Por Luis Mattini
A Nathalie
que já deve ser
uma bonita jovem avó
Luis Mattini é o nome de guerra de Juan Arnol Kremer Balugano (Zárate, 1941), ex-dirigente do ERP, braço armado do Partido Revolucionario de los Trabajadores – a principal expressão das influências guevaristas na Argentina dos anos 60 e 70. Em 1977, após o derradeiro golpe militar de 76, vai ao exílio e retorna ao seu país 10 anos depois, com a abertura democrática já estabilizada. Publicou relatos e memórias de militância, incluindo balanços sobre a estratégia guerrilheira e a política contemporânea. Os dois contos traduzidos e publicados aqui são parte de seu primeiro livro de contos, “El asalto al banco y otros cuentos”, publicado pela editora Marat (Buenos Aires, 2017), no qual o antigo militante mistura ficção com episódios biográficos de suas aventuras “setentistas”.» Por Primo Jonas, tradutor dos contos.
A reunião do Comitê Europeu de Solidariedade com a Argentina aconteceria em Paris. Jacinto, agora um ativista argentino exilado em Madri, vestiu algo abrigado, terminou de arrumar a mochila de viagem, uma bolsa discreta e elegante, conferiu o passaporte e o dinheiro e se dirigiu à Chamartin para tomar o expresso noturno Madri-Paris.
Esse trem tinha vagões de assentos de primeira e segunda classe, vagões com camarotes e com cuchetas, palavra que é um argentinismo, trazido do francês, para nomear a muito castelhana litera [beliche]. Jacinto tinha um leito reservado. Em geral os leitos estavam, ao menos naquele tempo, instalados em compartimentos coletivos de seis lugares e mistos, três de cada lado, um sobre o outro. Contavam com uma manta leve e um travesseiro, e tinha que se dormir de roupa pois não era permitido tirá-la; o máximo que se podia tirar era o casaco, talvez a gravata e os sapatos. Esta é a diferença com os camarotes, que não são mistos, salvo para famílias ou casais, reservados e com camas, lençóis e até pia.
O que mais fascinava Jacinto neste expresso era que na fronteira Irun-Hendaya, já na cidade francesa, trocavam as rodas dos vagões dormitórios devido à diferença entre a largura da via espanhola e da europeia. “Trocar as rodas de um trem inteiro” no meio da viagem pode soar um delírio. No entanto, o que realmente se troca são os dois bogies de cada vagão, composto de entre oito e doze rodas cada um. Em outra oportunidade, Jacinto ficou acordado durante a noite para tentar observar, pela janela, tal manobra. Comprovou que os franceses levantavam simultaneamente oito vagões e trocavam seus bogies em vinte minutos. Era bastante impressionante a eficiência da técnica francesa. Em outros casos, ou seja, em outros tipos de expressos, era necessário descer do trem, mas neste expresso quem tivesse passagens de leito ou camarote não seria acordado à meia-noite, que era a hora da travessia da fronteira.
Ao entrar em seu vagão já estavam presentes todos os ocupantes de seu compartimento, dois homens espanhóis, duas damas da mesma nacionalidade e uma bonita jovem que parecia estrangeira, digo, não hispânica. Os espanhóis já haviam ocupado os leitos inferiores de forma que ficaram as duas superiores para Jacinto e a moça. Quando ficaram sós no corredor foi a oportunidade para entrar em contato. Jacinto se apresentou em castelhano, mas disposto a improvisar qualquer outra língua europeia, ainda que fosse por sinais. No entanto ela lhe respondeu em um castelhano fluído, com um sotaque bem francês. Se chamava Nathalie e contou que era francesa nascida nos Estados Unidos. Era loira, como uma típica gringa santafesina: olhos verdes, boca pequena mas de lábios perfeitamente formados e sensuais; expunha um sorriso adornado por uns dentes bem brancos e tentadores; não se escondiam os generosos peitos bem formados; era quase alta e com cadeiras seletivamente delineadas; escassa maquiagem e uma notável simplicidade na vestimenta, blusa e uma saia longa. Levava também um xale para o frio noturno e uma modesta bolsa de mão. Disse que vivia em Paris e que estava na Espanha por poucos dias, mas não explicou para quê. Quando ele comentou que era argentino ela perguntou, com certo tom zombeteiro, se ele dançava tango, ferindo assim a suscetibilidade de seu vizinho de leito. Mas este deslize de vulgaridade foi compensado em seguida com uma demonstração de cosmopolitismo e liberalidade ideológica encantadora. “Será uma sartreana?”, pensou o homem que nunca se soltava do militante e para quem Paris era a terra do filósofo existencialista.
