Há quem defenda que os direitos autorais são um estímulo à criação. Isso porque como uma idéia não iria gerar retorno financeiro, então não seria interessante produzir. É exatamente o contrário do argumento usado pelas instituições que lutam pelo fim dos direitos autorais da forma como eles se impõem hoje. Por Eder Dias Capobianco
Os movimentos contra o Copyright não são novos, mas se intensificam e ganham força a cada dia. As sugestões de regras mais abrangentes para cópia ou uso de produtos licenciados não se restringem às licenças Creative Commons. Ela encontra respaldo na Open Publication License (OPL), na GNU General Public License (GPL) e na GNU Free Documentation License (GFDL), que disseminam a questão da liberdade de uso e reprodução de conteúdos, códigos ou qualquer outra produção em diversos níveis.
Richard Stallman, idealizador da GPL, popularizou também o termo Copyleft (trocadilho com o Copyright). Em todos os casos existe uma flexibilidade do direito autoral, isso é, do grau de liberação de uso de uma determinada idéia. A questão não se refere apenas a softwares ou conteúdos criados para Internet. Ela também versa sobre regras já enraizadas na música, cinema, literatura, e outros produtos em vários setores. Sob a visão de Pierre Lévy, o copyright atenta sobre princípios básicos que tornam a Internet possível.
“Do mais básico ao mais elaborado, três princípios orientaram o crescimento inicial do ciberespaço: a interconexão, a criação de comunidades virtuais e a inteligência coletiva” (Cibercultura, Pierre Lévy, p.127).
Surgimento do Copyright
As controvérsias a respeito das restrições impostas pela lei de direitos autorais vêm sendo discutidas desde muito antes de sua criação. Na Inglaterra, em 1710, nascia o Estatuto de Anne para acalmar os ânimos de um embrionário mercado gráfico. A intenção era proteger os “livreiros” (editores), que estavam órfãos de uma lei que pudesse garantir o monopólio de impressão de uma determinada obra, por um período de tempo determinado, que passou a ser de 14 anos para tudo que fosse produzido após a data de sua divulgação, e 21 anos para qualquer coisa anterior.
“Nos últimos 300 anos, acabamos aplicando o conceito de forma cada vez mais abrangente. Mas, em 1710, não se tratava de um conceito tão abrangente assim. O copyright nasceu como um conjunto muito específico de restrições, proibindo que terceiros reeditassem um livro. Em 1710, o ‘direito de cópia’ significava poder usar uma máquina específica para reproduzir uma obra específica. Ele não ia além dessa restrição muito específica. Não regulava, de maneira mais genérica, os modos de uso de uma obra. Hoje, o direito inclui uma extensa coleção de restrição às liberdades alheias. O autor tem o direito exclusivo de copiar, o direito exclusivo de distribuir, o direito exclusivo de executar, e assim por diante” (Cultura Livre, Lawrence Lessig, p.104).
Como cita Lawrence, as regras eram bem restritas. Copiar livros não era permitido, mas ela não falava nada sobre as traduções. Também não proibia que as obras se tornassem peças de teatro. Mesmo assim elas já sofriam as primeiras críticas. Isso por que os “livreiros” não eram considerados um exemplo de moral e ética, no momento em que o Iluminismo pregava mudanças e as idéias tinham que ser disseminadas. Levando-se em consideração a época, e que a Bíblia de Gutemberg tinha cerca de 300 anos, copiar conteúdos não era tão fácil como é hoje e nem tão abundante. Enquanto discutimos direito de uso de imagens, sons e fotografias, se falava apenas de livros na primeira década do século XVIII.
“Devemos imaginar que a regra do copyright tenha sido criada num momento em que a sociedade não detinha os meios de produção e distribuição que existem hoje. O advento dos computadores e das grandes redes de telecomunicação fez o mundo ficar reduzido a alguns segundos de distância. Qualquer pessoa pode criar um texto e disponibilizá-lo para a grande maioria dos países em questão de minutos, utilizando a Internet como um meio de distribuição e venda do seu texto, e isso era inimaginável na década de 70, imagine em séculos anteriores” (Software Livre e Inclusão Digital, Djalma Valois, p.292).
O tempo passou, e as regras se tornaram mais abrangentes, como já foi dito. Houve inclusive uma tentativa de patentear o computador, que foi providencialmente negada pela demora do pedido e porque não serviria aos interesses dos Estados Unidos, que já haviam usado o invento para construir a bomba atômica. Mas a mesma sorte não foi dada com relação aos softwares.
