Elege-se não um prefeito ou certa quantidade de vereadores, mas sim qual empresa gerirá a cidade por meio de quais “laranjas”. Por Manolo
Não creio ser desconhecida de ninguém a expressão “porta giratória”. Em política, ela significa o entra-e-sai e o vaivém de certas figuras entre as empresas e os órgãos públicos – seja pelo voto, seja pelo meio principal, as indicações e cargos de confiança. É a extrema flexibilidade e maleabilidade da porta giratória que nos leva a afirmar algumas coisas sem rodeios.
Primeira: as empresas exercem poder, e não o chamado Poder Público. O poder deste último é subsidiário do poder das empresas, servindo-lhes apenas para facilitar seus movimentos e controlar os trabalhadores fora dos locais de trabalho.
Segunda: as empresas exercem poder sobre o Estado de forma absolutamente opaca, num momento em que as demandas por transparência e accountability são a tônica.
Terceira: o Estado inteiro – e com esta abstração quero dizer gestores públicos, políticos, funcionários de médio escalão, técnicos de carreira, literalmente todo mundo que trabalha em repartições públicas, do chefe até a tia do cafezinho – tem sido progressivamente convertido à lógica de funcionamento empresarial, quer gostem seus integrantes, quer não. E para quem não gosta, a porta da rua é serventia da casa – ou, mais polidamente, “você não se enquadra nos novos parâmetros de gestão e produtividade, então passe no RH”.
Quarta: a exposição de tal ou qual destas “zonas opacas” de funcionamento entre empresas e Estado não responde apenas às exigências do público sequioso por imagens espetaculosas de combate à corrupção, mas fundamentalmente à guerra pelo poder travada nos bastidores – e com poder quero dizer simultaneamente várias coisas: a “chave” do cofre orçamentário, a capacidade de indicar quem quer que seja para cargos públicos, o controle sobre as relações entre Estado e empresas etc.
Quinta: os instrumentos e instituições de controle público sobre o Estado (Ministério Público, Tribunais de Contas, ações civis públicas, ações populares etc.) podem até interferir num ou noutro aspecto pontual da relação entre empresas e Estado, mas é exatamente a pontualidade de tais intervenções que dá a impressão de que funcionam, quando não são mais que a molécula de água da ponta do iceberg.
Um exemplo da porta giratória em ação é o funcionamento da empresa de consultoria McKinsey & Company, cuja lista de consultores antigos e presentes (ver aqui, em inglês) reúne um verdadeiro who’s who do capitalismo; junto com a Bain & Co. e a Boston Consulting Group, forma o núcleo duro do mercado de consultoria em gestão (ver aqui, aqui, aqui e aqui, em inglês). Trataremos aqui apenas de alguns exemplos de sua atuação e de seus consultores junto ao Estado brasileiro para fazer, depois, algumas considerações. Não se pretende fazer qualquer denúncia de corrupção, de desvio de recursos públicos, de improbidade administrativa etc., nem expor nada que já não seja de conhecimento do público por meio da imprensa. Trata-se, isto sim, de ter na relação entre a McKinsey e o Estado um caso para analisar um modus operandi plenamente inserido dentro dos quadros da legalidade.
Vejamos como a McKinsey se apresenta em seu próprio site:
A McKinsey & Company é uma firma global de consultoria que presta serviços à alta gestão de grandes empresas sobre questões nas áreas de estratégia, organização, tecnologia e operações.
Auxiliamos as grandes empresas de maior destaque em suas áreas de atuação no mundo – multinacionais, governos e instituições públicas – bem como algumas empresas de médio porte, em especial na área de alta tecnologia e de crescimento acelerado, desenvolvendo e implementando recomendações com base em análises profundas, ampla experiência internacional e recursos especializados proprietários. Atuamos nos maiores setores da economia, incluindo finanças, varejo, bens de consumo, produtos farmacêuticos, manufatura, transportes, energia, telecomunicações, tecnologia da informação e mídia. Por razões de confidencialidade, nunca revelamos o nome de nossos clientes, mas atendemos às principais empresas desses segmentos no mundo todo.
