Por Lindberg S. Campos Filho

Talvez seja importante estabelecer, em primeiro lugar, uma ampliação do conceito de revolução cultural. Isto devido ao fato de ele circunscrever a revolução cultural a certo gramscianismo ou ao maoísmo, o que parece ser um grave erro, principalmente uma vez que ele pressupõe a democracia liberal burguesa, por exemplo, como uma ordem tão natural e inevitável quanto o nascimento e o pôr do sol, ao passo que qualquer um que estude um pouco de história sabe que as relações capitalistas (base material deste modelo de democracia) foram paulatinamente desenvolvidas em oposição às relações feudais na Europa e a uma variedade de relações sociais de produção que iam desde o comunismo primitivo ao escravismo no caso do continente americano. Ou seja, a revolução cultural de modo geral é a criação e a reposição, ora mais ora menos, porém sempre consciente, de todo um cotidiano, o qual é viabilizado e viabiliza os intercâmbios materiais dominantes de determinada comunidade. Portanto, diferente do que normalmente se pensa, devemos partir da premissa de que o capitalismo, como sistema mundial ou economia-mundo, também é fruto de uma revolução cultural temporalmente dinâmica e com expressões espaciais particulares.

O segredo das grandes fortunas sem causa aparente é um crime esquecido, porque ele foi bem-feito. Honoré Balzac, O pai Goriot

Bertolt Brecht foi um escritor que viu na construção de toda uma carapaça mistificadora em torno da figura do empresário uma das chaves da hegemonia cultural do liberalismo. Além de aprofundar visões de mundo que pressupõem ideias como autonomia e autossuficiência do indivíduo em relação ao coletivo, a perspectiva reinante da competição entre empreendedores não apenas bloqueia um processo de tomada de consciência de classe por parte dos alvos das ilusões liberais, como também promove uma dessolidarização social generalizada, já que não há comunidades e sim indivíduos buscando satisfazer seus próprios interesses a partir de suas características e oportunidades individuais. Armar essa fantasia requer um trabalho diário, pois não é nada fácil negar a interdependência material e espiritual que temos como seres sociais e, ao mesmo tempo, afirmar a existência de uma competição da qual todos possam sair vitoriosos. Ou seja, o endeusamento dos tipos sociais do proprietário, do empresário e do empreendedor é uma revolução cultural permanente do modo de produção capitalista. Daí Brecht ter se esforçado tanto em desmascarar e desmoralizar essa figura fosse através da demonstração da corrupção e da violência não como aspectos morais e extraordinários, mas, em vez disso, como modus operandi do processo de acumulação do capital. Em A ópera de três vinténs (1928) e ainda mais explicitamente em Romance de três vinténs (1934), Brecht claramente associa o tipo do empresário ao submundo do crime e como protagonista no assalto ao Estado e, consequentemente, às riquezas que teoricamente seriam públicas, mas que sofrem uma apropriação privada cotidiana. Sendo o Estado responsável por garantir o regime de acumulação e a partilha do excedente social de determinada comunidade nacional, logo tanto na peça quanto no romance fica claro que é na relação entre dinheiro e Estado que se rouba recursos do coletivo para o indivíduo.

Assim, não fica muito difícil imaginar que o nosso argumento é que estes movimentos ininterruptos, e já automatizados, precisaram, e ainda precisam, de uma construção de legitimidade diária de tal modo que se cristalizem como a ordem natural do mundo. Isto é, a névoa mística que encobre o empresário só pode ser dissipada do mesmo modo que foi criada: uma revolução cultural que reverta a visão privatista de mundo. É neste sentido que talvez seja interessante verificar, em linhas gerais, como aconteceu essa revolução e, desse modo, resgatando o princípio de desconstrução da cultura corporativa, a qual é ainda mais dominante hoje do que no tempo de Brecht.