O trem avançava de forma decidida já havia um bom tempo e já se podia ver as luzes da periferia de Madri. Neste momento passou o guarda entregando a documentação retida – já revisada – e quase ao mesmo tempo apareceu um garçom anunciando o primeiro horário para a janta no vagão-restaurante. Os espanhóis dentro do compartimento abriam suas bagagens de mão e se serviam de suas próprias provisões: linguiças, tortilhas, presunto cru ou curado, pão e vinho, e se preparavam para um banquete improvisado. Ela não demonstrou trazer consigo qualquer lanche, como tampouco Jacinto. Então se atreveu:
– Você gostaria de comer no restaurante?
Ela respondeu com a franqueza racional francesa:
– Não, eu não tenho dinheiro suficiente para pagar uma comida de restaurante a bordo.
– Pois disso não se fale, eu te convido, além do que, é dever de um tangueiro argentino convidar uma dama.
A moça sorriu com uma graça inesperada e não enrolou. Foram para o vagão-restaurante. Atravessaram vários vagões, ela na frente, e ele podia apreciar sua silhueta excitante ao andar com esse imperceptível movimento de cadeiras que só mulheres muito sutis podem conseguir, na sua cabeça começaram a dançar desejos fantasiosos. Quando chegaram ao restaurante havia várias mesas vazias, com os menus disponíveis.
– Comecemos com as bebidas, antes que elas terminem – disse o homem pretendendo uma piada para empatar o lugar comum dela sobre o tango.
Ela não escutou ou não entendeu a piada.
– Eu gostaria de um vinho tinto da marca que você escolha porque você é hispânico.
Brindaram com um discreto vinho de La Rioja e Jacinto aproveitou para olhá-la diretamente nos olhos; na verdade se tratava de ver através destes olhos verdes, tão comuns e tão peculiares ao mesmo tempo. Ela sustentou o olhar com tanta soltura que o homem vacilou um pouco e as palavras do brinde foram um balbucio ininteligível sobre as quais ela teve a delicadeza de não indagar. Além do que, seu castelhano não era perfeito, mas a novidade era poder seguir com a mesma fluidez o castelhano com o uso do vos no lugar de tu, mais concretamente essa forma quase de dialeto argentino.
Nathalie teve a discrição de não lhe perguntar pelas razões que o levavam à Espanha, nem por que viajava a Paris, pediu sim que ele contasse coisas de Buenos Aires, por que a avenida Corrientes era tão famosa e por que os argentinos eram considerados os mais copetudos da América do Sul.
– Copetudos? De onde você tirou essa palavra que já ninguém usa?
– Arrogant? Vaniteux? Prétentieux? É o mais parecido a copetudo. Os argentinos não usam? Eu a escutei de uns chilenos que falavam sobre os argentinos. Disse isso com tanta graça e falta de malícia que o homem se emocionou até os ossos. Tomou sua mão com decisão e foi como um contato elétrico. Sim, claro, não é uma expressão muito engenhosa, mas não encontro outra. Porque realmente não há outra, é eletricidade, dessa que não sei por que chamam estática, se de estática não tem nada. Com efeito, ela não apenas não se retraiu, como se estremeceu. As palavras começavam a sobrar.
