No início da Revolução produziu-se uma assimilação entre as tendências ditas avançadas ou revolucionárias em arte àquelas que se aplicam os mesmos adjetivos em política. Por Jacques Mesnil.
Jaques Mesnil (1872-1940), cujo verdadeiro nome era Jean-Jacques Dwelshauvers, foi jornalista, crítico de arte e grande estudioso da Renascença florentina. Anarquista na juventude, aproximou-se do comunismo após a I Guerra Mundial. Em 1918, aderiu à Seção Francesa da Internacional Operária (SFIO). Em 1921, entrou, todavia, em desacordo com os bolcheviques, acabando por se afastar deles, sobretudo em função da violenta repressão do Exército Vermelho à Revolta de Kronstadt. Publicou diversos artigos e resenhas no Bulletin Communiste. Expulso do jornal L’Humanité em 1924, passou a colaborar com La Révolution em 1925 e com a revista Monde em 1926.
Leia aqui a parte 1 deste artigo.
II
Chegamos, assim, naturalmente à segunda parte de nosso assunto, pois essa aquisição de novos conhecimentos, essa reviravolta de ideias, essa soma de impressões, essa abundância de germes fecundantes nos espíritos virgens deve necessariamente despertar as faculdades criadoras.
Em que sentido procurou-se favorecer esse despertar e quais são as primeiras manifestações artísticas dessa grande reviravolta social, que agiu mais ou menos profundamente sobre todos os espíritos? A fase que observamos é ainda aquela do caos primitivo em que se distinguem mal as trevas da luz. Encontraremos necessariamente muita confusão, muito tateio.
E, imediatamente, constataremos que os primeiros rudimentos da arte por meio dos quais a sociedade comunista deveria se exprimir da maneira mais imediata, mais visível – me refiro à arquitetura – são ainda completamente falhos.
É verdade que a Rússia é, sob esse aspecto, um dos países mais mal preparados. Sob o czarismo, a arquitetura tivera um caráter realmente tradicional e, além do mais, em nada nacional. Desde Pedro, o Grande, os estilos de importação europeia não haviam cessado de reinar e predominar: estilo italiano, estilo francês. Na arquitetura dos palácios dos ricos, nos monumentos cerimoniais, era a dupla tradição que predominava: de um lado, um estilo imitado do estilo do Império Francês; de outro, um estilo inspirado ainda em Palladio[1]. A isso se somava, especialmente na construção das igrejas, uma imitação dos velhos estilos russos, desde o bizantino até o estilo nacional do século XVI.
Nenhum desses problemas da arquitetura moderna havia sido abordado: bancos, grandes revistas, cooperativas, casas do povo, estações das estradas de ferro, vastos estabelecimentos de instrução, nada disso havia sido especialmente estudado; e mesmo a influência alemã, apesar da vizinhança e apesar da propaganda ativa à qual se entregava a imprensa, fora bastante escassa na Rússia. Apesar do desenvolvimento extraordinário da arte teatral russa e do interesse especial dado a tudo o que diz respeito ao teatro, os problemas arquiteturais que este suscita parecem ter sido quase completamente negligenciados em favor dos problemas de encenação e decoração. Aqui, ainda, não se encontra o esforço contínuo e tão fecundo feito nesse sentido na Alemanha.
De forma semelhante, os novos procedimentos de construção, como o cimento armado, foram pouco empregados nos trabalhos de arquitetura propriamente ditos e em nada estudados quanto às suas possibilidades artísticas.
Desde a Revolução, não somente nada foi construído (o que é compreensível), mas também não se projetou grande coisa: um projeto ambicioso demais para o crescimento de Moscou foi logo abandonado.
