Num capitalismo complexo, a porta giratória sempre estará aberta, e sempre haverá quem a ponha a girar. Por Manolo

Para contrariar certa visão simplista da economia e da sociedade que critiquei noutro artigo, propus-me a apresentar exemplos em contrário. Pretendo, com eles, demonstrar que o capitalismo atingiu um tal nível de complexidade que não é mais possível compreendê-lo com base em modelos simples.

Em primeiro lugar, analisemos algumas formas de relações entre empresas e Estado tidas como “corruptas”. Quando digo empresas, não me refiro ao mercadinho ou à padaria da esquina, à estofaria ou à serralheria do vizinho, ou ao mestre-de-obras que contrata uns tantos peões para fazer pequenas obras, ou às pequenas cooperativas agrícolas, ou mesmo aos pequenos agricultores que ainda conseguem assalariar, mesmo que temporariamente, uns quantos safristas. Falo dos que se sentam à mesa, são bem servidos e refestelam-se com o que há de bom e de melhor no banquete do capital, não dos que comem as migalhas que caem da mesa ou as sobras da cozinha. Isto porque, no capitalismo, como já argumentei anteriormente, são hegemônicos aqueles capitalistas que conseguem se relacionar mais proximamente com as condições gerais de produção, e portanto estão em condição de esmagar sua concorrência ou relegá-la a papéis subalternos; os demais, apenas sobrevivem à margem de qualquer possibilidade de sucesso.

Indo ao assunto, veja-se, por exemplo, a porta giratória, ou seja, a ampla circulação de pessoas nos escalões mais altos das empresas privadas e dos órgãos do Estado. Ela se verifica onde quer que haja produção capitalista, com nomes diferentes, mas com modus operandi adaptado à realidade institucional de cada lugar.

Na Coreia do Sul, por exemplo, antes mesmo que a enorme influência de Choi Soon-il e seu culto das sete deusas sobre a presidente Park Geun-hye, do conservador partido Saenuri, tomasse as manchetes em 2016, revelando como as chaebols Samsung, Hyundai, Lotte, SK, LG, CJ, Hanwha e Hanjin obtinham favores governamentais por meio de propinas pagas a fundações e outras entidades controladas pela xamã particular da presidente[1], verificava-se corriqueiramente uma prática chamada jeon-gwan ye-u (“tratamento honorável a colegas aposentados”), por meio da qual juízes e promotores aposentados – inclusive aqueles envolvidos em escândalos de corrupção[2] – que passam a exercer a advocacia recebem tratamento especial por parte de seus ex-colegas ainda na ativa[3].

No Japão, prática muito parecida é conhecida como amakudari (“descida dos céus”): servidores públicos de alto escalão, ao se aposentar, associam-se a empresas de setores diretamente ligados ou de alguma forma conectados à esfera de competência dos órgãos onde trabalhavam, e entram em conluio com seus antigos colegas para ajudar seus novos empregadores a garantir contratos governamentais, evitar inspeções por parte de órgãos reguladores e assegurar tratamento preferencial por parte da burocracia[4]; a prática, com outros nomes, não é desconhecida em outros países de alta industrialização como França, Estados Unidos, Alemanha e Áustria[5]. Ainda que se verifiquem esforços por parte do governo japonês para por fim a esta tradição e que a prática esteja oficialmente banida, desde 2007 os burocratas japoneses parecem estar ganhando a queda de braço, especialmente após as eleições de 29 de julho daquele ano[6]; depois de seu primeiro mandato como primeiro-ministro entre 2007 e 2009, Shinzo Abe e o conservador Partido Democrático Liberal retornaram ao poder em 2012, e a amakudari tem sido o carro-chefe das críticas de seus opositores[7], levando inclusive à demissão de seu vice-ministro da educação, Kihei Maekawa[8] e a uma verdadeira devassa neste mesmo ministério na tentativa de purgá-lo de tais práticas[9].