“Até 1990, o software de computador foi considerado impossível de ser patenteado, tomando como base o fato de que os computadores meramente executavam cálculos matemáticos de fórmulas que eram elas próprias o produto de processos mentais, e não dispositivos patenteáveis. […] A lei de patente nesse ponto evoluiu rapidamente no início dos anos 90, incluindo um caso no qual foi definido que animações gráficas em computadores era patenteável. Hoje, o software é geralmente olhado como patenteável sob a lei americana” (Comunicação, Mídia e Tecnologia, Joseph Straubhaar e Robert LaRose, p.214).
Licenças Alternativas
Há quem defenda que os direitos autorais são um estímulo à criação. Isso porque como uma idéia não iria gerar retorno financeiro, então não seria interessante produzir. É exatamente o contrário do argumento usado pelas instituições que lutam pelo fim dos direitos autorais da forma como eles se impõem hoje. Desde que boa, a idéia iria dar prestígio ao seu criador, que obteria retorno financeiro prestando serviços. A partir daí começou a se pensar em alternativas, todas baseadas no conceito de copyleft.
Para dar certo, e criar um mundo sem copyright, estas alternativas dependem diretamente da vontade dos autores e criadores. O funcionamento das licenças do tipo copyleft é simples. Tudo que é preciso é que os inventores ou escritores concedam o direito de sua obra a terceiros, mas que nesta concessão conste que isso seja mantido por toda cadeia de produção em que ela esteja envolvida, como para quem deseje usar parte, ou totalidade, de um software, por exemplo, para criar outro, que também teria que estar sob esta licença. Em poucas palavras, tudo feito a partir de uma licença copyleft tem que ter ela mantida.
“A extensão do ciberespaço transforma as restrições que haviam ditado à filosofia política, às ciências da administração, às tradições de organizações em geral o leque habitual de suas soluções. Hoje, um bom número de restrições desapareceu devido à disponibilidade de novas ferramentas de comunicação e de coordenação, e podemos pensar em modos de organização dos grupos humanos, estilos de relações entre os indivíduos e os coletivos radicalmente novos, sem modelos na história e nas sociedades animais. Repetimos, mais que uma solução, a inteligência coletiva, cuja ambivalência indiquei por completo no primeiro capítulo sobre o “impacto”, é um campo aberto de problemas e pesquisas práticas”. (Cibercultura, Pierre Lévy, p.132).
Baseado nas idéias de copyleft, Richard Stallman escreveu a GNU General Public License (Licença Pública Geral), no final da década de 80. A licença foi adotada pelos criadores do Linux, que com isso deram um grande impulso à idéia. Ela permite, por exemplo, a cópia e distribuição de um documento em qualquer meio, de forma comercial ou não. A única condição é que em todas as cópias esteja a licença, as notas de copyright, e uma nota garantindo que a licença copyleft se aplica à obra. Se as cópias ultrapassarem cem unidades ainda é pedido a inclusão de todos os Textos de Capa. Sob determinadas condições ainda é permitida a modificação, combinação de documentos sob a mesma licença, tradução, entre outras proibições de copyright.
“Outras regras, além dessa, compõem os termos do copyleft, tais como a restrição de mudanças num determinado ponto do texto, por exemplo. Imaginem que um autor escreva um livro e, em determinada seção, ele escreva sobre os princípios que o levaram a fazer determinada coisa. Nesse ponto, o autor pode inibir mudanças no livro, na agora chamada “seção invariante”, pois isso descaracterizaria não apenas a história, mas a verdade sobre um determinado fato ocorrido nele” (Software Livre e Inclusão Digital, Djalma Valois, p.294).
A organização Wikipédia é outra que adotou esta licença (GNU). Os programadores de software são um dos principais interessados neste tipo de licença, já que seu trabalho está, na maioria dos casos, ligado ao uso de códigos e programas, que se cobrarem direitos autorias podem restringir suas criações pela inviabilidade financeira.
“Há preocupação porque a patenteabilidade do software do computador foi agora muito longe, a ponto de poder retardar o desenvolvimento de novas aplicações. Por exemplo, em 1993 a Enciclopédia de Comptoon obteve uma patente que cobria virtualmente todas as formas de aplicações de multimídia interativa de computador, o que poderia forçar os desenvolvedores – e os consumidores – de todos estes softwares a pagar dividendos aos detentores da patente” (Comunicação, Mídia e Tecnologia, Joseph Straubhaar e Robert LaRose, p.214).
