O sistema capitalista (ab)usou de diferenças biológicas entre homens e mulheres, gerando crise na classe operária conforme se apropriava de seu tempo. Por Maya John

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O desenvolvimento da moderna sociedade capitalista produziu mudanças massivas, tanto na vida pessoal como laboral. O capitalismo não só reestruturou o mundo do trabalho, mas também a família. Com o desenvolvimento do capitalismo, a economia surgiu como esfera separada de atividade, tanto para a família como para o Estado. Em outras palavras, a organização da produção sob o capitalismo (ao separar os meios de produção da classe dos produtores) e o processo de proletarização eliminaram o caráter corporativo do funcionamento dos grupos de parentesco. Cada vez mais, as pessoas se apresentavam frente ao Estado como indivíduos; a socialização do trabalho veio acompanhada da privatização da vida pessoal (a família); o trabalho produtivo se dissociou das relações familiares; e a unidade familiar foi se convertendo na unidade de reprodução social (reduzindo seu tamanho continuamente) e de consumo (as necessidades básicas como a alimentação, roupa etc., começaram a ser produzidas para o mercado, e o trabalho familiar, portanto, não se empregava como na época em que os lares constituíam esferas de produção). Posteriormente, com o progressivo desenvolvimento da sociedade industrial, o capitalismo incorporou o trabalho doméstico na definição de feminilidade, despojando-o de seu conteúdo laboral e arrebatando-lhe seu valor econômico dentro da família. As atividades ligadas ao cuidado dos filhos, por exemplo, terminaram identificando-se exclusivamente com as mulheres, e a este trabalho doméstico foi negado seu valor econômico, depreciando assim os salários dos trabalhadores e piorando suas condições de vida[28].

Ao criar uma esfera privada “não econômica” frente à esfera pública “econômica”, o capitalismo desatou novos níveis e formas de opressão sobre as mulheres. É necessário determinar estas formas particulares sob as quais surgiu a opressão no seio do capitalismo e, principalmente, a “questão da mulher”. Foi principalmente no contexto da dinâmica da produção capitalista e de sua errônea concepção das limitações postas pela reprodução biológica onde surgiu a divisão sexual do trabalho (que empurrava as mulheres a uma situação econômica e socialmente subordinada) como uma possibilidade histórica. Em poucas palavras, o mero fato biológico da reprodução (gravidez, parto, amamentação) não é compatível com o sistema capitalista de produção e os capitalistas não têm vontade de adaptarem-se a ele (por exemplo, outorgando uma ampla licença remunerada para a maternidade, pondo creches e babás nos centros de trabalho, etc.), na medida em que implica mais gasto em capital variável e repercute na maximização dos lucros.

Portanto, o sistema capitalista obrigou as mulheres: 1) a dedicarem-se completamente a labores domésticos despojados de seu valor “econômico” e que as reduzem a uma situação de aberta dependência em relação a seus maridos; 2) ou a aguentar o fardo de ambas as coisas, o trabalho doméstico (não remunerado) e o trabalho assalariado. Dado que o trabalho doméstico é algo não negociável, existem mulheres que preferem (ou se sentem inclinadas a) abandonar o trabalho assalariado na medida em que o permite o alto salário de seus maridos, o que nos leva ao primeiro caso. E dado que um amplo número de mulheres procede de famílias operárias que sofrem uma constante proletarização, se veem obrigadas a entrar no mercado de trabalho para ajudar aos precários salários familiares, pelo que não abandonam o trabalho assalariado durante um bom tempo, o que nos leva ao segundo caso. Estes desenvolvimentos se distanciam da realidade das sociedades pré-capitalistas, nas quais as mulheres desempenhavam diversas funções produtivas além das reprodutivas. Isto não significa que as mulheres estivessem menos oprimidas nos modos de produção pré-capitalistas, mas que não estavam separadas do próprio processo de produção.