Saboreavam a comida, era boa e o vinho excelente, na opinião da francesinha, o que já é bastante. Falaram de arte, pintura, arquitetura e literatura, das relações humanas, roçaram a política, mas se orientaram para as semelhanças e diferenças culturais entre diversas comunidades. Claro que também de amor, namorados, amantes, erotismo e diversidade sexual. Neste tema ela o surpreendeu comentando com total soltura:
– Tive relações amorosas íntimas com mulheres, algumas muito emocionantes, de erotismo fino e de muito prazer. Gosto, sim, gosto muito, mas gosto muito mais de fazer amor com homens que me interessem, que valem a pena, que não sejam machistas.
Jacinto botou seus olhos sobre os olhos dela com um olhar que dizia “eu valho a pena?”, mas não disse uma palavra porque se lembrou que é um lugar comum que todos os homens neguem serem machistas. De repente o dever o atravessou e se lembrou da reunião que teria no dia seguinte em Paris, um choque que era como um chamado de atenção, como uma repreensão luterana que lhe recordava que essa não era uma viagem de prazer. Por alguns instantes listou de memória as pessoas que estariam presentes; todos militantes argentinos da chamada “nova esquerda”, exilados, uns mais rígidos que outros e, o que era pior, de duvidosa sinceridade nestas questões, nestas questões do desejo. Imaginou como lhe criticariam este luxo burguês de jantar em um vagão-restaurante com uma desconhecida francesa. Teria que explicar que ele, sendo engenheiro, residente ilegal, ganhava suas pesetas espanholas vendendo bijuteria nas ruas de Madri e que pagaria esta janta do próprio bolso.
Terminaram a janta, tomaram seu tempo com o café e ele enrolava para levantar-se da mesa porque sentia que era um território neutro, ela parecia submissa, como que dizia sim para tudo, apenas parecia, finalmente se decidiram, se levantaram da mesa e se dirigiram ao compartimento. Em várias oportunidades ele tomou sua mão com o pretexto de ajudá-la atravessar os vínculos entre dois vagões. Ao chegar, observaram que os demais ocupantes haviam apagado a luz e pareciam já dormir. Claro, eles estiveram mais de duas horas no restaurante. Nathalie foi ao banheiro que estava na extremidade do vagão e Jacinto acendeu o último cigarro, e então foi ao banheiro de homens, na outra extremidade. Depois, de volta ao compartimento, cada um subiu ao seu leito. Estavam separados pelo corredor, mas a parte acima da porta tinha como uma passagem, na verdade era um lugar onde ia bagagem e estava coberto de malas quase até o teto. No outro extremo, sobre a janela, cruzava também um lugar de bagagem comum, muito ocupado.
Ambos tinham já tirado os sapatos e entraram vestidos cada um em seu leito, suspiraram e apagaram as luzes individuais. Abaixo se escutava mais de um ronco sobre os ruídos do trem que já superava os cem quilômetros por hora. Se olhavam na escuridão, bem, na verdade adivinhavam seus olhares carregados de erotismo acumulado na janta e ativado na caminhada pelos corredores. Jacinto sentia seu corpo aceso e não podia tirar da cabeça o segredo deste corpo que estava deitado a menos de um metro de distância, separado por um maldito corredor.
De repente, ela estendeu o braço em direção ao homem, que estendeu o seu e as mãos se encontram no meio de espaço. Queimavam. Eros entrou por seus dedos, percorreu seu braço, fez um montão de piruetas ao redor do coração e se esparramou pelo corpo inteiro. Isso foi o que ela lhe transmitiu pelo contato da mão, o desejo transportado e, como se sabe, não existe melhor afrodisíaco que o desejo do outro.