Nos Estados Unidos, onde surgiu a expressão revolving door (“porta giratória”), a prática é enquadrada como parte dos mecanismos de lobby existentes e regulamentados no país pelo Lobbying Disclosure Act de 1995 e, em menor parte, pelo Bipartisan Campaign Reform Act de 2002 (no que diz respeito ao financiamento de campanhas). O Lobbying Disclosure Act, que substituiu uma lei anterior de 1946 sobre o mesmo assunto, obriga todo lobista – definido como “qualquer indivíduo empregado ou a serviço de um cliente, por meio de compensações financeiras ou de outra espécie, cujo serviço inclua mais de um contato de lobby, exceto aquele cujas atividades lobistas constituam menos de 20 por cento do tempo empregue em serviços providos por tal indivíduo ao cliente num período de três meses” – a registrar-se junto ao Comissariado da Casa de Representantes dos EUA (equivalente à Câmara de Deputados brasileira) e à Secretaria do Senado dos EUA, indicando nome, endereço, telefone comercial, local de trabalho principal e uma descrição geral de seus negócios ou atividades, bem como uma descrição de seus clientes e um breve sumário dos tópicos em torno dos quais pretender exercer a atividade lobista. Dez anos depois de sua promulgação, entretanto, um relatório sobre a reforma do lobismo submetido ao Congresso dos EUA pelo analista R. Eric Petersen indicou a persistência de problemas como “a formação de coalizões e associações cujos membros podem não ser identificáveis” e “o uso de campanhas de mobilização de massa que intentam mobilizar cidadãos para passar a mensagem do cliente do lobista”[10].

No geral, a situação nos EUA é tão conhecida que uma ONG chamada Center for Responsive Politics mantém uma lista atualizada de todos os parlamentares federais estadunidenses que “já passaram pela porta giratória” (ver aqui). Há tantos casos que é impossível comentá-los detalhadamente no espaço de um só artigo. Veja-se o caso de Dick Gephardt, que deixou o cargo de Representante (equivalente ao deputado, no Brasil) para tornar-se lobista. Sua agência de lobby, a Gephardt Government Affairs Group, ganhou cerca de US$ 7 milhões em 2010 de clientes que incluem a Goldman Sachs, a Boeing, a Visa, a Ameren Corporation e a Waste Management Inc.[11]. Outro caso muito comentado é o de Eric Holder, ex-procurador-geral sob a administração Obama, que, assim que saiu de seu cargo, retornou a seu posto no escritório Covington & Burley, prestador de serviços a grandes bancos e instituições financeiras; especula-se que seu posto foi deixado propositalmente vago, no aguardo da volta de seu já conhecido titular[12]. No caso do Partido Democrata, seus ex-parlamentares, ex-secretários e outros gestores públicos de alto escalão fizeram girar tanto a porta rumo aos altos escalões corporativos que mesmo uma central sindical adepta do “sindicalismo de resultados” como a AFL-CIO rompeu publicamente com o partido, sob a alegação de que “há elementos do partido que contribuíram para a divisão deste país entre os 99 por cento contra o 1 por cento”[13]. No lado republicano, Edward C. Aldridge chefiou uma comissão criada por George W. Bush em torno da exploração espacial ao mesmo tempo em que era diretor da Lockheed Martin Corporation, principal fornecedora da NASA, e teve como única oposição à sua nomeação a do senador republicano John McCain, que alegou “conflito de interesse”[14]. O conhecidíssimo Dick Cheney, durante seu período de serviço à frente do Pentágono, fez da Brown & Root Services (BRS), uma empresa de engenharia e construção, uma das maiores prestadoras de serviços às forças armadas estadunidenses, para, em 1995, assumir não apenas um lugar no quadro de direção da Halliburton Company, proprietária da BRS, como também o de maior acionista da própria BRS[15].

Na França, já citada, a pantouflage é prática de políticos que, na sequência de uma derrota eleitoral ou da saída de uma posição ministerial, assumem uma posição com altos salários no setor privado sem responsabilidades de porte, por isto mesmo também conhecida como emploi fictif[16]. Origina-se de uma antiga prática de egressos da École Polytechnique e da École Nationale d’Administration: obrigados por lei a prestar dez anos de serviço público, não poucos optavam por assumir um emprego no setor privado e reembolsar ao Estado o investimento em sua educação – evadindo-se, portanto, do serviço público, mas mantendo intacta a rede de relações com seus antigos colegas, de que se aproveitavam em seus novos trabalhos. Embora o artigo 423-13 do código penal francês estabeleça uma “quarentena” de três anos entre a saída do serviço público e a entrada no setor privado, e apesar da criação em 2013 da Haute Autorité pour le Transparence de la Vie Publique (“Alta Autoridade para a Transparência da Vida Pública”, HATVP), a pantouflage continua sendo prática disseminada na França, como demonstram os casos de Emmanuel Macron, ex-candidato à presidência, que deverá devolver cerca de EUR 50.000,00 aos cofres públicos[17], e a existência de uma ONG chamada Pantoufle Watch, que monitora a prática e expõe os envolvidos (ver aqui).