No último verão, podia-se ver, na exposição técnica que acompanhava o Congresso dos Sindicatos, a maquete de um monumento da III Internacional[2] que é, a meu ver, uma obra incoerente e desprovida de toda concepção artística. Esse monumento, que, em grandeza de execução, seria tão alto quanto a Torre Eiffel, é formado por um grande espiral de metal, que tem o mesmo ar de gigantesco andaime da referida torre, em meio do qual são suspensos sólidos geométricos de vidro, com armações de ferro ou latão; em baixo, um cilindro de aproximadamente oitenta metros de diâmetro, destinado a abrigar a sala do Congresso da III Internacional, as salas para datilógrafos, uma biblioteca, um restaurante; acima, uma pirâmide para as reuniões do Executivo; depois, um cilindro menor para a estação radiotelegráfica; enfim, uma meia esfera como estação de luz e energia elétrica. Cada um desses sólidos se moveria: o grande cilindro faria uma revolução completa em um ano, a pirâmide em um mês, o pequeno cilindro em um dia, a meia esfera em um minuto. Esse movimento simbolizaria o movimento contínuo da Internacional, o vidro simbolizaria a limpidez que reina nessa instituição, e assim por diante.
Essa fantasia é devida a um artista que não era originalmente arquiteto, mas pintor, Tátlin[3], jovem professor na Academia de Petersburgo, que teve um importante papel no mundo artístico desde a Revolução. Vindo visivelmente do futurismo, Tátlin acha a máquina muito mais interessante que o homem, e queria dar à arte uma base mecânica e não orgânica; ele confunde a técnica da máquina e a arte, apaga todos os limites entre as artes: substituiu a plástica por uma escultopintura, inventou o contrarrelevo, com ajuda do qual ele representa a “quintessência das máquinas”, servindo-se de todos os materiais e objetos imagináveis: madeira, vidro, folhas de flandres, parafusos, cabos elétricos, lentes de microscópio, etc.
Na verdade, não se vê qual relação pode existir entre tudo isso e o comunismo ou o proletariado. Essa admiração fanática pela máquina é um traço bem “futurista” e deriva diretamente da civilização arqui-industrial, produzida pelo capitalismo na última fase de sua evolução, e do materialismo, no sentido não filosófico da palavra, que é a consequência daquele. Os futuristas italianos são bem mais coerentes do que Tátlin, associando o imperialismo nacionalista e o amor da guerra pela guerra. As canções pirotécnicas de Marinetti[4] harmonizar-se-iam perfeitamente com as quintessências das máquinas de Tátlin.
No início da Revolução produziu-se uma assimilação, que era inevitável, entre as tendências ditas avançadas ou revolucionárias em arte e aquelas às quais se aplicam os mesmos adjetivos em política; essa assimilação era inevitável porque existia desde antes da Revolução e porque é correntemente admitida em toda parte. Nos jornais socialistas, faltam, frequentemente, diretivas precisas em relação à arte, e se sustentam, assim, tendências extremistas, a arte de vanguarda por simples analogia de palavras, sem se perceber que o que se preconiza com isso é, na verdade, na maior parte das vezes, um produto, uma expressão do regime que se combate; por outro lado, os artistas ainda não reconhecidos consideram-se revolucionários e procuram apoio em pessoas que não correm o risco de serem de marcadas pelo academicismo.
Lunachárski, que, como se viu, é um homem de gosto intelectual refinado, segundo a confissão de um adversário absoluto de suas ideias políticas, favorece tendências inovadoras em arte e teme visivelmente não reconhecer os jovens talentos. E isso não significa que ele tenha ilusão sobre o valor real desses movimentos artísticos: ele mesmo escreveu, a propósito do futurismo, que este é “a continuação da arte burguesa com algumas atitudes revolucionárias”. Mas Lunachárski não pretende correr o risco de perder o trigo em meio ao joio.
Deixou o caminho aberto a todos os futuristas, cubistas, expressionistas, suprematistas, imaginistas etc, que confundiam o triunfo de Revolução com o seu. Esses artistas tomaram o primeiro lugar na organização artística do novo regime, tanto mais facilmente quanto aderiram a esse regime, seja por convicção, seja porque viam nele uma ocasião para se produzir em condições mais vantajosas do que em qualquer outra. Eles exerceram uma influência preponderante no colégio das Belas Artes do Comissariado da Instrução Pública. As antigas academias imperiais foram extintas; nas novas instituições, os professores são designados pelos alunos através da votação; como as tendências artísticas ditas “avançadas” predominam entre os jovens, a maioria dos professores eleitos pertence à geração pós-impressionista.