Estavam atravessando por Aranda de Duero, pleno território espanhol, lugar que Jacinto tinha tido a oportunidade de conhecer, pois ali tinha sido realizada uma das reuniões de solidariedade com a Argentina. O trem aumentava de velocidade sem poder evitar os bamboleios brutais e os golpes constantes nas vias desta já antiga engenharia sobrevivente da guerra civil que fazia estremecer o vagão. Outra coisa seria atravessar a fronteira e encarar a perfeição dos trilhos franceses. Jacinto sabia que estava a ponto de cometer uma loucura, mas Eros também é loucura e se encorajou ao lembrar-se da frase de Luis Franco que diz que a do amor é a única loucura lúcida. Soltou a mão da moça e agarrou uma das malas que sobressaiam no bagageiro sobre a porta e a colocou em sua cama, logo uma segunda e uma terceira e então considerou suficientemente livre. Com um cuidado extremo começou a engatinhar sobre o bagageiro para cruzar para a outra cama, no meio da escuridão. Ela adivinhou ou percebeu pelos reflexos exteriores que entravam no trem a toda velocidade, se afastou ao máximo contra a parede para dar espaço e finalmente o jovem conseguiu chegar ao seu lado. Depois de fechar completamente a cortina do leito, abraçou-a, apertou seu corpo com tal força que seus ossos pareceram estalar. Neste momento o expresso deixou de acelerar e se pôde sentir todo o sistema de freios tentando freá-lo. Isso os assustou, foi como um sinal de perigo. Ficaram imóveis. Mas os passageiros nunca sabem por que os trens fazem estas coisas no meio da via, sem estações à vista; eternos minutos na velocidade de caminhada e quando a composição estava a ponto de parar, começou a ganhar velocidade de novo.
O fogoso casal retornou suas atividades.
Os corpos ocupavam a totalidade do leito, mesmo estando muito apertados e um mais ou menos em cima do outro. Ela emanava um perfume que se impunha sobre os fortes cheiros humanos que começavam a dominar o vagão, que estava de fato lotado. Jacinto começou a beijar por todos os lugares sem roupa que encontrava até dar com esses lábios desejados que esperavam entreabertos. Só o contato dos lábios já lhe anunciou tudo, e o impedia deter-se, sua língua inspecionava implacável e decidida, o sabor da saliva, o hálito, a temperatura, tudo, tudo confirmava o anúncio do primeiro contato. E as mãos… as mãos sabiam ultrapassar barreiras e os nós das roupas, sabiam chegar onde queriam, percorriam essa pele palpitante, se detinham, agarravam e continuavam reconhecendo tudo, centímetro por centímetro. E ela não era nada passiva, tomou a nuca do jovem com seu braço direito apertando ainda mais o longo beijo e com a esquerda registrava o corpo masculino. Tudo isso sem poder elevar-se muito para não bater no teto da cabine. As péssimas vias de trem espanholas continuavam ajudando com as sacudidas e os ruídos protetores.
A mente humana é uma das coisas mais insondáveis da natureza, apesar de tanto especialista no assunto, e assim, no meio de semelhante estado de excitação amorosa, Jacinto se lembrou da bonita festa que haviam feito quando ele esteve em Aranda del Duero, o calor humano dessa população que lhes gritava aos chorões argentinos e chilenos que não há ditadura que dure cem anos, nem povo que a suporte. Claro, eles vinham de quarenta anos de ditadura franquista, tinham infinita experiência mais do que os refugiados sul-americanos.
Aproveitando uma sacudida um pouco mais forte que as demais, ela se separou, até onde podia separar-se naquela pequena cova e com uma habilidade inesperada tirou a roupa. Ele teve um momento de indecisão, duvidando sobre se o espaço seria suficiente para que ele também o fizesse, mas reagiu rapidamente e conseguiu desfazer-se de suas vestimentas mais complicadas, consciente de que deveria ser cuidadoso para não deixar cair nenhuma peça pela lateral. De repente o incrível, os corpos estavam nus e apertados, questão de pele – se diz as vezes com certa superficialidade e uma boa dose de subestimação, como se a pele fosse adversária ou menos importante que o espírito. Bendita questão da pele. Você nunca sentiu alguma vez que certos contatos de pele têm a virtude de elevar de forma extraordinária as emoções? Não será esse, por acaso, o outro aspecto da afirmação de Espinosa, “nunca se sabe tudo o que pode um corpo”? Com efeito, os corpos se apertaram, se interpenetraram anunciando que a iminente penetração masculina só seria uma consequência, seria o final do início.
