Por Douglas Rodrigues Barros

Um ressentimento percorre o espírito dos políticos profissionais e daqueles que se candidatam à próxima vaga para criação de políticas públicas: junho de 2013. Quem negaria, de fato, que é útil encontrar um culpado para a própria incapacidade de compreensão social?

Tão logo a previsível derrota se tornou efetiva se percebeu toda a sabedoria que existe no fato de as análises permanecerem superficiais. É aquele instinto baixo, conservador, burocrático, que lhes ensina a serem volúveis, facciosos e falsos. Aqui e ali encontramos, entre cientistas políticos e comentaristas, um culto apaixonado e excessivo das proposições políticas. Engajar-se no sentido de se tornar instituição é a palavra de ordem.

Ninguém duvide que quem necessita de tal maneira adorar a legalidade, em algum momento se candidatará à gerência política, à gestão da crise e sua constitutiva e amarga redução dos impactos. Talvez haja até mesmo uma hierarquia entre esses políticos profissionais escaldadas pelo treino constante nos movimentos sociais e estudantis — o grau de desgosto que a vida alcançou, com o fim da valorização do valor, impõe que se valorize de maneira mercantil até a outrora inegociável amizade, os afetos políticos, o pensamento, a vaga no banco do passageiro e os minicursos antifascistas.

No mercado das ideias vencem aqueles cuja proposição para salvar o capital de si mesmo seja a melhor. Nos partidos todos são concorrentes, desde o uso dos microfones até a utilização do fundo partidário, uma miríade de identidades em ampla concorrência interna.

Junho de 2013 não trouxe nada aproveitável para esses homens políticos. Eram só vinte centavos que definitivamente revelaram de uma vez por todas que a vida continuava, a despeito do consumo, insuportável para a maioria, que o ar empesteado nas cidades não deixava respirar livremente os anseios de uma vida legítima e que nas periferias o sangue da juventude continuava jorrando pelas mãos da polícia.

O profundo e desconfiado temor de qualquer mudança aguda, porém, de qualquer possibilidade do comum, o apego a uma vida degradada, obrigavam os políticos profissionais a abraçarem firmemente uma interpretação política do existir: o temor daquele entendimento que pressente que se poderia ter uma transformação radical demais, antes que as condições se tenham tornado propícias, antes que o seu partido pudesse conter os elementos ativos para debelar qualquer mudança a mais. Enfim, o velho e conhecido impulso de traição socialdemocrata.

Visto com esse olhar, a ojeriza, o descrédito que querem impor ao junho de 2013, aparece como o rebento último e mais sutil do temor à transformação social radical, como adoração e embriaguez de politiqueiros face à mais consequente das falsificações, como vontade de manutenção da vida limitada ao trabalho hostil, de relações superficiais, de baixeza espiritual via consumo, como entrega dos elementos mais insatisfeitos ao esquecimento do chiqueirinho da PM.

Talvez não tenha havido até hoje um meio mais eficaz para manter as relações políticas enviesadas pela mercadoria do que a desconfiança e ódio à verdadeira política, isto é, aquela que não estabelece acordos prévios e visa implodir as limitações impostas pela economia. Através dessa desconfiança o político profissional pode se tornar de tal modo superficial, cordial, democrático, que já não nos escandalizamos com sua presença.

Junho de 2013 foi uma torrente de escândalos. Foi uma apresentação que a realidade normativa calculada e controlada por um partido de esquerda não queria fazer emergir. Foi o lugar derradeiro de um ciclo, do fim de um pacto social rompido para se apresentar o “Novo”. As contradições emergiram, o parafuso espanado da dialética encontrou um novo giro, mas as vozes juvenis que gritaram angustiadas por uma nova cidade jamais teriam seus gritos ouvidos por homens políticos. O grito ficou parado no ar.