Umansky[5], em seu livro Neue Kunst in Russland (A Nova Arte na Rússia), define assim a evolução artística russa desses últimos anos: “Da representação da natureza à pura criação artística; do estático ao dinâmico; da dissolução impressionista do objeto à sua análise cada vez mais estrita; da exclusão de tudo o que é passageiro e adicional à formação arquitetônica da imagem; do mundo empírico do fenômeno ao mundo transcendental; do monotemático ao politemático; do ritmo da natureza ao ritmo mecânico moderno; da imaginação da natureza à criação artística pessoal, independente do modelo”.
Em muitos aspectos, esse programa está nas antípodas da arte popular. Os artistas ditos de vanguarda puderam desenvolvê-lo nas numerosas exposições do Estado que organizaram e nas festas públicas, de que foram os decoradores.
Em 1918, a festa do 1º aniversário da Revolução (25 de outubro no calendário ocidental / 7 de novembro no calendário russo) foi organizada quase que exclusivamente por corporações de artistas “expressionistas”: os pintores fizeram gigantescas decorações que encobriam as fachadas das casas, alterando completamente o caráter dos edifícios e mesmo dos jardins, substituindo o violento colorido dos cenários russos ou das grandes igrejas do estilo nacional por fachadas com o matiz uniforme e o caráter europeu das casas modernas.
A decoração dos trens de propaganda forneceu-lhes também o pretexto para desenvolverem sua fantasia. Organizou-se um museu especial para suas obras: enfim, fizeram inúmeras exposições: em 1919, em Moscou, não houve menos do que treze delas, compreendendo 28.000 obras, e distribuiu-se mais de 300.000 ingressos.
Em maio de 1918, havia sido instituído um grande auxílio governamental para sessenta projetos de novos monumentos para os grandes revolucionários do mundo (tanto do domínio científico ou artístico quanto do social). Não resta muita coisa das maquetes que foram expostas sobre as praças de Moscou: nenhum projeto foi definitivamente executado por falta de recursos materiais, e também porque tinham, em geral, qualidade medíocre.
Nada de muito especial restou também das decorações de festa, mesmo no espírito do povo, e essas iniciativas parecem ter deixado antes uma impressão de espanto do que de admiração.
Os cartazes de propaganda, cujo objetivo é, antes de tudo, didático, mas que poderiam adquirir um valor não apenas momentâneo pelo tratamento artístico, não têm, em geral, grande mérito e não valem muito mais do que os cartazes de guerra de diferentes países envolvidos no conflito mundial.
Os esforços dos artistas inovadores parecem ter sido um pouco mais frutíferos no domínio da arte decorativa: aqui, o elemento de representação, figuração do objeto exterior, não existe mais ou então não há mais espaço para conciliá-lo com o tratamento artístico, não há mais oposição entre o objeto exterior e a arte; o objeto mesmo é matéria de arte e o espírito criador não precisa mais conciliar elementos de natureza contrária, mas, sim, harmonizar sua inspiração e o motivo inicial da obra.
Os ateliês de arte decorativa, notadamente o “primeiro ateliê de Moscou”, sob a direção de Malevitch[6], o pintor “suprematista”, expuseram, em julho-agosto de 1919, obras têxteis e cerâmicas; as primeiras, parece, especialmente notáveis. Os jovens artistas expressionistas tentaram levar ao povo os motivos decorativos que inventavam, e os camponeses produziram bordados a partir desses modelos.
Mas não parece que essas iniciativas tenham produzido um efeito durável: a atividade dos ateliês de arte decorativa tornou-se mais lenta; os produtos recentes da cerâmica que vi no ano passado, especialmente os copos feitos para o III Congresso da Internacional, não possuíam grande valor artístico e chamavam mais atenção por suas cores vivas do que pelo ritmo de suas linhas ou pela harmonia geral de suas formas e de seus motivos ornamentais.
