Um dos mais importantes apontamentos de Mészáros: a maior conquista do capital foi ter tirado do horizonte dos trabalhadores as greves de solidariedade. Por Passa Palavra

Aos 100 anos da Revolução Russa, num mês de Outubro, morre István Mészáros, autor de uma vasta obra no campo da esquerda e que tentou dialogar criticamente com o legado de 1917. Há quem diga que ele era apenas mais uma “modinha” do desprezível mercado editorial “de esquerda” brasileiro. Sua escrita truncada, seus malabarismos conceituais, o tamanho e preço de suas obras: muitas coisas atrapalham que sua vasta obra seja lida e usada pelos trabalhadores. Que contribuição, entretanto, esse badalado pensador deixa para nós?

Em primeiro lugar, Mészáros nos deixa seu exemplo de dedicação pessoal. Enfrentou durante anos uma sequência de problemas de saúde, e mesmo debilitado fisicamente conseguiu sobreviver ao baque de perder sua companheira, Donatella. Desde então dedicou-se exaustivamente à tarefa militante que escolheu para si: concluir algumas obras onde buscaria contribuir, acima de tudo, quanto aos fundamentos teóricos de um marxismo crítico, apto a ser usado como arma nas lutas sociais do século XXI.

Com sua linguagem complexa, de filósofo húngaro escrevendo em inglês e com domínio teórico de um amplíssimo leque de teorias, Mészáros forjou conceitos em alto nível de abstração, o que é bom e é péssimo, pois aquilo que abarca o diverso muitas vezes acaba perdendo a precisão cirúrgica às vezes necessária. O próprio conceito de crise estrutural do capital – a nosso ver bastante frágil – é uma prova dos perigos inerentes a esse tipo de teoria social. Acima de tudo, ele foi um grande filósofo. Fraco em matéria de economia e política, mas um grande filósofo, assim como Lukács, que foi seu “mestre”, e que também era péssimo em economia e política. Diferentemente de Mészáros, Lukács não compreendeu a lei do valor e em política foi um tipo único de stalinista crítico. Já Mészáros só não foi conselhista devido a sua experiência de vida ter se limitado bastante ao universo acadêmico (a despeito de esforços em contrário).

A obra de Mészáros ruma para o autonomismo por causa do modo como ele lê a questão da alienação. Essa categoria, tão importante no desenvolvimento teórico de Marx e no marxismo, é vista enquanto “perda de controle” das forças produtivas. Já o capital, enquanto relação social de controle hierárquico sobre o trabalho. O filosofo via tanto o capital quanto o trabalho enquanto categorias que tomam vida por meio de personas, os homens e mulheres cuja prática social se molda num polo ou outro de um antagonismo social.

Ao dar ênfase teórica e politicamente à “reapropriação das forças produtivas usurpadas pelo capital” ele pôs um pé no autonomismo. A crítica ao bolchevismo, tendo por base a crítica impiedosa ao antigo mestre, Lukács, resvala para a crítica à própria forma partido (o que torna injustificável aqueles que o qualificam como neoleninista) e assim ele quase coloca o segundo pé no autonomismo. Só não chega a fazê-lo devido a opções teóricas e uma prática militante limitada, inclusive devido à idade e ao local onde atuava. Foram os limites dessa prática e a coerência para com uma teoria social aberta que o levaram a evitar as recusas, as condenações de certas lutas ou modelos de organização enquanto “fadados” ao fracasso. Percebe-se isso, por exemplo, quando atentamos para o fato de que mesmo depois de apontar lucidamente os limites históricos da separação entre o “braço político” e o “braço econômico” das organizações dos trabalhadores ele não leva a crítica às últimas consequências, recusando a forma partido e a forma sindicato rumo ao conselhismo. Ao invés disso, mantém as esperanças na capacidade dos trabalhadores reformarem suas próprias organizações clássicas. As razões dessa prática não importam, pois o fato é que mesmo ali onde seus limites se explicitaram sua honestidade intelectual rendeu-lhe bons frutos: na defesa de uma organização reformada não descuida em nenhum momento a tarefa política básica: a reapropriação, pelos trabalhadores, dos poderes socioprodutivos historicamente usurpados pelo capital. Como percebia que era isolado e academicista se forçou a ter um “sujeito historicamente identificável” capaz de levar a cabo as tarefas positivas que a crítica teórica negativa (por ele elaborada) apontava, ou seja, sentiu a necessidade de apoiar e estar politicamente ligado a alguém. Recusou-se a ser mais um Adorno a lançar mensagens dentro de garrafas ao mar. Dado esse imperativo prático, saiu apoiando coisas distintas, que ele amarrava graças a ter uma teoria feita num nível altíssimo de abstração. Apoiou, por exemplo, movimentos sociais, em especial o MST brasileiro, e Hugo Chaves na Venezuela… As lutas e forças sociais que Mészáros apoiou, ele o fez com toda sinceridade que se espera de um militante. Apesar de seus limites (quem não os tem?) foi um pensador crítico, que apoiou o que apoiou por falta de informação e de tino político, e não por malícia ou interesses vis. Além disso, e isso é muito importante, apoiou quem apoiou porque abominava a ideia de ser mais um a dizer que “tudo que está aí não presta, façam assim e assado”. Sua abordagem do imperialismo era rasa, uma leitura superficial de Magdoff, Barratt-Brown, Braverman, Sweezy, Baran e Ellen Wood, o que lhe limitou o alcance das análises. Foi, acima de tudo, um camarada esforçado, que mais pode-se pedir de um militante?

