Tudo era bonito e diferente, e ainda assim, familiar. Nos muros havia muitos grafites de protesto, frases de luta e poesias. Por Turista de Esquerda
Em 2013 fui pra Santiago, com uma grana dada pela facul para apresentar trabalho em Congresso internacional. Foi, vocês podem imaginar, uma maravilha. Dessas que abalam nosso ateísmo. Uma burocraciazinha, um artigo meia-boca enviado e aceito, e zaz, tavala eu no Chile.
Eu, filho de proletários, andando ali na avenida principal da cidade e pigarreando ao tentar pronunciar Avenida O’Higgins. Agasalhado e com a pinta de burguesinho que todo usuário de cachecol tem, eu procurava o tal hotel onde havia feito reserva, tudo sem perder o olhar abestalhado e surpreso de um estrangeiro. Tudo era bonito e diferente, e ainda assim, familiar. Nos muros havia muitos grafites de protesto, contra o polícia, o genocídio estatal, frases de luta e poesias dessas que convertem um lugar ou objeto inerte em algo vivo: o grito da poesia callejera (de rua) das cidades. Às vezes eu parava para tentar entender os escritos, os cartazes, e ficava matutando os conflitos políticos que levavam a que alguns deles fossem arrancados, deixando ali frases e palavras pela metade, que eu tentava decifrar. Com uma mala enorme cheia de coisas que eu não precisava ter levado, eu andava feliz pela avenidona. Tanto, que nem me preocupei com o fato de que os intolerantes chilenos se surpreendiam negativamente quando eu dizia que procurava o hotel mas não tinha levado o endereço. Ora, quem precisa de endereço quando se sabe que o dito cujo fica há umas 9 quadras pra direita e pra cima do La Moneda?
Por isso eu caminhava suave, com a segurança de um coronel que observa sua fazenda. Tirei foto com os cachorros de rua, enormes e bonitões. Parei para comer, pedi um refri que não tem por aqui e já cresci o olho nas cervezas. Alguns perdidos e uma hora depois eu já estava na recepção reclamando que “no hay água caliente en el baño”…. O dilema existencial estava posto: subaqueira danada de um dia longo versus frio de lascar e sem água quente no banheiro. Ser ou não ser um porquinho?
Iniciados os trabalhos no dia seguinte, assumi a carapuça do turista curioso. O resultado já adianto: a viagem foi massa. Altas aventuras. Experimentei tudo quanto é bagulho de comer que fosse barato e que eu visse mais de 3 pessoas comendo. No começo era para “conhecer melhor a cultura da região”, depois, mais para o fim da viagem, era porque “senão a grana não vai dar”. Mas foi sucesso. Vi a casa do Neruda e fui pego tentando roubar um livro. Desconversei como se carioca fosse. Ufa. Comprei flautinha artesanal nas calçadas da cidade e comi. Mano, como eu comi. Pastel de chocklo, que não é pastel e sim um escondidinho de milho. Tomei “mote con huesillos”, uma parada estranha, mais bonita do que gostosa. Comi até cachorro quente com abacate. E assumo: gostei do baguio! Êta vida boa. Sem ter que trabalhar ou me preocupar com mais nada, minha tarefa era escolher o destino dentre mil lugares para conhecer, a maioria deles “carregados da história de luta daquele país” (curioso que nunca pensei assim ao andar pela Presidente Vargas, no Rio, ou pela Av. Paulista. Por que será?). No camelódromo, um cartaz enorme reproduzindo a capa do jornal que anunciou a chegada de Allende ao poder: “Asumio el gobierno del pueblo. Hoy se abren las puertas de la historia”. ôlaiálaiá… Na banca de jornais, um jornal crítico-satírico de esquerda, The Clinic, algo como um “Charlie Hebdo chileno”, com a seguinte estampa: “El triunfo del câncer marxista”. Peço um exemplar, fracassando mais uma vez na minha missão de me passar por chileno. O jornaleiro me pergunta se sou comunista e me oferece outros 2 exemplares mais antigos de “regalo para el brasileño comunista”. Tãotábão. Sigo com a odisseia, a mochila três jornais mais pesada.