Tempo sobrava, o trem devorava a meseta de Castilla e já se aproximava de Burgos, ou talvez já houvesse passado. Eles não estavam atentos aos detalhes geográficos, menos ainda para lembrar que Burgos é uma cidade com uma valiosa presença gótica, questão que coloca em cheque a vulgata desenvolvida por parte da academia argentina de origem gringa que argumenta que todos os nossos males têm sua raiz no “atraso” espanhol, porque Espanha não teria tido um Renascimento e aparentemente Cervantes nasceu em Florência e escreveu em Latim.
Jacinto, completamente alheio a estas revelações da geografia, e a estes regionalismos miseráveis que herdamos e aperfeiçoamos da antiga Europa, encontrou a postura adequada e já se apressava em penetrá-la quando ela o deteve com um gesto suave mas eloquente. Ele se desconsertou pela interrupção, pois estava seguro de que ela estava “no ponto”. No entanto, a moça lhe sussurrou ao ouvido que esperasse um pouco, e de um modo incrível se contraiu e tomou o membro delicadamente entre seus dedos, se inclinou ainda mais e começou a beijá-lo até tê-lo então na boca para dar – e dar-se – um prazer incomensurável que fez com que o rapaz tivesse que se concentrar para evitar a torrente fluvial. Quanto tempo? Quem saberá, apenas as distâncias devoradas pelo expresso poderiam medi-lo. Então, não se sabe nem como nem de onde, em um instante ela estava colocando-lhe um preservativo. Uma vez mais o estereótipo do prazer combinado com a racionalidade francesa; eram tempos em que se começava a falar de um desconhecido mal designado por suas iniciais em inglês que os espanhóis traduziram muito rapidamente como “SIDA”.
Apesar deste lapso racional, a libido não se deixou amedrontar e o rapaz a penetrou com uma firmeza suave, decidida, e o tesão estava tão forte que ela teve seu primeiro voo de imediato. Ele a sentiu e a apertou mais ainda; estavam interpenetrados como um ente só, um palpitante inseparável conjunto que se interconecta cada centímetro quadrado interno sabiamente inundados pelos sucos femininos. Ela encurralou as costas masculinas com seus braços e seus dedos se enfiaram nesta pele ardente enquanto os gemidos da fêmea e as bufadas do macho eram cobertos pelo ruído dos solavancos destas benditas vias espanholas de fim dos anos setenta.
Ficaram imóveis. O contato dos mamilos nus com o peito do rapaz endureceu os generosos peitos da moça nos primeiros espasmos deste primeiro voo que já preparava o segundo. O espaço diminuto dificultava os movimentos, mas de forma paradoxal concentrava o prazer ao máximo, como se não houvesse lugar para a distração com os espaços livres.
Uma leve diminuição na velocidade e a rápida sucessão de luzes brancas entrando de fora indicavam que a composição atravessava Miranda del Ebro, essa cidade que tem a curiosidade de ter um nome e um sobrenome. O jovem, velho militante revolucionário que tinha estudado muito a guerra civil espanhola, sabia que esse lugar foi famoso por seu terrível campo de concentração, que existiu entre 1937 e 1947, onde padeceram horrores milhares de ex-republicanos. Claro que a cidade é muito mais do que isso, além de ser uma espécie de centro de cidades, Bilbao, Burgos, Logroño e Vitoria, é um núcleo de comunicações, especialmente ferroviária, seus bairros com aspecto medieval, o reinado do Ebro, seu vínculo com o rio Bayas e seu pertencimento à província de Burgos. Mas eles nem se deram conta, seguiam apertados.