Em primeiro lugar, faz-se importante afirmar que uma das condições de possibilidade mais fundamentais para a emergência da forma mercadoria como dominante social foi a estruturação do empreendedorismo como prática e como ideia. Como é o capitalista individual que comprou a força de trabalho necessária para produzir determinado resultado de trabalho, ele é percebido como o proprietário do trabalho alheio e, portanto, é como se capital e capitalista estivessem se autovalorizando, efetuando o processo de apagamento dos processos produtivos reais. Tal operação é certamente garantida, ainda que não exclusivamente, através da figuração do gênio do empreendedor como o sujeito produtor da riqueza. Todavia, basta olhar cada processo produtivo desde a sua origem ou nos seus meandros para se enxergar a negação do trabalho coletivo e da interdependência social.

De um ponto de vista histórico, a aventura é um empreendimento que remonta à antiguidade. Entretanto, é apenas ao longo do século XV que ela alcança uma importância essencial exatamente na viabilização da conquista do continente americano. Ou seja, o comércio garantiu as divisas necessárias para financiar o expansionismo oceânico da economia mercantil europeia em evidente necessidade de expansão. O empreendimento da conquista, então, foi a aventura que efetivamente possibilitou o pioneirismo industrial do extremo oeste europeu, porque redundou em um processo de acumulação primitiva baseada na pilhagem, ou roubo puro e simples, e na anexação de todo um continente à órbita da Europa. Evidentemente que os mitos fundadores daqueles estados nacionais se confundem com os indivíduos que protagonizaram a epopeia do empreendimento da conquista.

Pode-se enxergar nitidamente uma trajetória de mistificação da aventura como empreendimento para gerar lucros e que teve como processo correspondente uma espécie de endeusamento do indivíduo-empreendedor que chega até os dias de hoje. A operação foi longa, complexa e profundamente desigual, mas é inegável que só se generalizou dando vida a uma verdadeira cultura do indivíduo virtuoso que enriquece pelo seu próprio esforço. Note-se, só de passagem, que a expedição do fidalgo, comandante militar e explorador português, o aventureiro Pedro Álvares Cabral, saiu de Lisboa com mais ou menos 1500 pessoas em treze embarcações. Isto significa que o empreendimento nunca é uma atividade solitária, como consta no nosso imaginário, e sim o resultado de um trabalho coletivo que é privadamente apropriado, emulando o funcionamento da produção de capital mais geral. Não esqueçamos tampouco que tal aventura foi financiada pelo Estado português, por bancos e que contava com o apoio decisivo da Igreja Católica para consolidar a nova ordem cultural daquele território tomado a força. Qualquer semelhança com modos contemporâneos de empreendimento, como uma joint venture, não é mera coincidência.

É na política que a metáfora e a imagem se diferenciam da forma mais rigorosa e irreconciliável. Organizar o pessimismo significa simplesmente extrair a metáfora moral da esfera da política, e descobrir no espaço da ação política o espaço completo da imagem.
Walter Benjamin, “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”

Contudo um dos maiores desafios de uma revolução cultural oposicionista estaria em justamente produzir um olhar crítico distanciado da situação que já se enraizou. Dito de outro modo, a partir do momento em que todo um sistema simbólico é erigido em torno de alguma prática e se sedimenta, somente a produção de um ponto de vista externo pode nos proporcionar o distanciamento crítico exigido para visualizar o sutil mecanismo de geração e reposição dos significados e valores ensejados por esta prática. O resultado seria algo como a superação subjetiva da saturação do modo de ser empreendedor. A pergunta é como levantar a cabeça acima da boiada da cultura corporativa que se espalha para todos os espaços da nossa sociedade?

Como sugerido acima, uma maneira encontrada por Brecht de fazer isso foi deixar a nu todos os engôdos e artimanhas em que o heroísmo do empreendedor está enredado; demonstrar que as reuniões de empresários – como o truste, ou monopólio, da couve-flor em A resistível ascensão de Arturo Ui (1941/1958) – são, na verdade, complôs contra o conjunto da humanidade, pois não há limites quando se trata de imporem seus interesses privados contra os interesses do coletivo; aliás, este último não é sequer levado em consideração.

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