Entretanto, o que acontece na luz, atua nas trevas: um terreno movediço de práticas irracionais já estava todo preparado para engolir aqueles apegados à instituição. Aquilo que vivemos no pesadelo, as vozes sussurrantes que falavam sobre a continuidade da ditadura, a tortura que vivenciávamos nos jornais repetidas vezes, nos canais evangélicos da tevê aberta, terminavam por emergir na economia global de várias almas, tornando-se algo realmente afirmado e já previsto pelo capitão Nascimento encarnado agora no ex-capitão da reserva, o messias. Os ouvidos moucos dos políticos profissionais tiveram com juros seu pagamento e doravante é a própria noção de instituição que naufraga nas mãos de uma extrema-direita narcísica e violenta.

Em virtude disso tornamo-nos mais sensatos ou mais fortes, temos uma necessidade a mais, e afinal somos um pouco guiados pelo hábito de impor uma impossibilidade à possibilidade lógica do mercado, em plena luz do dia. O trabalho de toupeira sempre fora realizado afastando-se do axioma clássico da política limitada ao negócio. Sabemos de nosso fracasso em 2013, muito antes de qualquer investigação sociológica descabida, sabíamos dele.

É, contudo, a esquerda que não reconhece sua derrota embebida pela gestão da vida social, pelos tramites partidários, pela busca da manutenção da ordem. Na medida em que sempre, desde que a modernidade grassou, houve também exclusão, cisão, ojeriza às diferenças, é justo supor que via de regra é agora inata em cada um a necessidade de se parecer igual, como uma espécie de consciência narcísica que diz: “você deve absolutamente tornar-se igual ao seu modelo”. Visual é tudo. Esta necessidade na esquerda procura saciar-se por meio dos modelos de sucessos e bem-estar, dos gurus criadores de conceitos e linguagens próprias, do lugar de fala de uma individualidade fictícia e rentável. As diferenças autoproclamadas imediatamente criam clãs, tribos modernas de consumo.

Do mesmo modo, na vida precária de hoje o político profissional se apresenta como a única espécie de homem permitida, e glorificado pelos seus atributos, que o tornaram manso, tratável e, de vez em quando, até midiaticamente rentável aparecendo em programas globais, pode receber seu certificado de gestor, de pastor do rebanho de eleitores. Dão-se a ele as medalhas dos direitos humanos. É o modelo de sucesso da época que não pode suportar qualquer levante que não diga para que veio, ou ainda qualquer levante que apresente o escândalo da realidade.

Com o olhar dirigido apenas à preservação da representatividade, com a boca espumando contra aquilo que parece perigoso à subsistência da política tornada um mercado eleitoral, fecha-se a visão aos limites dados pela produção e reprodução de mercadorias. As vozes radicais de junho não foram ouvidas, as vozes cansadas do político profissional o foram pela direita que realizava o trabalho leninista. Ao se tornarem homens de negócios políticos, a esquerda perdeu sua razão de existir.

 

Ilustram o texto fotografias de esculturas em miniatura de Isaac Cordal

5 COMENTÁRIOS

  1. Discordo em gênero, número e grau, assim como creio que o autor não compreendeu (suponho que tenha lido) a recente análise de Paulo Arantes: O fato da socialdemocracia ser vista como uma verdadeira esquerda, e até extrema esquerda, é resultado do partido que se intitulou ser socialdemocrata ter migrado à direita conservadora que governa o país durante os anos FHC. Essa aliança, que nunca representou totalmente essa direita, nem o próprio PSDB, gestionou um discurso socialdemocrata e uma agenda neoliberal; o PT, que se tornou eleitoralmente viável ao propor uma socialdemocracia, tentou na política conciliatória realizá-la, ainda que de forma muito mais gradual que a necessária, para evitar choques sociais e o desgaste da conciliação.
    A política leninista da direita aproveita justamente a diluição da esquerda numa postura institucional liberal; a única possível num projeto conciliatório com a nossas elites; que foca em política identitárias, transforma luta em projeto social, governo em gestão, etc:

    Por um lado, eu acho que eu não começaria discutindo pela questão da democracia para entender o fenômeno Bolsonaro. Não é que tenhamos uma democracia ruim, incompleta, de baixa intensidade, racionada, assim por diante, que tornou possível a vitória dele. Teria sido possível uma vitória do outro lado e, nem por isso, eu iria desqualificar porque a democracia não é intensiva, digamos assim. Eu acho que a boa pergunta seria que regime é esse no qual nós vivemos desde o fim da ditadura?