Hoje, há uma reação visível na Rússia contra a influência preponderante dos futuristas, suprematistas etc. O novo regulamento da Academia de Belas Artes de Petersburgo, feito esse ano, é uma prova disso: estabeleceu-se uma prova de entrada pela qual deverão passar todos os que entraram na Academia a partir de 1918. Considera-se que eles não ofereceram garantias suficientes de seriedade. Ouvi afirmações de que Tátlin, que desempenhou importante papel desde a Revolução, teve ali, mesmo materialmente, uma influência desorganizadora.
A ação exercida pela Revolução foi até aqui bem mais importante no domínio do teatro do que no das artes plásticas. Os russos têm dons particulares para o teatro, e isso em todos os sentidos, seja em relação ao canto, à mímica, à dança, à decoração cênica ou à criação dramática.
Tivemos alguns ecos, alguns reflexos disso no Ocidente: os balés russos tiveram em Paris e em muitos outros lugares o conhecido sucesso; o Théâtre de la Chauve-Souris de Moscou, que se dividiu e veio no último inverno fazer apresentações em Paris, revelou um teatro de variedades bem superior ao nosso em qualidade.
Mas tudo isso, repito, não é senão um simples reflexo da arte teatral tal como existe na Rússia, tal como só se pode apreciar nesse país, apesar dos obstáculos que as dificuldades materiais impõem atualmente às suas realizações. É difícil dar aqui uma ideia do que é o teatro no Rússia, não somente de suas manifestações mais refinadas, mas do seu conjunto. Estive na Rússia fora da temporada teatral, vi, sobretudo, apresentações populares, feitas com meio insuficientes, cenas pequeníssimas, pouquíssimos figurantes, orquestra reduzida, quando não substituída por um simples piano – e, entretanto, todas as apresentações deixaram-me recordações inesquecíveis, porque os atores não interpretam seus papéis: eles vivem-nos, entram neles inteiramente, transformam-se nos personagens que representam; jamais se sente neles o presunçoso, o homem que quer brilhar individualmente às custas da obra. Essa consciência, esse espírito religioso, que é uma das características do povo russo, encontra-se aqui. E é ainda mais apreciável esse traço característico quando se sabe em que condições trabalham atualmente os atores na Rússia.
Esgotados pelas privações materiais, caem de inanição entre dois atos; são obrigados a andar quilômetros a pé para ir de suas casas ao teatro, haja vista a insuficiência dos serviços de transporte ou a impossibilidade de usá-los nos trajetos em que são reservados para os operários; precisam dar aulas ou fazer apresentações suplementares para conseguir melhorar a alimentação insuficiente que o Estado lhes fornece. É preciso um amor extraordinário por sua arte para se doar como eles, de corpo e alma, e para nos comunicar impressões tão poderosas.
O teatro é realmente popular na Rússia, não só porque atrai o povo, mas também porque do seio do povo tira os seus melhores elementos. Alguns de seus maiores atores, como Chaliápin[7], por exemplo, saíram diretamente do povo. É preciso ter ouvido Chaliápin cantar uma canção de artesão e entreter uma sala cheia de operários que cantam com ele o refrão para se dar conta da comunicação íntima que existe entre o povo e ele e dos dons artísticos excepcionais desse povo – porque em nenhum outro lugar se encontraria um coro improvisado de um tal conjunto e com tal profundeza de sentimento.
A qualquer momento, vocações teatrais podem se revelar no seio das massas: também a República dos Sovietes fez todo o possível para favorecer sua eclosão e seu reconhecimento. Essa é uma das principais tarefas da instituição destinada a desenvolver a cultura proletária (instituição chamada, por abreviação, Proletkult[8]): procurar os talentos artísticos e fornecer-lhes os meios para se manifestar.
Desde que se tenha reconhecido as aptidões artísticas, musicais, teatrais ou outras de um operário, permite-se que ele trabalhe na fábrica apenas no período da manhã; à tarde, ele vai ao Proletkult, e se é reconhecido que ele possui um grande talento e que pode dedicar-se às artes, deixa de trabalhar na fábrica para completar sua educação no Proletkult.