Nosso foco está quase que exclusivamente centrado em questões voltadas à alta gestão, o que geralmente se traduz em dar suporte às empresas em assuntos voltados à estratégia corporativa, à tecnologia e à organização. No entanto, também auxiliamos nossos clientes a reduzir custos e aumentar sua produtividade, lidando com questões em áreas funcionais, como marketing, finanças, produção e distribuição. (ver aqui)
Em resumo: a McKinsey atua nos altos escalões empresariais e governamentais, prestando serviços de consultoria naquilo que pode ser resumido, grosso modo, como destravar a gestão. Claro, trata-se aqui de destravar a gestão para que empresas, instituições públicas etc. possam funcionar de modo plenamente adequado à inserção numa economia capitalista. Não se pode esquecer que a McKinsey tem, ela própria, seu planejamento estratégico e seus documentos de política, e os países ditos “em desenvolvimento” e suas cidades têm neles lugar importante, na medida em que apresentam novas oportunidades de negócio e galgam postos progressivamente mais importantes na economia global (ver aqui, em inglês).
Vejamos alguns casos de atuação da McKinsey no Brasil.
Em Salvador, a McKinsey coordenou a transição governamental entre 2012 e 2013. Diga-se de passagem que a Prefeitura de Salvador vinha de um histórico de endividamento e de caos administrativo desde há décadas, o que fez dela verdadeiro apêndice do Governo da Bahia por sucessivas gestões. A consultoria da McKinsey teve como produto o planejamento estratégico municipal e custou R$ 6 milhões. Sua “reputada capacidade técnica” foi usada como justificativa suficiente para sua contratação sem licitação, por “inviabilidade da competição” (ver aqui) – e a mesma justificativa teria sido usada pela Secretaria de Planejamento do Governo da Bahia para contratação semelhante. A Prefeitura de Salvador manteve o contrato com a McKinsey, que elaborou o planejamento estratégico deste órgão até 2016 (ver aqui e aqui). Poderia o prefeito Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM) creditar suas ideias e propostas de gestão ao mesmo método de seu avô – contratar técnicos jovens e dar-lhes relativa liberdade de iniciativa para implementar projetos inovadores (para o capital) – ou às propostas desta consultoria externa? Tanto faz, pois os dois métodos não se excluem mutuamente; pelo contrário, atuam até melhor em sinergia.
Um outro exemplo, este ainda mais interessante. Não é novidade para ninguém que Marcos Cruz, secretário de finanças de Fernando Haddad (PT) na prefeitura de São Paulo até 2015, é sócio da McKinsey, e que enquanto esteve à frente do cargo compôs o chamado “núcleo duro” da gestão Haddad, gozando da confiança pessoal do prefeito (ver aqui e aqui). Marcos Cruz, segundo a imprensa, alegou motivos de ordem particular para sua saída, mas ela se deu em meio a um conflito com o Tribunal de Contas dos Municípios e o Ministério Público em torno de uma parceria público-privada, da qual Cruz era um dos principais avalistas, para a substituição da iluminação pública da capital paulista por lâmpadas de LED; aquilo que, ao fim e ao cabo, resultaria em economia aos cofres públicos (o consumo energético das lâmpadas de LED é sabidamente o menor entre os modelos de lâmpadas mais comuns no mercado), resultou em entraves pelos órgãos de controle público pela forma como foi feito. Estaria a raiz disto na informalidade característica dos processos de tomada de decisão no meio empresarial?
Assim como em Salvador, a McKinsey prestou consultoria à Prefeitura do Rio de Janeiro na construção do seu planejamento estratégico 2013-2016, tendo um e outro trabalhado juntos “ao longo de sete meses de trabalho. Entre setembro de 2011 e março de 2012 as equipes da Prefeitura e da McKinsey cumpriram as atividades de uma metodologia comprovada de visão e planejamento, buscando elaborar propostas verdadeiramente ambiciosas para nossa cidade” (ver aqui). Embora a parceria não esteja expressa no documento final soteropolitano (ver aqui), nota-se que até mesmo os logotipos das atuais gestões nas prefeituras de Salvador e do Rio de Janeiro são muito parecidos. Até César Maia sabe: sobre certos assuntos (privatizações, principalmente), “melhor perguntar diretamente à McKinsey” que aos secretários (ver aqui).