Apertados, sim. Não poderiam explicar por que ambos não tentavam o clássico movimento de pistão. O rapaz parecia estar tocando um ponto especial dentro dela, ficou imóvel, como se não quisesse perder o contato com esse ponto. Não havia movimentos próprios de “fazer amor”, mas tampouco havia imobilidade absoluta, era algo assim como um intercâmbio de vibrações. Ambos sabiam… sabiam? melhor dizer sentiam, que se precipitavam a um voo comum, ambos esperavam e cuidavam melhor a imobilidade.
O tempo? Outra vez essa pergunta? O tempo não é mensurável, agora o trem estava na altura de Vitoria, curioso nome deste lugar, quando em espanhol o comum seria Victoria, com um c. Estavam perto da fronteira com a França, tinham já feito boa parte do trajeto, logo Jacinto sentiu que a torrente se precipitava, ela o percebeu, sentiu chegar e ele descarregou sem poder conter-se e afogando o gemido. Ela o recebeu inteiro, apesar da artificial barreira preservativa, e teve um segundo voo quando as luzes de Vitoria salpicavam a alcova veloz.
Ficaram assim, sempre apertados, e a sonolência os capturou. Adormeceram com as bocas quase juntas, agora embalados pelo andar do trem até que a diminuição da velocidade e os freios os despertasse. Tinham chegado a Irun. Depois viria a ponte fronteiriça sobre o rio Bidasoa e a cidade francesa de Hendaya. No entanto não se moveram, era altamente improvável que os inspetores alfandegários entrassem no compartimento. O trem partiu então, devagar, foi possível sentir com clareza quando cruzava a ponte internacional, não se sabe por que sempre a passo de homem, até deter-se em Hendaya. Os demais passageiros do compartimento pareciam não se incomodar com as manobras e dormiam sem dificuldades. O trem ficou completamente detido mas o vagão começou a mover-se de maneira estranha, ouvia-se um zumbido estranho das poderosas gruas que o elevavam. O rapaz aproveitou essa desordem para se mover, buscando alguma posição. Ela o permitiu e é assombroso como os corpos seguiam apertados, como se eles se conhecessem da vida inteira. Agora os lábios buscavam beijos furtivos, não os da fúria passional, sim os da gratidão doce e recíproca. As gruas continuavam com seus estranhos zumbidos com os quais se intercalavam ruídos de chaves mecânicas, ordens em francês e até alguma melodia assoviada por algum trabalhador concentrado no que fazia. A operação de trocar os bogies estava em pleno acontecimento. Ao longe se escutava o som das locomotoras de manobra ordenando a composição do trem e, no entanto, toda esta balbúrdia técnica não parecia afetar o sono dos passageiros. Ninguém saiu ao corredor sequer para fumar ou combater a insônia.
O ambiente sonoro já não era necessário para cobrir os suaves suspiros da moça, agora apertada e sonolenta. A sensação de um voo interminável ou de muitos orgasminhos seguidos revoava na memória. O prazer da própria lembrança do prazer se prolongava a tal ponto que ambos não registraram o fim do som das gruas, o vagão já depositado sobre os novos bogies e os novos vagões anexados.
O novo trem, agora francês, se apressava em partir de Hedaya a Paris. O suave golpe da locomotora francesa ao encaixar transmitiu uma ligeira vibração por toda a composição, que coincidiu com o tremor de ambos corpos em seu encontro inseparável.
De agora em diante o suavíssimo zumbido do trem sobre os trilhos franceses perfeitos não ocultaria os barulhos delatores do amor; em troca, acompanharia o sono comum destes corpos esgotados pelo prazer.
Paris era o dever, mas… seria Paris também uma festa?
Ilustram o texto pinturas do chileno Roberto Matta.
O outro conto de Luis Mattini que publicamos pode ser lido aqui