Assim como as licenças copyright vieram “progredindo” com o tempo, o copyleft não ficou para trás e vem se adaptando às exigências do mercado. A grande jogada dos entusiastas pelo fim dos direitos autorais é o Creative Commons, criado por Lawrence Lessig, no começo deste século. Ele se destaca com relação às outras licenças já citadas por vários aspectos. Um deles é por estipular níveis de uso público para as obras licenciadas de acordo com seus preceitos. Ao contrário de outras licenças, se for vontade do autor, sua obra não poderá ser utilizada para fins comerciais, ou a modificação de seu conteúdo. Mas ele pode optar por uma licença mais plena. Fica tudo ao “gosto do freguês”.
“As licenças Creative Commons, no entanto, diferenciam-se de tais iniciativas por não incluírem necessariamente dentre os direitos disponibilizados ao público (conforme o tipo de licença que se esteja a tratar) a possibilidade de manipulação do conteúdo por meio de código aberto. Tais licenças, nestas hipóteses, acabam permitindo unicamente a livre manipulação, distribuição, compartilhamento e replicação destes conteúdos” (Wikipédia, acessado em 07/01/2008).
Como foram feitas baseadas nas leis do Estados Unidos, as licenças Creative Commons teriam complicações e restrições se aplicadas em outros países. Ainda que elas não tenham força de lei, poderiam gerar uma série de interpretações e problemas legais. Por isso foram criadas comissões nacionais para adaptar o texto original às leis locais. No Brasil esta tarefa é do Centro de Tecnologia e Sociedade da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV/CTS), no Rio de Janeiro.
Cultura Livre, crime e colaboração
“A pergunta difícil não é se uma cultura é livre. Todas as culturas são livres em algum grau. A pergunta difícil é “qual o nível de liberdade de um cultura? […] Culturas livres são aquelas que deixam uma grande abertura para que outros criem a partir do que há disponível. Culturas sem liberdade, ou de permissão, deixam muito menos. A nossa cultura foi livre. Ela está se tornando cada vez menos livre” (Cultura Livre, Lawrence Lessig, p.52).
Não foi difícil para o professor Lessig buscar casos onde boas idéias foram instrumentos originários de outras boas idéias. Para mostrar como a liberdade de uso pode incitar a criatividade, ele usa, entre outros exemplos citados em sua obra, o princípio da criação de um “império”.
“Em 1928, nascia o personagem de desenho animado. Um Mickey Mouse primitivo fez sua estréia em maio daquele ano, em um fracassado filme mudo chamado Plane Crazy. Em novembro, no Colony Theater de Nova York, o primeiro desenho animado com som s sincronizado e distribuído amplamente, Steamboat Willie, trouxe vida ao personagem que se tornaria Mickey Mouse.
“O som sincronizado tinha sido introduzido no cinema um ano antes, no filme O Cantor de Jazz. Seu sucesso levou Walt Disney a copiar a técnica e colocar som nos desenhos animados. Ninguém sabia se ia funcionar ou não, nem se conquistaria uma audiência em caso positivo. Mas, quando Disney fez um teste em meados de 1928, os resultados foram claros” (Cultura Livre, Lawrence Lessig, p.44).
O uso ilegal de imagens, códigos, músicas, filmes, e por aí vai, constitui crime, e crimes são punidos de acordo com a lei. Uma multa, pesada ou branda, é aplicada ao infrator. Muitos processos, como os de plágio, por exemplo, levam longos anos para ter uma sentença final e, além de poderem desgastar a imagem dos envolvidos, apresentam um alto custo para todos. Custos, aliás, que dificultam a produção de muitas outras obras que podem se derivar da original.
“Poderíamos fazer uma mudança [na lei] sem ter de necessariamente aparentar uso “livre” e “cerveja liberada”. Em vez disso, o sistema poderia simplesmente facilitar aos recriadores o processo de recompensa aos artistas, sem que seja necessário um exército de advogados – uma regra, por exemplo, que dissesse: “o royalty devido ao proprietário do copyright, para o uso derivativo de seu trabalho, será de 1% dos encargos da rede, a serem pagos de forma terceirizada ao titular do copyright”. Segundo esta regra, o titular pode se beneficiar de alguns direitos de sua imagem, mas não terá total direito de propriedade (não pode colocar seu próprio preço) a menos que registre seu trabalho” (Cultura Livre, Lawrence Lessig, p.120).
