos que os operários compartilham, como indivíduos, com membros de outras classes. (…) Assim, os partidos social-democratas orientados para “o povo” continuam a ser partidos de operários enquanto indivíduos. Deixam de ser a organização dos operários como classe, que disciplina os indivíduos na competição entre si contrapondo-os a outras classes. É o próprio princípio do conflito de classes – o conflito entre coletividades inteiramente coesas – que se torna comprometido quando partidos de operários transformam-se em partidos das massas.
O jogo das eleições mostra o quão baixo é o entendimento do que vem a ser a política e por conseguinte a coisa pública. A escolha entre candidatos que se diferenciam em aspectos muito específicos em seus programas é o objetivo final do cidadão que é convocado de tempos em tempos a cumprir o ritual estabelecido pela democracia representativa burguesa. Dessa forma a mídia torna-se o principal elemento e força de poder a partir dessa perspectiva de democracia. Para que a escolha seja feita de forma democrática o eleitor é bombardeado diariamente por pesquisas de intenção de voto, dados, números e em eventuais oportunidades as disputas internas são apresentadas na forma de enfrentamento entre candidatos sendo a síntese final produzida por um corpo especializado de jornalistas e comentaristas políticos.
Todo o formato dessas disputas proporciona tudo menos o debate político onde as teses possam ser apresentadas, analisadas e discutidas de forma pormenorizada. É impossível adentrar em questões que sejam de fato pertinentes a uma avaliação profunda da realidade da forma como a mídia e a política eleitoral tentam nos convencer. O exercício da democracia direta, da participação efetiva da população nos rumos da política e seu caráter de classe é não só evitado, mas combatido e por fim criminalizado sobretudo pela própria esquerda institucional.
Nas Jornadas de Junho de 2013 e na consequente organização popular que se deu a partir de então os partidos e intelectuais de esquerda esforçaram-se em denunciar práticas de resistência estigmatizando muitos setores como foi o caso de organizações anarquistas e táticas de enfrentamento como os black blocs chegando ao ponto de serem taxados de fascistas como foi o caso de colocações de Marilena Chaui e dirigentes de partidos como PSTU, PSOL, PT e outros que apontou tais revoltas como momentos de indignação por parte dos cidadãos. “A cidade de São Paulo tem uma tradição histórica de revoltas populares contra as péssimas condições do transporte coletivo, isto é, a tradição do quebra-quebra quando, desesperados e enfurecidos, os cidadãos quebram e incendeiam ônibus e trens,” diz Chaui. A participação orgânica em movimentos sociais por parte dos militantes como foi o caso de junho refutou na maioria dos seus posicionamentos o aparelhamento de partidos e sindicatos por já haver uma leitura minimamente coerente sobre tais setores e sua relação com o patronato. A unidade do MPL, por exemplo, não se forjou entre quadros partidários que abriram mão da referência aos partidos para assegurar a unidade. Essa é uma visão de quem estava completamente fora da luta orgânica apenas analisando segundo suas próprias premissas. Ainda assim, Chaui acredita que “a recusa das mediações institucionais indica que estamos diante de uma ação própria da sociedade de massa, portanto, indiferente à determinação de classe social” e não o contrário.
Não faz parte da democracia representativa burguesa envolver a população nas decisões. A população serve no máximo para apoiar ou não um determinado candidato não se vendo na função social de produzir seus próprios métodos de ação, prioridades e formas de atuação em sociedade. O exercício da política torna-se uso exclusivo de políticos profissionais e suas cúpulas enquanto a democracia é exercida pela mídia. É a mídia que apresenta as questões. É ela que depois das eleições vai cobrar que as supostas promessas e compromissos dos governantes sejam cumpridas. É ela que denuncia, investiga e consuma os fatos. É ela que interpreta e publiciza a versão oficial dos fatos. O eleitor/espectador é informado.
Enfrentar o modelo vigente passa necessariamente em contestar a democracia e o exercício limitado de suas funções. Eleger é não só abrir mão do próprio poder e do exercício da política em seu âmbito democrático real, material, participativo, coletivo. Eleger garante não só a manutenção dos Estados e toda política liberal de mercado. Eleger é também uma forma de naturalizar um conjunto de valores e ações coercitivas e opressivas inviabilizando todo e qualquer avanço no que diz respeito a qualquer pretensão do exercício da democracia como poder popular participativo com poder de decisão. Eleger, em última instância, tem como função social manter as ordens de poder hegemônico da forma como aí está, ou seja, nas mãos de uma classe dominante.
Pensar todo esse conjunto de questões longe da luta de classe é uma vitória da democracia representativa que, segundo seu discurso e teoria, abarca o interesse geral através da representatividade, coisa que de fato é impossível. É impossível eu representar o seu interesse e vice-versa. O representante é a figura que apazígua os conflitos sociais e que enxerga na representatividade uma suposta interatividade harmônica entre as classes. Para tal o âmbito da política privada é o terreno que assegura a sociedade enquanto um mercado e a política como moeda de troca. Dialogando com Ranciére em seu novo livro “Ódio a Democracia”, sobre a questão da política privada, o autor afirma que este sistema “consiste em orientar as febris energias ativadas na cena pública através de outras metas, em desviá-las na busca da prosperidade material, das felicidades privadas e dos laços de sociedade.” Como consequência há “diminuição das energias políticas excessivas favorecendo a busca da felicidade individual”.