A mensagem principal que ele deixa em política é a necessidade de uma luta ofensiva, que não seja por meras concessões, demandas integráveis que reforçam o controle do capital por sobre os trabalhadores. Ele chega a essa questão tecendo uma boa crítica à experiência pós-capitalista soviética, o que não deixa de ser um grande feito, devido aos caminhos que trilhou e as influências que teve. Em economia a principal contribuição desse pensador é a lei tendencial à queda da taxa de uso, um desenvolvimento bastante coerente da questão da obsolescência programada das mercadorias, articulado a uma leitura dos limites históricos da “capacidade civilizatória do capital”. Tanto em política quanto em economia ele se prendeu muito ao padrão da mais-valia absoluta e seus mecanismos próprios, o que limitou seu leque crítico impedindo-o de perceber a natureza profunda das estratégias de modernização capitalista das relações sociais desde os locais de trabalho até as grandes questões de política internacional. Também Lukács não compreendeu os mecanismos da produção de valor via mais-valia relativa, entendendo que se a produção libera necessidade de trabalho isso é em si algo positivo – tanto que defendeu (ou pegou leve na crítica) a exploração dos trabalhadores soviéticos: a despeito da exploração estariam construindo um mundo material de riquezas a serem retomadas pelos trabalhadores num sistema comunal. Daí o pior Socialismo ser melhor que o melhor Capitalismo: faltaria apenas uma revolução política que retomasse o leme da revolução (aqui há uma curiosa aproximação entre Lukács e Trótski, para desespero de alguns). Já Mészáros, embora não tenha adentrado senão marginalmente na análise dos mecanismos da mais-valia relativa, jamais deu concessão alguma à exploração dos trabalhadores, seja no Capitalismo, seja no Socialismo ou, como ele chamava, pós-capitalismo soviético.

Concluímos esta nota lembrando um dos mais importantes apontamentos de Mészáros: a maior conquista do capital foi ter tirado do horizonte dos trabalhadores as greves de solidariedade. Uma homenagem a este camarada, que morreu do nosso lado da barricada, seria Universidades (onde ele é mais conhecido e lido) entrarem em greve a favor, por exemplo, da luta que atualmente ocorre da UERJ. Aliás, uma bela homenagem já está em marcha: no dia de sua morte o refeitório (bandejão) da UERJ volta a funcionar, autogerido pelos estudantes. Mészáros sorri, porque a luta continua.

8 COMENTÁRIOS

  1. que belo reconhecimento. um tapinha nas costas com uma das mãos e uma bofetada com a outra.

    mas essas coisas são assim… mesmo que o sujeito escreva mais de vinte livros contra o capital, ele ainda assim vai ser chamado de raso, superficial, fraco e, desgraça das desgraças, academicista.

    realmente, o nível de exigência do militante de esquerda brasileiro médio, que rarissimamente produz alguma coisa importante no plano da teoria, só é superado por sua soberba, pretensão e arrogância.

  2. Entendo que foge ao escopo desse artigo uma crítica mais aprofundada a Meszaros.
    De todo modo, me pareceu um pouco indelicado algumas críticas ao filósofo húngaro sem o devido aprofundamento.

    Tarefa para futuros ensaios.

    abç.

  3. Acredito que essa é a melhor forma de homenagear um teórico verdadeiramente revolucionário, despindo-se totalmente das condescendências e conveniências de praxe por ocasião de sua morte.

  4. Desde muito que considero Mészáros muito bom quando utilizamos os seus escritos contra as correntes externas ao marxismo (liberais e social-democratas principalmente). Mas de bem menos serventia para um debate entre proletários com consciência comunista. Nesse sentido, a linha da nota (necrológio?) do Passa Palavra me parece acertada.

  5. Imaginem um partido ou sindicato leninista ou trotskista ou gramsciano brasileiro lançando uma nota face à morte de algum pensador do campo autonomista onde chama de “um dos nossos” a um autor cuja obra e cuja prática militante confluiu em tão poucos pontos como confluiu a obra e a prática de Mészáros em relação à linha política do Passa Palavra. Conseguem imaginar?

    Mészáros acreditava na reforma das formas clássicas de organização do proletariado. O Passa Palavra acha isso pura ingenuidade.

    Mészáros via com simpatia a agroecologia. O Passa Palavra vê como uma experiência próxima ao fascismo.

    Mészáros defendia que o Capitalismo está em crise estrutural. O Passa Palavra vê o Capitalismo a todo vapor.