No Ceará, o nível é outro. A Secretaria de Desenvolvimento Econômico “terceirizou” o planejamento do desenvolvimento do Estado a longo prazo à empresa Macroplan, e a definição dos equipamentos e obras cearenses que farão parte da lista de concessões coube à McKinsey (ver aqui)
Vê-se assim o desenho de um remodelamento na gestão pública, louvado pela imprensa: “Termos como planejamento estratégico, meritocracia, metas, monitoramento e avaliação de desempenho passaram a fazer parte do dia a dia de várias administrações. O pagamento de bônus por produtividade se tornou uma realidade. Em vez de políticas erráticas, para apagar um incêndio aqui e outro ali, alguns governantes agora levam em conta objetivos de longo prazo e seguem planos detalhados para alcançá-los. Também ganhou popularidade o repasse de vários serviços públicos ao setor privado, como a gestão de estradas, cadeias, estádios de futebol e até hospitais, por meio das parcerias público-privadas, as PPPs”. (ver aqui).
Não vou entrar a fundo na polêmica sobre as possíveis diferenças entre um modelo público e um modelo privado de gestão. Isto são questiúnculas. Do ponto de vista dos trabalhadores, estejam eles no setor público ou no setor privado, a gestão, antiga ou moderna, significa nada mais, nada menos que o aprofundamento da exploração a que estão sujeitos, de um lado, e de outro a inserção do consumidor (que não raro é outro trabalhador) e da qualidade na prestação a ele dos serviços ofertados como justificativa para a intensificação da exploração. Num modelo fordista/taylorista clássico, a exploração era intensificada porque o objetivo principal era o aumento do volume da produção; nestes novos modelos implementados pelas consultorias em gestão, é preciso enxugar a equipe e produzir com qualidade atendendo a demandas crescentes; na prática, isto significa botar menos gente para trabalhar mais, e exigir que se sintam felizes.
Depois desta digressão, volto ao tema da opacidade. O que importa, neste caso, não é identificar a difusão, mas sim as tendências – e é esta nova forma de planejamento a tendência. São todas as prefeituras, governos estaduais e o governo federal no Brasil que adotam como um todo estes novos sistemas de gestão? Não. Seus próprios ideólogos admitem que se trata de “meia dúzia de governadores e meia centena de prefeitos, além de seus auxiliares diretos e um ou outro político de Brasília” (ver aqui).
Mas é a estes novos modelos de porta giratória que se deve ter atenção. As novas formas de gestão trazidas pela McKinsey – e outros além dela, como o Movimento Brasil Competente – não implicam, como querem alguns, em trazer a lógica da gestão privada para a gestão pública. Se fôssemos analisar a questão a sério, com dados e fatos históricos, veríamos que, sob o capitalismo, Estado e empresas são campos cujas práticas vivem a contaminar-se mutuamente, um adotando as do outro sempre que as necessidades das classes dominantes o exigem.
O que estes novos métodos de gestão fazem é tornar ainda mais opacas as zonas de contato entre Estado e empresas, e, paradoxalmente, reforçar a ilusão de que os dois campos são separados, ou que assim deveriam ser.
A primeira questão é mais fácil de se entender a partir dos exemplos dos planos diretores e do planejamento urbano estratégico. Muitos movimentos sociais se lançam nas reuniões e assembleias deste modelo “participativo” de gestão urbana com pouco conhecimento sobre as margens de atuação que lhes foram reservadas pelas propostas oficiais, e quando se deparam com o “pacote pronto” lutam – com razão – para que suas propostas sejam incorporadas ao planejamento oficial. É sempre preciso examinar caso a caso, mas é legítimo perguntar: até que ponto estas reivindicações impostas pelos movimentos foram, realmente, impostas? Sem conhecer de antemão os acordos, pactos e estratégias desenhadas em comum entre Estado e empresas, há o risco muito grande de os movimentos tornarem-se coadjuvantes do desenvolvimento capitalista das cidades.
