Por Leo Vinicius
O que a publicação de livros pode nos dizer sobre a história da esquerda no Brasil? Talvez seja essa uma das principais perguntas implícitas no mais recente livro de Lincoln Secco, A Batalha dos Livros, lançado pela Ateliê Editorial no final de 2017.
Lincoln Secco é professor de História Contemporânea da USP e tem se destacado nos últimos anos também como um dos principais e mais lúcidos intelectuais públicos da esquerda brasileira. Um comunista com distanciamento crítico do comunismo, um petista com distanciamento crítico do PT, um autonomista com distanciamento crítico das correntes libertárias, ele consegue assim ser provavelmente o analista mais perspicaz das limitações e impasses da esquerda na nossa conjuntura política e social.
Evidentemente os recortes feitos por um pesquisador, quanto mais por um historiador, refletem suas afinidades eletivas, interesses e sua própria história. A Batalha dos Livros não é diferente nisso. É o próprio autor que nos diz que sem sua própria história esse livro não seria possível, o que nos diz também que o livro também é em alguma medida um livro sobre sua história. Nas suas palavras, esse livro não teria ganho existência “sem uma experiência política que me colocou em contato com militantes de várias gerações” (p.28).
Lincoln não esconde nas páginas de A Batalha dos Livros a sua própria paixão pela literatura de esquerda, trazendo ao leitor, vez ou outra, suas desventuras como arqueólogo de sebos. Nas imagens de livros escolhidas pelo autor, que também dão conteúdo à obra, pode-se ver alguns deles com a assinatura ou dedicatória ao próprio.
A proposta do livro é ousada na amplitude. Traçar os esforços de publicação e divulgação de ideias e de formação de socialistas, anarquistas e comunistas no Brasil, do século XIX aos dias de hoje. Em uma pesquisa a escolha pela amplitude implica normalmente em deixar em segundo plano a profundidade de cada tópico ou momento. A Batalha dos Livros nos traz uma visão geral, e inédita enquanto tal.
O livro se divide em cinco capítulos, em meio aos quais a história do PCB e de suas publicações ocupam a maior parte. O PCB de certo modo aparece ao leitor como protagonista ao longo do livro, mas nos resta a dúvida de até que ponto o espaço dado ao PCB corresponde a todo o seu protagonismo e peso na história da esquerda brasileira e de suas publicações, e até que ponto também é fruto das escolhas e possibilidades efetivas do pesquisador a partir de sua própria história. Por exemplo, ficamos nos perguntando do porquê os esforços editoriais trotskistas nos anos 1930 não terem sido abordados para além de um gráfico em apêndice, apesar do próprio autor destacar que o trotskismo não era insignificante em São Paulo, podendo até “mesmo suplantar a importância do PCB” (p.94).
O primeiro capítulo aborda o socialismo e o anarquismo do século XIX ao início do século XX. Os capítulos dois e três focam o comunismo, através do PCB. O capítulo seguinte nos leva do PCB antes do golpe de 1964 até o início dos anos 1990, período em que a predominância do PCB na esquerda vai perdendo espaço para novas organizações e particularmente para o PT a partir dos anos 1980. No último capítulo, com o título Autonomia, Lincoln Secco elege, para além do PT, movimentos de tendência autonomista que caracterizaram ou ao menos iniciaram o chamado Junho de 2013.
Nosso autor lança uma questão muito interessante. Se num país de então maioria analfabeta, anarquistas e comunistas mesmo com imensas dificuldades financeiras se esforçavam para publicar jornais e livros, o que fizeram o conjunto dos partidos de esquerda atuais com suas verbas do Fundo Partidário, do qual 20% do valor deve ir para formação política/ideológica? Lincoln Secco se pergunta se essa que é a maior infraestrutura intelectual da história da esquerda brasileira — um orçamento de oito milhões de dólares — foi aproveitada.
Com a maior estrutura material da história, a esquerda perde a olhos vistos, pelo menos desde a última década, a luta por hegemonia na sociedade. É comum até falarmos de uma “onda conservadora”. Como nos lembra Lincoln Secco quando trata das primeiras décadas do século passado, “muitos operários se convertiam pela ação e não pela literatura” (p.73). Temos aqui o paradoxo da versão brasileira do gramscianismo. Quanto mais a esquerda tomou o Estado e focou energia nessa conquista — pela via da (não-ação) eleitoral — maior foi o orçamento/estrutura para formação política a ideológica e ao mesmo tempo mais espaço se cedeu à hegemonia burguesa na sociedade. Lincoln Secco também aponta que o trabalho de base de alguns pequenos movimentos sociais de esquerda sem estrutura parece ter tido mais impacto social que esse orçamento milionário dos partidos. Sem pretensão de diminuir a importância de mudanças nas relações de trabalho e na organização da produção que fizeram a esquerda perder espaço na sociedade, o fato é que, à medida que a tática eleitoral ganhou hegemonia na esquerda em detrimento da ação e do trabalho de base, a esquerda se distanciou de uma hegemonia na sociedade. Uso aqui hegemonia no sentido gramsciano, ou pelo menos na interpretação de Gramsci mais corrente no Brasil e no próprio PT. Conceito ligado à atuação na sociedade civil, à disputa cultural na sociedade, e não ao Estado. No caso da esquerda, para construção de uma hegemonia da classe trabalhadora, isso requer uma relação pedagógica que difunda sua visão de mundo, estabeleça um senso crítico que rompa com o senso comum, para continuarmos usando conceitos gramscianos na sua versão brasileira corrente.
Que uma campanha eleitoral levada a sério em grande parte seja realizada com base no senso comum, ajudando assim a reforçá-lo, em vez de romper com ele (definitivamente não se ganha voto indo contra o senso comum estabelecido), parece que não foi suficiente para que não tentassem utilizar Gramsci no Brasil como uma racionalização para uma política social-democrata de tomada do Estado pela via eleitoral.
Depois de uma vitória eleitoral — reforçando o senso comum e a visão de mundo burguesa — o orçamento e a estrutura naturalmente servirão em grande parte para a reprodução das posições conquistadas nos aparelhos do Estado (ou mesmo nos aparelhos sindicais). Ou seja, voltar-se-ão para as necessidades inerentes à lógica eleitoral. A luta por hegemonia tende assim a ficar a encargo dos “sem-orçamento”, que se mantêm fora dessa lógica.
Os anarquistas, que são alguns desses, continuam hoje, como há cem anos, sendo presos e tendo seus livros apreendidos como prova de crime pela polícia[1]. A Batalha dos Livros não nos faz esquecer.
Livros só são perigosos sob a prova real da ação. A práxis associada a eles é que lhes dá importância política. A batalha com livros continuará…
Nota
[1] Em 2013 a Federação Anarquista Gaúcha (FAG) teve espaços seus invadidos pela polícia e livros apreendidos, sob o governo de Tarso Genro (PT). Em 2017 novamente a polícia invade espaços anarquistas e apreende livros em Porto Alegre.
“Quanto mais a esquerda tomou o Estado e focou energia nessa conquista — pela via da (não-ação) eleitoral — maior foi o orçamento/estrutura para formação política a ideológica e ao mesmo tempo mais espaço se cedeu à hegemonia burguesa na sociedade”. Esta conclusão, guardadas as devidas especifidades, também não se aplicaria ao “mundo acadêmico”? Ou seja, “quanto mais a esquerda intelectual (ou não) conquistou espaços acadêmicos e focou energia nessa conquista, maior foi o orçamento/estrutura (estatal) para formação política e ideológica, ao mesmo tempo mais espaço não se teria cedido à hegemonia burguesa na sociedade”?