Fui em quase todos os lugares históricos que sabia existir, e a pé. Camelei ao ponto de desenvolver um chulé até então inédito e em pouco mais de uma semana já estava com as panturrilhas do Roberto Carlos na Copa de 1998. Um ponto alto foi o Museu da memória dos mortos e desaparecidos da ditadura de lá. De bambear as pernas. Num belo domingo uma manifestação de rua, com uma pauta mista que ia desde demandas estudantis concretas até gritos de guerra mais abstratos, dificilmente convertíveis em uma pauta que se pudesse alcançar por aqueles meio de luta: “contra o machismo e a exploração” etc. Penso como esses gritos e slogans de luta mostram que a utopia está viva. Aí me misturo com os hermanos e hermanas (a maioria!) e (com o cu na mão) dou a força que podia dar nos confrontos com a polícia. Povo aguerrido aquele, viu. À margem de um rio, que me fizeram crer que era feito de água de degelo das cordilheiras, um grupo de sem-teto acampava. Desconfiados e carrancudos, mas só até quebrar o gelo. Troquei uma ideia com eles, mas foi rápida e não percebi nada que não conheçamos da luta por moradia no Brasil: especulação imobiliária, despejo, Estado pró-capital, solidariedade entre compas passando um perrengue. Todos muito politizados, falando com desenvoltura e alegria ao som que variava de canções de protesto até umas músicas desagradáveis, ao estilo cumbia ou algo assim. Em todo canto simpatia, fraternidade latinoamericana: pelas ruas eu cantava, me sentindo envolto pela energia de Calle 13 e Inti Illimani quando cantaram com o público “Latinoamérica”: Tu no puedes comprar el viento, Tu no puedes comprar el sol, Tu no puedes comprar la lluvia, Tu no puedes comprar el calor…
Lá pelas tantas descobri que havia duas moedas chilenas diferentes, de 100 pesos. Uma, mais nova, trazia estampada um índio mapuche, símbolo da resistência. Já a mais velha era do período de Pinochet e trazia escrito “Por la razón o la fuerza”. Achei um barato e mostrei para todo mundo, com ares pomposos de “veja, um sinal dos tempos”. Me sentia um tipo de sociólogo-arqueólogo, e passei a examinar minuciosamente tudo quanto é coisa que eu pensava que por algum motivo podia esconder alguma marca do passado a desvendar um tiquinho a mais aquele lugar. Mas não encontrei mais nada e me contentei com alguns bottons e estampas da Violeta Parra, do Victor Jara e do Guayasamín. Os três são diferentes mas têm algo em comum. Uma força, um peso na arte, não sei. Algo que futrica no mesmo lugar da gente. Vejam, da Violeta isso, do Victor isso ou isso, e do pintor equatoriano: isso, isso e a homenagem-protesto à morte de Allende, Neruda e Jara, Lagrimas de sangre (aqui). Volto para o hotel, uma das piores partes do dia, pois o dono é do tipo que te enfia a faca onde pode enquanto sorri e paga de gentileza. Ainda na rua, para lá e para cá a cabeça se mexe acusando que ali dentro a vibe Calle 13 tomou conta: Vamos caminando, aquí se respira lucha… Vamos caminando, vamos dibujando el camino!
Bom, aí né, como toda alegria de pobre, o tempo passou e quando me dei conta estava lá eu, sem um puto no bolso, olhando com cara de tacho para o terminal de autoatendimento do aeroporto, que dizia “no hay passaje en tu nombre”. Provavelmente a frase era outra, mais formal e neutra, dessas que caçoam da nossa cara com algum grau de neutralidade, nem por isso menos irritante e beirando ao sadismo burocrata. Ao contrário do que se imaginaria, nessa hora eu ainda estava sussa. Como eu tinha nas costas e mãos uma parafernália gringa que chegava a uns 20 quilos a mais que os benditos 23 que eram permitidos sem pagar “excesso de bagagem” nem atinei para a gravidade da situação. Nessa hora minha cabeça era só tico e teco: “acha logo aí a minha passagem de volta pro Breizil, máquina lazarenta” e… “Cacilds, como vou fazer pra enfiar tudo isso no avião e despachar a mala sem gastar o dinheiro que não tenho?” Eu era apenas um rapaz latino-americano sem parentes importantes, vindo do interior e com uma missão: sentar no avião sem ter deixado na terra de Allende a poesia completa de Neruda ou a edição de luxo do Don Quijote, ilustrado por Doré. Aí, com Sancho Pança na cabeça, “confesso que vivi” um amor de carnaval com a máquina da LAN Airlines. Só que não. E entediado com o ticket que não fora cuspido em minhas mãos fiz o óbvio: procurei ayuda. Hola. Todo bien? Bueno, lo que passa és que… Che, no he encontrado mi passaje. Sip. Sip, és de LAN Airlines. Si, seguro. Seguro, la compré por LAN Airlines. Sip. Claro, claro, tranquílo. Aqui lo tenés. E lá estava eu, escorado no balcão da empresa, dor nas costas do caralho, pé latejando e com uma cara de tédio que ocultava uma pontada de preocupação. De repente os ojos negros do atendente acusam um brilhinho desses que quando a gente vê a gente sabe que a pessoa acabou de perceber ou descobrir algo. Meio milésimo de segundo depois eu já estava prendendo a respiração, pois a expressão del hombre não era das melhores. Eram 11 horas da manhã, em um dia que começara cedo com malas e sacolas sendo arrastadas pelas calles até uma farmácia, onde às 9:53h foram pesadas, para minha infelicidade e preocupação. E a vida é tão surpreendente que, quem diria, uma horinha depois eu estaria ali, no balcão, sem nem lembrar que tinha malas ou livros a serem resgatados das garras profanas e sórdidas das empresas aéreas com suas taxas em dólar. O tiozinho se virou para mim e disse, num amontoado de palavras que produziram um som que jamais esquecerei: “Tu viaje era a las nueve!”.