A segunda questão decorre da primeira, e é mais complexa. Retomando o exemplo dos planos diretores e do planejamento urbano estratégico, não é raro que, ao se ver a porta giratória ainda a girar, o problema político identificado seja a ingerência das empresas sobre o planejamento estatal. A solução parece ser, para alguns, o fim das relações “promíscuas” entre empresas e Estado neste campo – é a isto que alguns chamam, com certa ingenuidade, de colonização do Estado pelas empresas. Mas ora, sejamos francos: quando a relação entre Estado e empresas se torna por demais escandalosa, basta trazer para dentro da burocracia estatal, via cargos de confiança, pessoas de confiança dos dois campos para intermediar as relações fora das vistas do público. Isto para mostrar de forma simples, mesmo ingênua, como o problema é mais profundo. Porque, além desta, há inúmeras soluções: encontros informais, participação em eventos comuns (onde se fecha mais acordos nos intervalos que durante a programação oficial), correspondência privada (com sigilo constitucionalmente garantido)… E enquanto os movimentos sociais, ao participar de tais esferas decisórias, devem restringir-se às “regras do jogo”, do outro lado das trincheiras não há regras a seguir.
Chamo a atenção para estes aspectos na tentativa – a enésima, e certamente haverá outras – de explicitar o pouco que está em jogo nas eleições municipais. É pouco, muito pouco. O funcionamento da porta giratória demonstra que, ao fim e ao cabo, elege-se não um prefeito ou certa quantidade de vereadores, mas sim qual empresa gerirá a cidade por meio de quais “laranjas”. É disto que se trata. Ao menos enquanto os movimentos sociais não conseguirem consolidar instituições capazes de fazer frente não apenas a suas pautas imediatas, mas ao próprio modus operandi a que se veem permanentemente constrangidos ao lutar para conquistá-las.
Manolo, que tipo de instituições você tem em mente quando fala da consolidação por parte dos movimentos sociais? Tive essa curiosidade tanto do ponto de vista “teórico” quanto dos exemplos históricos.
Manolo, o texto também me deixou com uma pergunta. Seguindo essa análise da “porta giratória”, da relação porosa entre empresas e Estado, você acha que hoje ainda é possível estabelecer uma divisão bem definida entre gestores e proprietários dos meios de produção, como classes diferentes, ou hoje ambos se encontram progressivamente amalgamados em uma classe de capitalistas? Ou a “porta giratória” seria um fenômeno próprio da classe gestora – que transita entre o âmbito privado e o estatal cumprindo as mesmas práticas?
Respondendo a Lucas. No campo teórico, trata-se de criar alternativas de poder desde baixo, pautadas por relações solidárias e igualitárias entre os lutadores. Claro que, sendo uma definição teórica, ela indica uma situação-limite, não algo imediatamente realizável, nem tampouco algo isento de contradições e conflitos durante sua implementação. No campo histórico, surgiram vários ensaios: comissões de fábrica, sovietes, Comuna de Paris, a autogestão nos “cordones industriales” chilenos e nas empresas autogeridas na Revolução dos Cravos…. qualquer coisa que sirva como instrumento de luta para os trabalhadores e esteja, ao máximo, sob seu controle e gestão enquanto instrumento.
Respondendo a Caio. A relação segue muito bem definida, porque estas classes se definem pela posição no processo produtivo (principalmente), e não pelos indivíduos que as compõem. O mesmo indivíduo pode percorrer classes diferentes ao longo de sua vida — é a isto que se chama de mobilidade social. A porta giratória é apenas uma das muitas formas de relacionamento entre classes capitalistas diferentes (burgueses e gestores) ou entre frações da mesma classe (CEOs e ministros ou funcionários públicos federais nível DAS III, por exemplo, que são, todos eles, gestores).
A folha publicou recentemente que a USP, em crise, vai contratar a Mckinsey para elaborar seu novo modelo de gestão e governança (http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/09/1815437-em-crise-usp-contrata-consultoria-privada-para-novo-modelo-de-gestao.shtml). Muito triste tudo isso.
Mckinsey vai dominar o mundo minha gente