Assim, pois, o sistema capitalista historicamente (ab)usou de algumas das diferenças biológicas entre os homens e as mulheres, gerando uma formidável crise na classe operária conforme ia apropriando-se do tempo dos trabalhadores. Com o surgimento da jornada média de trabalho de 12 horas ou mais, a classe capitalista, em seu constante empenho por extrair a máxima mais-valia possível, terminou colocando uma séria ameaça para a própria sobrevivência da classe operária. As excessivas horas de trabalho e os baixos salários, por exemplo, tornavam impossível que os trabalhadores reproduzissem a força de trabalho, ou seja, que não podiam cobrir as necessidades básicas que lhes permitem voltar ao trabalho a cada dia. Não podiam, por exemplo, acessar os bens e serviços que requeriam suas necessidades domésticas (babás, empregadas, mordomos, cozinheiros etc.). Dadas estas circunstâncias, as famílias operárias evoluíram em torno a sua própria divisão de trabalho, na qual uma pessoa se encarregava dos trabalhos domésticos ademais do trabalho assalariado suplementar, enquanto a outra trabalhava a jornada completa. Basicamente, pois, o caráter temporal ou suplementar do trabalho assalariado da mulher permitiu aos capitalistas manter baixos os salários das famílias trabalhadoras, e também considerar a mulher como uma fonte de trabalho mais barata em um mercado laboral em expansão. Os interesses da classe capitalista, pois, consistem em reduzir a presença da mulher na força de trabalho a um estado de contínuo fluxo, mantendo-as dentro da categoria dos pior remunerados e menos “protegidos”.

Se examinarmos atentamente a natureza do emprego feminino no capitalismo, está claro que as mulheres de famílias operárias ou camponesas pobres foram empurradas a empregos mal remunerados, normalmente não qualificados ou semiqualificados. Em um país como a Índia, um amplo número de mulheres operárias está sendo escravizado no que se chama popularmente como o setor informal, onde sobrevivem trabalhando por produtividade (salários por peça). As mulheres operárias também conformam um amplo contingente dos operários migrantes que afluem para as metrópoles em busca de trabalho. Assim, pois, apenas um pequeno setor de mulheres, as de classe média, tem trabalhos bem remunerados, e só elas têm alguma oportunidade de progredir em sua carreira profissional e adquirir relevância em seu trabalho. Não obstante, mesmo para as mulheres bem pagas das profissões liberais existe um teto de cristal difícil de romper. Disparidade de salários entre as mulheres e os homens de cada profissão; falta de oportunidades para ascender; atmosferas de trabalho altamente sexistas (macho-alfa); assignação de tarefas ligadas a um perfil feminino, etc., formam uma parte concreta da vida das mulheres profissionais de todo o mundo.

O impacto adverso desta situação precária e opressiva das mulheres no mercado de trabalho é gigantesco. Em especial no caso das mulheres operárias com contratos de intensa exploração, cujo emprego muitas vezes requer viajar insegura durante horas, pela noite ou de madrugada; cujos bairros estão pouco iluminados, pouco vigiados pela polícia e sofrem um aumento da criminalização (e uma expansão do lúmpen) entre a juventude; cuja aberta dependência de um transporte público pouco regular as obriga a suportar diariamente a lascivos transeuntes, etc.

A primeira repercussão importante da subvalorização do trabalho produtivo da mulher e da feminização de certos empregos foi a criação de um terreno fértil para o sexismo. Com o mercado laboral pressionando para baixo os salários das mulheres e empurrando-as para as categorias laborais mais desprotegidas, o resultado é uma contínua reprodução dos papeis e atitudes de gênero. Daí, então, essa tendência dos colegas e chefes masculinos a desenvolver atitudes misóginas como “é só uma ajuda temporária”, “só procura algo de diversão até que sente a cabeça”, “se conseguiu o trabalho, a alguém se ofereceu”, “quem pensa que é nos dando ordens?”, etc.

Ao reduzir a mulher a trabalhos femininos ou de supermulher se cria uma nova carga suplementar para as mulheres operárias, cujas repercussões são gerais. Coletoras de ervas com as costas dobradas, que colhem folhas durante horas sem descanso; bordadoras que movem seus ágeis dedos a toda velocidade através de designs complexos para alcançar os objetivos e reclamar o salário diário; enfermeiras lutando para cumprir com seus deveres de cuidar dos pacientes porque não há pessoal suficiente para todos os doentes; professoras com salários miseráveis, etc. Estes costumam ser os trabalhos para os que se contratam as mulheres, dado que encaixam com as tarefas (femininas) associadas a elas. Enquanto isso, a recepcionista “sexy”; a esbelta aeromoça de minissaia; as bailarinas meio desnudas das festas e outras representações; a impecável secretária que está sempre a mil; a modelo esquelética que se equilibra nas entregas de prêmios e demais atos; as maquiadíssimas dançarinas de bares etc. são os típicos trabalhos nos quais o físico das mulheres se emprega para fazer negócio. Nestes trabalhos de supermulher ou hipersexualizados, as mulheres devem se vestir e se comportar para acentuar certos traços de seu corpo. Isto não beneficia os interesses das mulheres trabalhadoras (ainda que algumas mulheres considerem estes papeis “interessantes”), nem os das mulheres em geral. Esta acentuação das partes do corpo feminino “por questões de trabalho”, aos únicos que interessa interessa unicamente aos homens que querem consumir visualmente (e inclusive fisicamente) sua sexualidade sem o elemento de responsabilidade que acompanha o vínculo sexual com outra pessoa. E mais, esta feminização distorcida dos perfis laborais reforça o estereótipo de que as mulheres valem mais por seu corpo e aparência que por sua personalidade em geral.