Desde a Revolução, foi fundado um grande número de novos teatros, não apenas nas grandes cidades, sedes dos conselhos do governo, mas também nas pequenas e mesmo nos vilarejos. Há agora 2.197 teatros na República dos Sovietes; 268 Casas do Povo têm teatro; há, além disso, nos vilarejos e no campo, 3.452 sovietes artísticos, que promovem apresentações. Em 1916, havia cerca de 70 teatros com valor artístico em toda a Rússia e de 130 a 140 teatros medíocres; estes foram extintos. Há, hoje, uma verdadeira paixão pelo teatro: todos querem aprender a dançar, a encenar, a fazer mímica.
Muitos produtores e organizadores de teatros do antigo regime permaneceram, seja resignando-se à nova situação, menos brilhante e luxuosa que a anterior, seja aceitando-a com entusiasmo pelas perspectivas inesperadas que oferece. Este é o caso de Meyerhold[9], que, às vésperas da Revolução, considerava ainda o teatro como feito para uma minoria da elite e montava seus espetáculos brilhantes e refinados em Petersburgo na presença da corte, ao passo que, agora, preconiza um teatro feito por e para o povo.
Meyerhold é hoje uma das personalidades mais influentes nos meios oficiais em tudo o que concerne à organização do teatro.
Meyerhold criou o “Primeiro Teatro da República Federativa dos Sovietes da Rússia”, considerado a empreitada revolucionária por excelência nesse domínio. Ele montou com o maior dos cuidados as Aubes (Auroras), de Verhaeren[10], que não tiveram sucesso entre o povo; depois, uma peça de Maiakóvsky[11], intitulada Mysteria-Bouffe, que está em cartaz e que melhor representa as tendências atuais de Meyerhold; o título mesmo as resume: de um lado, o retorno aos “Mistérios”, ao teatro de massas da Idade Média; de outro, para animá-lo, o recurso ao improviso bufão do antigo teatro italiano, da Commedia dell’ Arte. A peça é, quanto ao tema, uma peça de propaganda destinada a representar o regime dos Sovietes, em detrimento de todos os regimes anteriores, como o maior que existe. Mas Meyerhold poderia mudar de tema tranquilamente. O que lhe interessa é a encenação, os grandes movimentos de massa.
Na Rússia, tende-se a realizar um sonho que os russos não são os únicos a ter: transportar a arte dramática para além dos limites estreitos da atmosfera de uma sala, para a praça pública: levar as massas a participarem, confundir o espectador com o ator.
Foi assim que Kel, que está na cabeça do centro político de educação teatral, expôs tal projeto nesse verão a André Julien[12]: “É preciso criar um teatro em que as massas façam parte da criação dramática. O centro de educação física e militar, obrigatória para todos, deverá trabalhar no preparo das massas com esse objetivo: é preciso aproximar as duas correntes de cultura física e de cultura artística, a fim de realizar o lema dos antigos: ‘Mens sana in corpore sano’[13]. O autor fará o esquema geral da peça: o produtor coordenará o conjunto da encenação. No momento em que a multidão deverá tomar parte da ação, os expectadores serão estimulados a cantar com os atores, a viver a peça; eles serão tomados, como o artista, do desejo de criar”.
Seria isso realizável e se chegaria a outra coisa que não à desordem e à cacofonia se tudo não fosse exatamente ajustado com antecedência? Deixo aos outros que respondam a essa questão – tanto mais porque não tive a oportunidade de assistir a nenhuma dessas apresentações ao ar livre, em que agem as massas que foram descritas por vários escritores que viajaram recentemente pela Rússia, e, notadamente, por Arthur Holitscher[14] em seu importante livro Drei Monate in Sowjet-Russland (Três Meses na Rússia Soviética). Holitscher assistiu a uma apresentação comemorativa da Revolução de Outubro-Novembro de 1917 que apresentava dramaticamente a tomada do Palácio de Inverno de Petersburgo, no local mesmo em que ela aconteceu. E nada faltava ali: nem os revolucionários, vindo armados aos milhares de todas as ruas adjacentes, nem os tiros de fuzil, nem o crepitar das metralhadoras, nem mesmo, no fim, o cruzador atirando do Neva sobre o palácio.