    “O prisma para se entender o que ocorreu agora é o renascimento da política. Nós não imaginávamos. Quando eu digo nós, eu estou falando, sobretudo, da esquerda. Nós estávamos completamente anestesiados com um tipo de esquerda que se consagrou com a abertura [pós ditadura] em diante, dos anos 1990 em diante, que é uma esquerda que pensa em governo e não se imagina fora do governo. Uma esquerda para governar. Essa é a grande novidade do petismo e, portanto, gestionária.
    De tal maneira nós estávamos impregnados por essa ideia que nós, de certa maneira, tínhamos abandonado a ideia clássica de política como conflito social canalizado em torno de algumas grandes expectativas – e nos aferramos à ideia de gestão, governo e administração. E eu acho que estava subentendido que não haveria mais política. No fundo, era isso: a política tinha se resumido na disputa dos fundos públicos e políticas orçamentárias alternativas e como encaminhar esses fundos através de políticas públicas conquistadas ou implementadas através de negociações com o Congresso, lobbys e assim por diante.
    A ideia de eleição ou alternância de poder praticamente era uma rotina sem nenhum significado político. Isto é, por mais acirrados que fossem os embates nas campanhas eleitorais que acontecessem de dois em dois anos – e dá uma ilusão de mobilização em torno de projetos, mas são projetos de poder em disputa eleitoral. E isso não muda estruturalmente nada. Se a gente imagina a alternância do FHC e Lula, a política econômica basicamente tem um fundo comum.”

    O ataque a institucionalidade da política neste artigo perde seu foco e sua potência: não identifica o real problema da institucionalização da esquerda no Estado.

  2. Li o artigo e a crítica de Júlio, e apesar de ver problemas no artigo, acho que Júlio errou o endereço. O artigo não busca analisar a esquerda institucional senão só mostrar como um tipo de profissionalização política guiada pela lógica da conciliação possibilitou que as vozes de junho fossem ouvidas pelo espectro da direita.

  3. Caro Julio
    O ensaio não tinha por objetivo identificar o “real” problema da institucionalização da esquerda no Estado… e também não era só demonstrar que “as vozes de junho fossem ouvidas pelo espectro da direita”, mesmo porque elas não foram ouvidas nem por um, nem por outro meridiano político. No que coube à direita, ela capturou para si os elementos necessários para implodir a “conciliação” pressuposta pelo lulopetismo que já não fazia coro com seus propósitos. No que coube à esquerda, seus ouvidos ficaram moucos aos elementos importantes que demonstravam o fim de um ciclo na política nacional. Ambos os lados se reduzem a profissionalização da política pensada no interior de um certo limite lógico imposto pela redemocratização. De resto, concordo em número, gênero e grau quanto a importante questão que suscitou: “que regime é esse no qual nós vivemos desde o fim da ditadura?”, escreva um artigo sobre, esperarei ansioso!
    abraços!

  4. Caro Douglas,

    Entendo agora seu ponto, relendo seu comentário e o texto!

    Abs.

  5. Lendo o texto e os comentários – que gostei – me bate aquela dúvida-angústia sobre o quanto as forças anticapitalistas ou da esquerda gestora do capital conseguiriam agir diante do poder das armas do grande capital. Parece pelos textos que bastava uma mudança na consciência dos trabalhadores ou gestores de esquerda pra que a coisa fosse diferente. Parece desconsiderar a geopolítica internacional e o poder de reafirmar mentiras dos grandes monopólios. É peso, cumpadis…

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