A planejada transformação da École Nationale d’Administration numa universidade desvinculada do serviço público pode mesmo modificar o sistema da pantoufle[18], mas pouco ou nada pode fazer quanto à tradicional porta giratória na França, pois ela se processa por outros meios. Vejam-se os casos de Benoît Loutrel, ex-diretor-geral da Autorité de Régulation des Communications Électroniques et des Postes (“Agência Reguladora das Comunicações Eletrônicas e dos Correios”, ARCEP), recentemente contratado pela Google France[19]; Julien Pouget, conselheiro econômico de François Hollande que hoje trabalha na Total; Xavier Piechaczyk, conselheiro de transporte e meio ambiente de François Hollande que hoje compõe o conselho diretor da Réseaux de Transport d’Électricité (“Rede de Transporte de Eletricidade”); David Kessler, antigo conselheiro de cultura e comunicação, hoje no Orange Studio[20].

Nem a União Europeia escapa: José Manuel Barroso, ex-presidente da Comissão Europeia, passou ainda em 2016 ao corpo de diretores da Goldmann Sachs[21]; Neelie Kroes, ex-Comissária para a Agenda Digital, está hoje nos conselhos fiscais e diretorias de inúmeras organizações e empresas (Merryl Lynch, McDonald’s, Lucent, Nedlloyd, Ballast Nedam, Salesforce.com, Stichting Pensioenfonds ABP, Nederlandese Spoorwegen, Uber e o Museu Casa de Rembrandt)[22]; Connie Hedegaard, ex-Comissária Europeia para o Clima, integra a diretoria da Danfoss A/S (empresa da área de climatização) e da Volkswagen[23].

Conquanto existam em diversos países leis impositoras de um “período de quarentena” em que um funcionário público não pode participar de cargos dirigentes de empresas privadas (algo entre dois a cinco anos), este obstáculo é muito facilmente superado, por exemplo, mediante a criação de uma empresa de consultoria em que o ex-servidor público não figure como dirigente, mas a partir da qual possa aconselhar outras empresas privadas acerca de como se relacionar com determinado ministério, que postura adotar diante de determinada mudança no marco regulatório do setor (às vezes mesmo antecipando-se a ela) etc. Mesmo que um tal período de quarentena funcione no que diz respeito às relações institucionais entre empresas e Estado, as relações pessoais forjadas entre funcionários públicos e dirigentes empresariais construídas ao longo de anos de convívio são impossíveis de fiscalizar. Aí mesmo, na informalidade das relações pessoais, é que se esboçam as linhas de conduta a serem posteriormente executadas no âmbito institucional. A não ser, é claro, que se considere válido o cenário, certamente absurdo, de fiscalização de casamentos, batizados, aniversários, jantares e festas privadas, visitas pessoais, happy hours, velórios e quaisquer outras oportunidades de interrelacionamento social genérico por parte de burgueses e gestores. Em suma: no capitalismo a porta giratória sempre estará aberta, e sempre haverá quem a ponha a girar.

Diga-se de passagem, como nota final, que a porta giratória sempre foi reconhecida na literatura socialista como elemento necessário ao funcionamento do capitalismo, ao menos na literatura socialista do século XIX e de princípios do século XX. Quem lê as linhas finais deste artigo pode se dar ao trabalho de pesquisar quem introduziu a temática da porta giratória como um problema moral, entre as décadas de 1910 e 1940. Há outras questões ainda mais complexas a discutir sobre a corrupção como modus operandi necessário para o sucesso no capitalismo, mas elas ficarão para um próximo momento.

Notas

[1] Cf. Presidential speeches found on confidante’s PC: report. The Korea Herald, 25 out. 2016; KIM Bo-eun. Investigations into ‘Choi Soon-sil gate’ widening. The Korea Times, 23 out. 2016; ‘It’s actually a system where Choi Sun-sil tells the President what to do’. The Hankyoreh, 26 out. 2016; SALA, Ilaria Maria, STEGER, Isabella. Scary theocracy: A Rasputinesque mystery woman and a cultish religion could take down South Korea’s president. Quartz, 28 out. 2016; FIFIELD, Anna, SEO, Yoojung. South Korea’s presidency ‘on the brink of collapse’ as scandal grows. The Washington Post, 29 out. 2016; DENNEY, Steven. Koreans really hate their president’s secret shamanistic-evangelical advisor. Foreign Policy, 2 nov. 2016. BBC News, 19 dez. 2016; South Korea: Choi Soon-sil handed three-year jail term. Al-Jazeera, 23 jun. 2017.

[2] Cf. CHO Jae-hyon. “Broken Arrow”. The Korea Times, 08 fev. 2012, disponível em http://www.koreatimes.co.kr/www/news/opinon/2015/10/164_104411.html.