Aí né, como todo adulto diante da compreensão de que está lascado, fiz o que se esperava: cara de horror, boca aberta e olhos arregalados que se enchiam de água tal como leite que começa a ferver. Fiquei imobilizado. “Tu viaje era a las nueve!”. “Tu viaje era a las nueve!”. “Tu viaje era a las nueve!”. O som ecoava para lá e para cá na minha cachola. O carinha da empresa aérea devia ter vocação para biólogo ou cientista, pois quando viu as lagoas se formarem no meu rosto, fechou a boca e aproximou o queixo do próprio pescoço, com um movimento de semblante que eu juraria que era de genuína preocupação. Me pediu outra vez um “documento de identificación”. Ainda mudo, só empurrei o RG com a ponta do dedo indicador. Ele: “Momento”. “Momento”. E fez um sinal com as duas mãos abertas como quem diz “não caia duro no saguão, aguenta aí!”. E se enfiou empresa adentro com os documentos do carinha que tá fodido. Passaram-se uns 10 minutos ou 3 semanas, não sei dizer ao certo. Quando voltou trazia uns papéis e meu RG. Disse que havia me cadastrado provisoriamente como funcionário da LAN e que agora eu poderia pegar o próximo voo, que ainda tinha uma vaga. Meu cu caiu da bunda. Olhei incrédulo, achando que meu espanhol (ou minha lucidez) havia faiado nalgum ponto. Ele: “Não necessita pagar nada”, num português arrastado e jocoso. Entregou-me então a passagem, grifada com marca-texto amarelo. Eu, que naquela altura estava com o espanhol tinindo, só consegui um triplo gracias carpado e um olhar de gatinho do shrek. Em resposta ele deu um sorrisinho e voltou ao trabalho. Dei uma sequência de suspiros e parti para a parte da odisseia onde manejo os quilos de bagagem de modo a fazer inveja ao Mister M. Depois, já no avião, tirei de letra o bate-papo com a senhora carentona que sentou ao meu lado. Hola, Rio de Janeiro, te extrañe un montón!
E fim. Até hoje associo essa coisa inexplicável que vivi com uma suposta tradição comunista e de luta do país, solidariedade de classe, algo assim. O cara viu minha expressão de desespero e se sentiu tocado. Eu mal tinha dinheiro para pagar o busão de volta para a cidade, quanto mais comprar outra passagem ou pagar mais alguns dias de hotel. Sempre que lembro da história encho os olhos de lágrimas.
Existe amor nesse mundo cão. Não só no ombro a ombro com os compas, mas até nos locais de trabalho. Se procurar bem a gente acaba encontrando.
p.s: O textinho vai dedicado ao improvável leitor, o funcionário da LAN: agradeço sua sensibilidade, camarada que nunca saberei o nome, mas que já curto pakas.
Que bonito, posto que simples e sincero. Dessas coisas que às vezes aparecem e nos fazem se deixar levar por aí, sem pretensão nem objetividade! Bonito demais!
ECCE HOMO
Douglas: escriba competente e desempenhante; malungo tiro fixo do comentário intenso & denso, comovido e comovente.