E o espetáculo era tão impressionante, o ânimo daquela multidão era tal, a vida que vinha dali era tão imediata, tão tocante, que os espectadores passivos que o assistiam de algumas janelas das casas vizinhas se sentiam subjugados por aquela força formidável e se perguntavam, tomados de uma inquietude física, se não era à própria Revolução que assistiam.
Essa substituição final da emoção brutal e material que dá realidade à emoção sublimada da obra dramática, que deve tocar sobretudo a alma, é algo desejável? Não o creio, do ponto de vista artístico; mas ela testemunha, em todo caso, o extraordinário talento desses atores improvisados, de toda aquela multidão que entra tão bem no jogo, que parece esquecer que o joga, e ressuscita, por assim dizer, a ação que deve representar.
Vê-se a que tende Meyerhold. Stanislávsky[15], que dirigia e ainda dirige o Teatro das Artes em Moscou, não está em nada convertido a tais ideias. Ele guarda o respeito à obra de arte finalizada, acabada, em que nada foi deixado ao acaso da improvisação, e o cuidado de uma execução perfeita, adequada à obra, tão cuidada nos detalhes da encenação quanto no jogo dos atores, harmoniosa em todos os pontos. Nesse teatro, em que tudo é recolhimento, em que se vive da e para a arte, não se tem nem mesmo o hábito de aplaudir. É o princípio absoluto da não participação material do espectador na ação dramática: estamos aqui no lado oposto às tendências de Meyerhold.
Não chego ao ponto de qualificar a tendência de Meyerhold como a mais avançada, nem a de Stanislávsky como a mais conservadora; são denominações que não têm muito sentido em arte. Mas apontarei que a tendência de Meyerhold, embora mais popular na aparência, não parece cativar especialmente o povo no seu conjunto. O povo continua ainda a fazer questão das antigas obras-primas: quando o célebre ator Yúriev[16], do Grande Teatro de Petersburgo, retomou o Édipo Rei em maio de 1918, o sucesso foi tão grande que ele foi levado a reencenar também Macbeth, Don Carlos, Othelo, o Rei Lear, e com o mesmo sucesso.
Leo Matthias[17], no interessante estudo sobre o teatro na Rússia Soviética, cuja tradução aparece no Art libre[18] (Arte Livre), constata também essa ligação do público com o antigo repertório e, particularmente, com as peças de Ostróvsky[19], o mais popular dos autores dramáticos russos. Ostróvsky é um autor especificamente russo, que, em peças de uma intriga muito simples, colocou em cena o maior número de tipos característicos, como aqueles com quem se esbarra no dia a dia, tipos tirados, sobretudo, dos comerciantes de Moscou que ele havia conhecido bem.
Essa tendência do público russo a apreciar as peças em virtude de sua qualidade dramática e não em função de seu tema ou de sua maior ou menor atualidade, modernidade ou novidade fala, além do mais, em seu favor e prova que possui um verdadeiro senso artístico.
Seria imprudente tirar do conjunto desses comentários e observações forçosamente incompleto uma conclusão de validade geral ou qualquer previsão sobre o futuro artístico da Rússia.
Mas o que constatei, e que tento fazê-los perceber aqui, foi a riqueza e a generosidade desse terreno humano, a fertilidade desse povo, a multiplicidade de suas possibilidades de futuro. O povo russo é bem aquele que conhecemos através das produções de seus escritores: ao ler Tolstói[20], Dostoievsky[21], Gorky[22] e tantos outros, sentimo-nos tocados mais profundamente do que pelas obras francesas, alemãs ou inglesas. Uma voz mais grave, mais envolvente, mais sincera, mais profunda, mais diretamente humana, fala-nos por seu intermédio: é a voz do povo russo, de um povo virgem, não corrompido pela leitura dos jornais, por trepidações cinematográficas, de um povo cuja vida profunda não é recoberta, dissimulada por um verniz uniforme de noções superficiais e opiniões aprendidas.