    Mészáros via o Imperialismo como algo muito próximo a um embate de nações em tempos de capital transnacional, justamente por ter se baseado naqueles autores que a nota menciona. O Passa Palavra acha anacrônico falar em nações e só fala em empresas, se baseando muito mais nas análises do The Economist (abominado por Mészáros) do que em qualquer autor que tenha abordado o imperialismo.

    Mészáros via a exploração de hoje como suor escorrendo, como volta a patamares historicamente superados de exploração (novo escravismo etc). O Passa Palavra vê a exploração de hoje como operários com PhD, vestidos de branco em setores de P&D de empresas de ponta. (Daí, creio, a nota falar em mais-valia absoluta num lado e relativa no outro).

    Mészáros via a URSS como pós-capitalista, baseado em filosofia de alta abstração (o conceito de capital, o sistema sociometabólico etc). O Passa Palavra preocupa-se em traduzir autores desconhecidos da extrema-esquerda anti-bolchevique que apontavam aquilo como Capitalismo de Estado desde os anos 1920, por aí.

    Mészáros via o Capitalismo de hoje como barbárie, como não tendo “nada mais a oferecer à humanidade” a não ser o espectro da destruição nuclear. O Passa Palavra vê o Capitalismo de hoje como um sistema plástico, onde os trabalhadores constroem em suas lutas assimiladas as janelas que tiram o capital das crises, portanto um sistema onde a criatividade dos trabalhadores tira o capital da crise e o reforça, sempre que a luta não consegue se converter em revolução, o que ocorre, inclusive, por meio de inovações científicas, modernização.

    As diferenças são muitas, beirando sempre ao antagonismo de visões, e no entanto este coletivo soube reconhecer neste autor de raiz e de ideias e de práticas tão distintas às suas, um companheiro que morreu do mesmo lado da barricada. Parabéns ao coletivo por fazer algo que a esquerda brasileira jamais faria. Até porque a grande maioria dela tem o problema não da “soberba, pretensão e arrogância” (quem dera), e sim do narcisismo, do isolamento (cada um no seu quadrado, mesmo em termos de debates teóricos), da catequese. A maioria da esquerda brasileira sequer conseguiria redigir uma nota sobre algum autor de uma matriz de pensamento distinta a este nível, pelo simples fato de que não leem “os outros” e se contentam em ser o que via de regra criticam em notas e comunicados e seminários: seitas.

  6. Mészáros retoma a ideia de revolução permanente de Marx e Engels e procura desenvolvê-la a partir de uma reflexão influenciada sobretudo por Rosa Luxemburgo. Essa influência se dá não só na parte política da sua teoria, mas sobretudo na sua base econômica. Isso só pra início de conversa…. Se juntarmos O Poder da Ideologia e Para Além do Capital, que são onde essas ideias basicamente se assentam, temos aí, assim, por alto, umas 500 páginas onde são desenvolvidos os argumentos. 500 páginas. Mas nem isso o livra do carimbo de superficial, fraco, raso, isolado, academicista, e, agora mais essa, simpático da agroecologia (!!). Por que, afinal, não resumir tudo numa única palavra: Mészáros, no fim das contas, é burro. Um burro bem intencionado, claro, amigo nosso, um dos nossos, mas acima de tudo um burro. Inteligentes são a meia-dúzia de gatos pingados que escrevem estas belezuras de textos e comentários…

    A construção argumentativa dominante na esquerda se orienta, desgraçadamente, a partir destas coordenadas: mostrar que o outro é burro (com uns eufemismos bem escolhidos, uma espécie de tapinha nas costas) e que inteligente sou eu (ou “nós”, a nossa organização…). Tudo o que não é “nós” ganha o fatídico adjetivo depreciativo. Não se pode, assim, por mera prudência intelectual, ser reticente, deixar a interrogação em suspenso, expressar uma dúvida sobre um tema complicado, colocar um “talvez” no ar. Não! Tem que cravar a certeza. É isto! Aqui o caminho! E pronto. E faz-se de conta de que está tudo claro, todos os assuntos resolvidos, todas as dúvidas sanadas, o real totalmente apreendido. Só não se sabe como é que, depois disso tudo, a revolução socialista ainda não estourou no Brasil (por falta de clareza teórica e de formação política é que não deve ser…).

    Agora, o mais curioso de tudo isso é o seguinte: as organizações de esquerda rotulam, espezinham, excluem, maltratam, pisoteiam, destratam, escanteiam, criticam superficialmente e ISOLAM os seus próprios simpatizantes, partidários e militantes, para depois dizer que…. eles se isolam! Eles fazem seitas! Eles são narcisistas! Talvez um dia alguém possa, quem sabe, aventar a bizarra possibilidade de que seja a própria dinâmica de produção e reprodução do capital que fragmente e isole a classe trabalhadora, e que isso se expressa até mesmo dentro das organizações de esquerda (inclusive entre os mui nobres e respeitáveis publicantes deste insigne Passa Palavra blogue de comunicação de massas…)

    A classe trabalhadora, as suas organizações, os militantes de esquerda, todos nós, meus amigos, estamos afundados na merda até o pescoço. Mas tem gente que consegue ser arrogante e presunçoso até mesmo na merda!!

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