[3] Cf. Tougher rules on ex-officials’ hiring to curb cronyism. The Korea Times, 03 jun. 2011; KIM Eul-jung. Former judges, prosecutors offered high salaries from law firms. Yonhap News Agency, 25 abr. 2011.

[4] Cf. JONES, Colin P. A. Amakudari and Japanese law. Michigan State International Law Review, vol. 22, nº 3, 2013, pp. 879-959; MIZOGUCHI, Tetsuro e NGUYEN Van Quyen. Amakudari: the post-retirement employment of elite bureaucrats in Japan. Keio/Kyoto Joint Global COE Program

[5] Cf. DRUCKER, Peter. In defense of Japanese bureaucracy. Foreign Affairs, vol. 77, nº 5, set.-out. 1998, pp. 68-80.

[6] Cf. MATSUMURA, Masahiro. Japan’s bureaucrats vs. Shinzo Abe. The Japan Times, 22 ago. 2007.

[7] Cf. JIJI. Abe once again haunted by ‘amakudari’ issue. The Japan Times, 25 jan. 2017; KATO, Sota. Getting to the root of Amakudari: sweeping reform needed to close the revolving door. The Tokyo Foundation, 13 jun. 2017.

[8] Cf. AOKI, Mizuho. Ministry disciplines seven bureaucrats over ‘amakudari’ corruption scandal. The Japan Times, 20 jan. 2017.

[9] Cf. ‘Amakudari’ scandal widens as education ministry finds new cases. The Japan Times, 21 fev. 2017; YOSHIDA, Reiji. Ex-education official vouches for Kake papers, says he has copies. The Japan Times, 25 maio 2017.

[10] PETERSEN, R. Eric. Lobbying Reform: background and legislative proposals, 109th Congress.

[11] EDSALL, Thomas B. The problem with that revolving door. The New York Times, 18 dez. 2011.

[12] Cf. TAIBBI, Matt. Eric Holder, Wall Street double agent, comes in from the cold. Rolling Stone, 8 jul. 2015; MAURO, Tony, POLANTZ, Katherine. Q&A: Eric Holder Jr. goes ‘home’ to Covington, reflects on tenure. The National Law Journal, 5 jul. 2015.

[13] EDSALL, Thomas B. The problem with that revolving door. The New York Times, 18 dez. 2011.

[14] WAYNE, Leslie. Pentagon brass and military contractor’s gold. The New York Times, 29 jun. 2004.

[15] BRYCE, Robert. Cheney’s multi-million dollar revolving door. Mother Jones, 2 ago. 2000.

[16] Pantouflage : des règles toujours plus strictes dans la fonction publique. La Voix, 27 mar. 2017; PLICHON, Odile. Un coup de pied dans le «pantouflage». Le Parisien, 02 fev. 2017.

[17] LÉVY, Emmanuel. Du public au privé, la très avantageuse pantoufle d’Emmanuel Macron. Marianne, 17 mar. 2017; RABREAU, Marine. Macron va devoir rembourser 50.000 euros à l’État. Le Figaro, 13 nov. 2016.

[18] CORBIER, Marie-Christine. ENA: les règles du «pantouflage» vont changer. Les Echos, 06 mar. 2017.

[19] CHEMINAT, Jacques. Polémique autour du recrutement du DG de l’Arcep par Google France. Silicon, 17 jan. 2017.

[20] COLLOMBAT, Benoît. Du public au privé: le grand manège des hauts fonctionnaires. France Inter, 16 fev. 2017; LÉCHENET, Alexandre. Encore un cas de pantouflage à l’Elysée. Libération, 22 jul. 2016.

[21] Ethique et pantouflage au sein de l’UE: Jean-Claude Juncker veut réformer. Les Voix du Monde, 06 nov. 2016; “Pantouflage” ou “revolving doors”, les liaisons dangereuses finance-politique sous les critiques. Tendances/Trends, 18 nov. 2016; BARBIÈRE, Cécile. Le Parlement réclame de nouvelles règles contre le pantouflage. Euractiv, 5 out. 2016.

[22] VALERO, Jorge. La Commission prête à sanctionner Neelie Kroes. Euractiv, 23 set. 2016.

[23] Retour sur le pantouflage de l’ex-commissaire européenne chargée du climat chez Volkswagen. Mediapart, 8 out. 2016.

1 COMENTÁRIO

  1. Didático e elucidativo, Manolo (ainda) não matou a cobra. Mas (já) mostrou o pau…
    No bom sentido [:-D}]!

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