Muito frequentemente, lendo as narrativas sobre a vida desse povo ou aguardando relatos sobre os fatos de sua história atual, pensei nos povos do fim da Idade Média, cuja alma eu procurava, há pouco tempo, nos arquivos e nos monumentos de Florença. Como eles, o povo russo é capaz de brutalidades e violências que nos assustam, mas também de grandes movimentos de piedade, amor, entusiasmo: como eles, é um povo religioso, como eles, profundamente artista.
Um movimento formidável como essa Revolução que revirou as mais profundas camadas da população e chamou à vida política ativa, forçando a participar de alguma forma da coisa pública, pessoas que até então eram estritamente submissas a um poder autocrático; uma Revolução que trouxe um mundo de ideias novas, não em palavras, não em livros reservados aos iniciados, mas na realidade ativa, e suscitou em toda parte discussões apaixonadas não pode não exercer uma influência enorme sobre a vida coletiva e individual e sobre a obra de arte que é sua expressão.
Não há dúvida de que a arte na Rússia absorverá essa convulsão do terreno social: podemos esperar novos e esplêndidos florescimentos desse solo revolvido até as profundezas. Mas, uma vez mais, não tenhamos pressa demais e não esperemos o milagre de um florescimento que acontecerá num passe de mágica antes que as novas sementes tenham encontrado, para germinar, um terreno com relativa estabilidade.
Este artigo está dividido em duas partes:
Parte 1
Parte 2
Notas do Marxist Internet Archive (exceto quando indicado por NT)
[1] Andrea Palladio (1508-1580). Arquiteto da Renascimento italiano.
[2] A maquete pode ser vista aqui. (NT)
[3] Vladímir Ievgráfovitch Tátlin (1885-1953). Pintor e escultor soviético, conhecido também por seus projetos arquitetônicos.
[4] Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944). Escrito italiano, inspirador do Futurismo. Publicou, em 1909, o Manifesto do futurismo.
[5] Konstantín Aleksândrovitch Umansky (1902-1945). Jornalista, artista e diplomata soviético. Filiou-se ao Partido Comunista em 1919.
[6] Kazimir Severinovitch Malevitch (1879-1935). Artista russo, um dos pioneiros da arte abstrata e fundador do suprematismo.
[7] Fiódor Ivânovitch Chaliápin (2873-1938). Cantor e ator russo. Filho de camponês. Deixou a URSS em 1922.
[8] Movimento literário russo surgido em 1917. De origem popular e contrário à cultura burguesa, incentivava uma produção literária engajada social e politicamente e acessível ao povo. Desvinculado do Partido Comunista, passou a receber publicamente críticas deste a partir de 1920. Extinguiu-se em 1923.
[9] Vsevolod Meyerhold, nascido Karl Kasimir T. Meyerhold (1874-1940). Dramaturgo e diretor de teatro russo. Após a Revolução de Outubro de 1917, uniu-se aos bolcheviques, colaborou com Maiakowsky e dirigiu, a partir de 1920, o teatro do Estado (que tem seu nome desde 1923). Foi preso e acusado de espionagem em 1939 e executado em 1940.
[10] Emile Verhaeren (1855-1916). Teatrólogo e poeta belga influenciado pelo simbolismo. Sua peça Aubes descreve a cidade simbólica de Oppidomagne, onde ocorre a revolução socialista.
[11] Vladímir Vladímirovitch Maiakóvsky (1893-1930). Poeta russo nascido na Georgia. Filiou-se ao POSDR (Partido Operário Socialdemocrata Russo) em 1908. Foi um dos líderes do futurismo na década de 10. Depois da Revolução de Outubro, continuou a escrever poemas e também peças teatrais, além de cartazes. Foi um dos dirigentes da LEF (Frente de Esquerda da Literatura), que reunia os artistas de esquerda. Fiel aos ideais revolucionários, tornou-se crítico da realidade soviética no fim dos anos 20. Suicidou-se em 1930.