Dito isso, talvez um dos efeitos mais transformadores e destacáveis do capitalismo é seu impacto na sexualidade humana e nos vínculos de casal. Com o desenvolvimento do capitalismo e o subsequente colapso da família como unidade produtiva, cada vez mais homens, e também mulheres, saem de casa em busca de emprego, dado que já não herdam os ofícios nem têm possibilidade de receber sustento por parte de suas famílias ou comunidades. Este processo histórico criou um âmbito no qual os homens e as mulheres podiam interagir fora dos limites tradicionais dos laços comunitários. Consequentemente, o matrimônio começou a se basear na mútua atração, ou como o chamou Engels, o “amor sexual individual”. Na moderna sociedade capitalista, o matrimônio e as demais formas de relação entre o homem e a mulher começaram a se basear na livre atração mútua. Inclusive num país como a Índia, onde segue sendo comum a prática de arranjar casamentos, cada vez são mais raras as bodas sem conhecer o futuro esposo e sem um breve noivado prévio. Ademais, é acima de tudo nas cidades, para as quais os jovens emigram em busca de educação ou emprego, onde há oportunidades de ter uma relação sentimental e se casar, ou ao menos encontrar um parceiro. Isto se deve ao fato de que nas cidades os jovens não estão vigiados e controlados diretamente por sua família ou comunidade. Não obstante, ainda que as relações sejam mais livres, os vínculos de casal (heterossexual ou homossexual) se sustentam na desigualdade e opressão. Portanto, inclusive hoje em dia a satisfação mútua das necessidades sexuais e emocionais segue sendo uma prática excepcional. A questão, claro, consiste em saber por que, apesar das transformações sociais que o capitalismo introduz, a emancipação das mulheres (que inclui sua libertação sexual) segue sendo um sonho distante.

Sem dúvida, as décadas de 60 e 70 supuseram uma nova época na vida pessoal das mulheres, graças a avanços como o da pílula anticoncepcional, o direito a abortar e uma maior facilidade para o divórcio, assim como a outras mudanças nas atitudes com relação ao sexo e a gravidez fora do casamento. Ainda assim, o que muitas feministas radicais chamam a “revolução sexual” ficou limitada durante muitos anos às classes altas dos países de primeiro mundo. É importante assinalar que boa parte destas mudanças para melhor foram o resultado de um contínuo acréscimo de mulheres na mão de obra (ainda que não necessariamente em forma de empregos bem pagos e por jornada completa). E por último, mas não por isso menos importante, o nome de “revolução sexual” não parece apropriado. Pois o capitalismo conservou a estrutura familiar, ainda que sobre a base de novos vínculos de casamento.

Esta estrutura familiar que evoluiu com o capitalismo é o que muitos identificam como a família nuclear. Neste processo de desenvolvimento, é importante destacar que o modo de produção capitalista foi reduzindo continuamente o tamanho da família, o que permitiu também aumentar a responsabilidade e a carga das mulheres no lar. Ademais, mesmo hoje em dia a mulher comum considera como um tabu e um risco ter uma vida sexual ativa antes ou à margem da instituição do casamento. Também vacila ou considera que é difícil, se não “inaceitável”, impor sua própria escolha à família[29]. Neste contexto, como foi se definindo e redefinindo o conceito de estupro sob o capitalismo?

(continua…)

Notas

[28] Ao reduzir os salários familiares da classe operária (o salário do chefe de família) e ao empurrar para fora do trabalho as mulheres quando dão à luz, o trabalho de criar e dar educação para os filhos se converteu em uma tarefa que devia “fazer-se gratuitamente”, pois não tinha nenhum papel na sustentação da economia e, portanto, os capitalistas não gastariam dinheiro com isso.

[29] Em Índia, por exemplo, as mulheres tendem a se casar inclusive antes de completar seus estudos superiores. Quem consegue certo nível educativo não costuma ter oportunidade de trabalhar antes de se casar. Isto demonstra que as mulheres muitas vezes têm que abandonar sua educação e suas carreiras para poder chegar a ofertas de matrimônio “adequadas”. Evidentemente, muitas delas não retornam aos estudos depois do casamento.

Traduzido por Pablo Polese. O texto de Maya John foi originalmente publicado em Radical Notes e sairá dividido em sete partes, uma por semana.

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