Por FE
Acaba de chegar aos cinemas brasileiros o filme que está sendo descrito como “o Exorcista desta geração” e sendo colocado no mesmo patamar de outros clássicos do terror como O Bebê de Rosemary e O Iluminado: Hereditário.
O filme, que em certos momentos lembra o estilo de O Sacrifício do Cervo Sagrado e contém elementos em comum com A Bruxa, ambos produzidos pelo mesmo estúdio, o A24, não decepciona e dá novo fôlego ao gênero, ultimamente tão desgastado por uma infinidade de filmes de baixo orçamento e baixa qualidade do subgênero found footage ou por franquias caras e intermináveis como Invocação do Mal, que cada vez mais se limitam a dar uma nova roupagem à mesma coisa.
Tanto em O Sacrifício do Cervo Sagrado como em A Bruxa, e agora em Hereditário, nos deparamos com uma família sendo aterrorizada e desestruturada progressivamente pelo inexplicável, que nos três se apresenta de modo um tanto ambíguo: não sabemos ao certo, pelo menos até certo ponto, se são os personagens enlouquecendo ou se é o Mal realmente se manifestando. Essa ambiguidade é maior nos dois primeiros e menor neste, pelo menos até o final, quando o personagem Peter (Alex Wolff) fala para si mesmo, quando já está claro que não haverá escapatória: “eu só preciso acordar”.
Nos dois primeiros, porém, a família é desestruturada a partir de fora (o parente de uma vítima de negligência médica em busca de vingança, em O Sacrifício do Cervo Sagrado, que não sabemos como possui os poderes que diz possuir, e o isolamento, a fome ou o risco dela, e a vida dura numa natureza selvagem possivelmente envolta pelo sobrenatural, em A Bruxa). Desta vez a família é desestruturada por dentro, deliberadamente, de modo cuidadosamente planejado a longo prazo. Ellen, a matriarca da família em Hereditário, é a rainha de uma bizarra sociedade satânica e manipula sua família para seus próprios fins. Como na antiga sociedade patriarcal, onde o pai podia, por exemplo, vender seus filhos como escravos, aqui a família consiste numa oferenda para uma entidade diabólica, um dos demônios que governa o Inferno, Paimon, para vencer a morte e obter na nova vida riquezas e glória.
E como a sucessão é matrilinear, ela só pode ser transmitida a uma mulher, repousando a escolha na inocente e obediente Charlie, a preferida da matriarca, a única a sentir a sua falta e não sentir alívio com sua morte. O genro Steve (Gabriel Byrne), que tenta até o final manter o bom senso e o autocontrole, ao lado da filha de Ellen, Annie (Toni Collette), são pessoas cheias de ressentimento com relação à personalidade dominadora e manipuladora de Ellen, ao passo que o neto Peter, também demonstrando alívio com a morte da avó, está mais interessado em conquistar uma colega de classe e se drogar, como uma válvula de escape para a infinidade de mágoas que perpassam o núcleo familiar. Apenas Charlie se lamenta e pergunta numa cena, desautorizando e desmoralizando todos os outros: “agora quem vai cuidar de mim?”
O destino dos homens está traçado desde o início, embora isso só seja revelado ao final: não podem ser membros do clã, e em determinada cena o próprio neto de Ellen é literalmente “expulso”, pela pronúncia de palavras mágicas. Annie, por sua vez, por resistir ao domínio da matriarca, por tentar salvar seu filho e preservar sua família, e por resistir às tentativas da misteriosa e também manipuladora Joan, de iniciá-la no culto, terá destino semelhante: será levada, de uma forma ou de outra, a conduzir sua família para o abate.
Tudo isso numa narrativa tensa e capaz de nos prender até o último momento, tensão esta agravada pela excelente trilha sonora, e que nos faz mergulhar num mundo verdadeiramente aterrorizante, com personagens psicologicamente complexos, interpretados por um elenco excepcional, e reviravoltas inesperadas.
Resta avaliar se o filme, como tem sido dito, pode ser considerado uma obra-prima, um novo clássico. Creio que sim. O verdadeiro terror é aquele que ativa, em nossas mentes, tensão e pavor com relação à própria sociedade que nos cerca, com relação a violências que todos (incluindo nós mesmos) são capazes de cometer, com relação à loucura a que todos (incluindo nós mesmos) podem sucumbir, e Hereditário tem a capacidade de nos amedrontar com o Mal que pode vir de pessoas próximas que às vezes julgamos vulneráveis.
Nesse sentido, a cena da terapia de grupo serve para estabelecer a falecida vilã da trama, para nós que a vemos através do olhar de sua filha em luto, como uma pessoa vulnerável: uma idosa doente mental, o tipo de pessoa que estamos acostumados a classificar na categoria dos oprimidos, potenciais ou não.
Esse filme nos alerta para os perigos do dogmatismo, para o fato de que a opressão e a exploração podem vir de onde menos esperamos, e nos aterroriza com a possibilidade de as mais potenciais vítimas da violência serem elas quem de fato nos violente. Ele nos ensina a estar em alerta.
E por falar em hereditariedade…:
“Afora isso, Bachofen tem evidente razão quando afirma que a passagem do que ele chama de “heterismo” ou “Sumpfzeugung” à monogamia realizou-se, essencialmente graças às mulheres. Quanto mais as antigas relações sexuais perdiam seu caráter inocente primitivo e selvático, por força do desenvolvimento das condições econômicas e, paralelamente, por força da decomposição do antigo comunismo, e da densidade cada vez maior da população, tanto mais envilecedoras e opressivas devem ter parecido essas relações para as mulheres, que com maior força deviam ansiar pelo direito à castidade, como libertação, pelo direito ao matrimônio, temporário ou definitivo, com um só homem. Esse progresso não podia ser devido ao homem, pela simples razão, que dispensa outras, de que jamais, ainda em nossa época, lhe passou pela cabeça a ideia de renunciar aos prazeres de um verdadeiro matrimônio por grupos. Só depois de efetuada pela mulher a passagem ao casamento sindiásmico, é que foi possível aos homens introduzirem a estrita monogamia — na verdade, somente para as mulheres.” (Friedrich Engels – A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado disponível em https://www.marxists.org/portugues/marx/1884/origem/cap02.htm)
Adorei a crítica!!!!