[12] Escreveu artigos sobre a Rússia no jornal francês L’Illustration (de orientação reacionária) em 27 de agosto e 3 de setembro de 1921.
[13] “Uma mente sã em um corpo são”.
[14] Arthur Holitscher (1869-1941). Escritor alemão, notadamente de escritos de viagem. Seus livros foram queimados pelos nazistas a partir de 1933.
[15] Konstantín Serguêievich Stanislávsky (1863-1938). Comediante e diretor de teatro russo. Começou sua carreira nos anos 1890 em Moscou e continuou a trabalhar na Rússia depois da Revolução de Outubro.
[16] Yuri Mikháilovitch Yúriev (1872-1948). Comediante russo e soviético que interpretou diversos papéis no teatro, na rádio e no cinema.
[17] Leo Matthias (1893-1970). Jornalista alemão. Emigrou em 1933.
[18] Número de setembro de 1921.
[19] Alexander Nikoláievitch Ostróvsky (1823-1886). Dramaturgo russo.
[20] Lev Nikoláievtich Tolstói (1828-1910). Escritor russo, autor de grandes obras como Guerra e Paz e Ana Karenina. Influenciou profundamente a literatura e o pensamento político russo, especialmente, com relação ao último ponto, os anarquistas e socialistas revolucionários.
[21] Fiódor Mikháilovitch Dostoiévsky (1821-1881). Escritor russo. Autor de obras importantíssimas como Crime e Castigo, Os irmãos Karamázov e O Idiota.
[22] Máxim Górky (1868-1936). Escritor russo simpatizante dos bolcheviques, dos quais se afasta no início do regime soviético. Volta a aproximar-se dele na época stalinista. As condições de sua morte são ainda suspeitas.
Traduzido por Maria Teresa Mhereb a partir do original disponibilizado pelo Marxist Internet Archive neste link e revisado pelo Passa Palavra. Este artigo, publicado originalmente no Bulletin communiste, ano 3, n° 8, 23 fev. 1922, faz parte do esforço coletivo de traduções do centenário da Revolução Russa mobilizado pelo Passa Palavra. Veja aqui a lista de textos e o chamado para participação.
ao ler críticos como Lunachárski ou este mesmo Mesnil fica-me evidente uma profunda preocupação artística destes com relação ao campesinado. Oras, mas se o projeto de Estado que se estava gestando era abertamente um “estado operário”, e a aliança operária-camponesa em realidade estava melhor expressa como uma condução operária ponto (inclusive baseada na exploração camponesa), não me estranha que estes críticos buscassem: 1) expressões artísticas que melhor imitassem a atividade de um agitador ou quadro político; 2) encontrar qualquer valor que seja na dita arte popular, como Lunachárski que se esforça para elogiar esculturas de bonecos de madeira apenas porque feitas por algum camponês pobre. Se da vanguarda artística soviética se desenvolve boa parte do que posteriormente será adaptado à comunicação gráfica de massas no capitalismo, deste tipo de avaliação crítica parece tomar forma a cooptação “popular” que os Estados atuais realizam por meio das secretarias de Cultura.
Sobre a nota 8, tenho entendido que o Proletkult muito mais que um movimento literário era uma organização espalhada por toda a Rússia, ligada a Bogdanov, antigo oponente de Lenin dentro do partido Bolchevique, e tanto a organização quanto Bogdanov foram das primeiras vítimas da metodologia pela qual Stalin seria famoso, a difamação pública contra os não alinhados (neste momento a Lenin) e posterior eliminação dos cargos oficiais.
No mais, a parte I do texto é muito boa para também fazer a ponte com este período nas práticas didáticas dos museus, como hoje já está institucionalizado em praticamente todo o mundo. E transcendendo os usos e utilidades, me levou diretamente a pensar nos filmes de Sukurov — que recomendo a qualquer um minimamente como uma forma de resistência contra toda a bosta que é o cinema hoje.