Todo esse jogo representativo é o principal objetivo dos partidos dito socialistas que têm no parlamento burguês seu meio privilegiado de atuação política. A confiança nos métodos institucionais foi ainda mais reforçado no decorrer do final do século XIX e início do século XX pelo crescente aumento dos votos favorecendo a social democracia e confirmando sua tese de que o aumento do proletariado inevitavelmente corroboraria a necessidade da luta através da democracia. O partido alemão, por exemplo, cresceu de 125 mil votos em 1871 para 312 mil em 1881 e às vésperas da Primeira Guerra Mundial contava com 4.250.000 tornando o SPD o maior partido da Alemanha em 1890 com quase 20% dos votos e em 1912 já passava dos 35%. O aumento crescente dos votos também favoreceu o partido social democrata finlandês, austríaco, belga (Parti Ouvrier), holandês, dinamarquês, sueco e o Partido Trabalhista norueguês.
Nos sistemas totalitários, ditatoriais, a ordem se define pela capacidade do regime em aglutinar uma série de medidas que permita através da hegemonia das suas vontades não só o controle, a submissão e a obediência daqueles que são comandados, mas a manutenção dos privilégios e extração permanente das liberdades coletivas seja através da força coerciva direta ou pela economia de mercado. A divisão social do trabalho ressignificou o sentido da produção, transformando em mercadoria tudo aquilo que não diz mais respeito ao trabalhador. O sentido do trabalho na modernidade diz respeito fundamentalmente àquilo que garante a capacidade de reprodução do capital e formas de dominação do Estado. Mesmo agora com a fase do capitalismo flexível o trabalho perde cada vez mais o seu valor, ou seja, sua capacidade de congregar para a construção de algo comum e consolidar lutas favoráveis à emancipação da classe. Por isso, a ordem nas sociedades capitalistas é baseada na imposição da hierarquia exercida nos meandros dos papéis e funções sociais que consolidam formas de poder, institucionalidades e corporações. As cidades capitalistas refletem todo o conjunto de estratificações presente na sociedade divida em classes.
Historicamente esses territórios foram construídos obedecendo a regras que restringe não só o acesso a determinados lugares, mas ao uso da cidade como um espaço democrático, comum, público, livre. O cidadão caracteriza-se como categoria ao mesmo tempo formal presente nos regimentos da democracia representativa, como também é aquele que cumpre deveres imprescindíveis à manutenção e sobrevivência do Estado. Assim, o Estado lhe concede direitos. Em outras palavras, o cidadão é aquele que serve ao Estado, de uma forma ou de outra. A lei ao passo que garante os privilégios e a funcionalidade da hegemonia em voga destina-se em seu caráter punitivo aos revoltosos funcionando como estrutura que fundamenta os comportamentos e as mentalidades a um regime de obediência. O cidadão que se encontra numa posição de revolta contra essa disposição torna-se automaticamente um elemento a ser neutralizado pelos dispositivos da ordem. E para que se cumpram as leis é necessário o monopólio do uso da violência como instrumento incontestável.
Dessa forma se compreende que o sentido e o conceito de política quando fora dos preceitos éticos e morais do Estado e do capital torna-se consequentemente em qualquer categoria perigosa criada por tais estruturas de poder como forma a distinguir o aceitável e o inaceitável. A criminalização é a justificativa legal, conceitual, concebida a partir das necessidades de classe para que o Estado possa agir livremente contra aquele que se pretende eliminar. Para a garantia da ordem é necessário controle e este se exerce em todas as esferas de relações que compõe a vida. Este controle determina quem manda e quem obedece; quem trabalha e quem paga pelo serviço; quem serve e quem é servido e principalmente define quem pode e quem não pode ser livre. A liberdade como concessão é o elemento central que garante a manutenção da ordem estabelecida. E conclui Ruben Oliven:
É, entretanto, fundamental perguntar a que propósitos serve a dramatização da violência. Procurando elaborar uma economia política da violência no Brasil atual, Aguiar Barros argumenta que não “é suficiente mostrar a conexão entre violência e crime, com a sociedade de classes e a apropriação privada daquilo que é socialmente produzido. É preciso ir mais longe. É preciso mostrar como as classes dominantes se aproveitam (através das mediações político-ideológicas) deste drama social (decorrente da própria natureza do sistema capitalista) em benefício próprio, isto é, em benefício da reprodução desse mesmo sistema gerador da criminalidade, mas garantidor de seus privilégios e hegemonia.
[*] Arthur Moura é Cineasta, graduado em História pela UFF, mestrando em educação pela UERJ.
Arthur, creio que você deixa claro a postura contra a disputa das bases policiais e suas organizações de categoria.
Mas para mim ficou a dúvida: a questão da reforma policial é completamente nulificada? Digo, você é contra reformas do tipo desmilitarização, diminuição orçamentária, maior controle civil e menor autonomia, etc, dentro do contexto da democracia burguesa?
Digo isso porque vejo muitos partidos de extrema-esquerda com grandes dificuldades de conseguir uma clareza a respeito de como lidar com o tema, seja para reivindicar uma linha política ou até para formular um programa. Vejo algumas aberrações como “eleições para delegado”, “serviços secretos de inteligência ‘a serviço do povo'”, as famosas propostas de extrema-esquerda para governar o capitalismo burguês “em transição”. Por outro lado, me parecem mais coerentes os programas de partidos revolucionários que se limitam a reformas de controle externo e diminuição destes aparelhos.
Estes últimos me parecem mais lúcidos na medida em que o estado atual das polícias militares em alguns estados brasileiros fazem delas milicias mais poderosas que muitos exércitos, dado a sua coesão ideológica e seu controle populacional. A extrema-esquerda não deve apoiar projetos que possam romper com tanto poder concentrado? Qual é o horizonte de uma revolução vitoriosa frente a um inimigo tão bem preparado para massacres?