Como nada disso foi posto em prática ainda, temos aí uma nova categoria de criminosos. Ela é composta em sua grande maioria por jovens com um bom índice de intelectualidade, que cresceram com computadores em casa e vivenciando a expansão da Internet. São adeptos da cultura do “copia e cola”. Adeptos ao sistema colaborativo. Acostumados ao compartilhamento, com um aflorado instinto coletivo. Todos considerados criminosos perante a lei quando fazem o download de uma música sem pagar direitos autorais ou publicam uma notícia interessante que viram no jornal em seu blog. Todos marginalizados. Pierre Lévy explica a importância destas pessoas para a Internet.
“O crescimento da comunicação baseada na informática foi iniciado por um movimento de jovens metropolitanos cultos que veio à tona no final dos anos 80. Os atores desse movimento exploraram e construíram um espaço de encontro, de compartilhamento e de invenção coletiva. Se a Internet constitui um oceano do novo planeta informacional, é preciso não esquecer dos muitos rios que a alimentam: redes independentes de empresas, de associações, de universidades, sem esquecer de mídias clássicas (bibliotecas, museus, jornais, televisão etc). É exatamente o conjunto dessa “rede hidrográfica”, até o menor BBS, que constitui o ciberespaço, e não somente a Internet. (…) Aqueles que fizeram crescer o ciberespaço são em sua maioria anônimos, amadores dedicados a melhorar constantemente as ferramentas de software de comunicação, e não os grandes nomes, chefes de governo, dirigentes de grandes companhias cuja mídia nos satura” (Cibercultura, Pierre Lévy, p.125).
Conclusão
As novas tecnologias, novos conceitos e novas alternativas não se aplicam mais às leis vigentes no que diz respeito ao copyright, entre outros casos como a Internet ainda ser considerada pela lei um serviço de telefonia, e não de comunicação. Existem problemas em adaptar a nova cultura a uma legislação que não contava com a expansão da comunicação e das possibilidades de criação. Estamos falando sobre mudanças profundas, que incluem convicções comerciais que regeram a escalada de mega corporações, e pessoas que ganharam dinheiro por toda uma vida apostando no copyright.
Isso não significa que elas não tenham que ser feitas. As mudanças são inevitáveis. Ou será que a Internet seria tão popular se todos os usuários que fizessem downloads ilegais fossem processados? Poderíamos incluir nesta lista pessoas que reproduzem montagens fotográficas, a partir de imagens protegidas por copyright, em seu perfil do Orkut. Vale quem posta uma notícia tirada do site de um jornal em seu blog. Certamente não seria interessante fazer parte desta rede sem aproveitá-la em sua amplitude.
Mas as mudanças precisam ser feitas com o cuidado e o estudo que pede uma alteração de tamanha magnitude, que vai afetar diretamente as produções artísticas, literárias, fonográficas, o mercado da informática e a própria rede como um todo, entre outros. Não encarar este fato de frente e buscar soluções paliativas, como barrar as conexões Peer to Peer, só deve trazer mais problemas que soluções. Assim como estamos falando de uma cultura já enraizada, e aceita, de copyright, estamos tratando de uma nova cultura de comunicação, e processamento de informação, já estabelecida.
Não polarizar esta questão entre os que ganham e os que perdem talvez seja um dos problemas da evolução lenta de idéias de licenças copyleft nos meios privados e públicos. Seria mais indicado que a discussão caminhasse para o lado de como todo mundo pode ganhar com as mudanças. Um grande passo foi dado pelos entusiastas do copyleft com a criação do Creative Commons. Primeiro porque ela estabelece níveis de controle da obra. Depois porque apresenta dispositivos que favorecem a ética no uso de informações de produtos sob seu código.
Agora seria o momento da indústria fonográfica, da mídia, da indústria, da informática e de outras instituições que lucram com conteúdos copyright fazerem concessões. Um passo no sentido de abrir as portas para a reforma da legislação seria a liberação dos direitos autorais de obras produzidas de dez anos para trás, ou reduzir a patente de códigos fontes de software por um curto período de tempo inicialmente, por exemplo. De grão em grão, a galinha enche o papo.
Ilustrações: pinturas de René Magritte.