Por Isadora de Andrade Guerreiro
Imagino que escrever uma coluna sobre Cidades no Passa Palavra significa, antes de qualquer coisa, entender o urbano como elemento relevante das lutas atuais. Isso não significa falar das lutas localizadas no espaço urbano, nem que derivem das suas idiossincrasias próprias. Falo de buscar o que existe de especificamente urbano nas lutas, na medida em que o urbano, no Brasil, é intrínseco à formação da nossa classe trabalhadora e às relações capitalistas de produção — cujo caráter colonial é permanente e de forma urbana bastante característica. Nesse sentido, a subsunção dos modos de vida ao capital, no Brasil, tem, entre outros, um caráter urbano de origem — haja em vista a hipótese de que o empreendimento colonial já fez parte da conformação capitalista dos centros urbanos europeus. É por esse motivo que entendo que falar de “cidades”, aqui, é falar do componente urbano das lutas, evidenciando sua historicidade. Não encerro o assunto por aqui, apenas o inicio: espero que este intuito fique mais claro nas discussões que vou propor neste espaço virtual.
Com isso quero afastar a discussão — que me parece pouco frutífera, embora em círculos marxistas ortodoxos retorne com certa frequência — de que focalizar a Cidade (o espaço que foi configurado pelo urbano) é deslocar as lutas da esfera da produção para a da reprodução da força de trabalho, apagando os aspectos de classe que uniriam os trabalhadores e privilegiando identidades comunitárias que os afastariam da transformação do modo de produção capitalista. Quero me afastar desta discussão porque entendo ser um enfoque equivocado do tema — até mesmo porque a cidade é um produto do trabalho humano, que se mercantiliza cada vez mais. Mas ainda não é esse, apenas, o ponto. Quando olho a cidade como espaço produzido, quero enfocar antes o caráter urbano do “modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida”. Na clássica passagem de Marx e Engels na Ideologia Alemã:
Esse modo de produção não deve ser considerado meramente sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é, muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção (MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, p. 87).
Pois o modo de vida urbano é uma forma determinada de atividade de indivíduos históricos, que os determina inclusive — mas não só — como trabalhadores. Foi assim que Francisco de Oliveira pode, na década de 1970, ao olhar para a autoconstrução periférica brasileira, caracterizar a forma específica do nosso desenvolvimento capitalista (Crítica à Razão Dualista). Pois baixos salários (abaixo do valor da força de trabalho, uma característica específica do desenvolvimento latino-americano) não são explicáveis apenas do ponto de vista das condicionantes da produção: baixos salários estruturais são fundamentalmente um modo de vida específico, que depende da existência de relações sociais que o produzam, como a disponibilidade de terras para serem ocupadas, estrutura de varejo de materiais da construção civil disponíveis para a autoconstrução, redes de assistência social e cultural, relações políticas clientelistas, uma determinada forma de Estado que regula — muito bem — toda essa aparente “ilegalidade” etc.
Nesse sentido que afirmo que o urbano não é mero reflexo das relações de dominação atuais, onde se expressam contradições, mas sim um modo de vida específico, parte das condições materiais e imateriais de produção e reprodução da vida, elemento fundamental que compõe a forma social que está em andamento nessa conjuntura histórica. As lutas ditas urbanas, portanto, não me parecem lutas de caráter “menor”, “setorial”, “culturalistas” etc., mas parte intrínseca das lutas contra o modo de vida determinado por uma forma social baseada na dominação: do capital, mas também do patriarcado, da heteronormatividade, do cristianismo, do eurocentrismo e por aí vai. Pois todas estas formas de dominação são produzidas a cada momento histórico de maneiras diversas e, atualmente, têm enorme caráter urbano. Talvez porque esse seja o modo de vida do capital, cuja forma social é concentradora, autodestrutiva e expansiva, tais quais as cidades da era moderna. As lutas urbanas, portanto, nada mais são do que a forma específica que parte das lutas tomaram contra as atuais formas de dominação da vida.
Lutas pelo transporte, assim, não deixam de ser lutas contra o capital, mas também não deixam, por exemplo, de ser lutas contra o patriarcado — que conforma um sistema de mobilidade baseado na opressão e exclusão das mulheres. Veja-se, ele não oprime, ou é a expressão da opressão: o sistema de mobilidade urbana é, antes, a condição material da opressão, um conformador de determinado modo de vida. Não é instrumento da opressão, mas a forma social dela, antes de ser lataria de ônibus. Por isso queimar ônibus não é a mesma coisa que destruir a maquinaria das fábricas no século XIX: ao destruir o que, numa visão finalista, enxerga apenas o que é “dos trabalhadores” (o ônibus, diferente das máquinas, que são “do patrão”), a fúria que os queima na verdade está se negando a ir trabalhar, a continuar participando da festa dos patrões — diferente dos destruidores de máquinas que queriam trabalhar mais. Assim, um taxista enfurecido por perda da demanda em São Paulo ter queimado patinetes elétricos (caso ocorrido esses dias) se parece muito mais com a queima de máquinas de fábrica do que se os próprios usuários os tivessem queimado contra a exigência de produtividade da cidade que os leva a se acidentarem constantemente nos equipamentos. Então a questão não é o patinete em si, mas entender as relações sociais nas quais ele faz sentido. Entender a forma social específica na qual estamos, na qual ônibus caro, lotado e lento faz sentido.
Por isso gostaria de pensar junto aos leitores desta coluna em que medida o olhar para as lutas urbanas — no sentido aqui colocado pelo Passa Palavra de noticiar, apoiar, pensar e lembrar — revela as especificidades do modo de vida atual da população brasileira, diverso de outros momentos históricos e localizações geográficas, que necessitam de estratégias também específicas de luta contra as mais diversas opressões. O olhar para o que pode haver de urbano (não apenas para as cidades) nas lutas nos permite uma visão de totalidade delas rara e privilegiada: nele a dialética entre consumo, produção e reprodução da vida — ou dos muitos modos de vida — é imediatamente uma mesma realidade concreta e saber dar historicidade a este processo é uma tarefa importante, pois evita anacronismos e outros deslocamentos que trabalham para nublar as necessidades do presente.
Um bom primeiro exemplo disso é a discussão sobre moradia feita no mainstream da esquerda. Voltarei ao tema outras vezes, só vou agora levantá-lo. Enquanto técnicos bem intencionados debatem sobre o desenho de políticas públicas de bem-estar social (um contexto deslocado) e os mais pragmáticos reivindicam unidades habitacionais sejam-como-for (sem disputar outros modos de vida), a realidade dos territórios populares (que não estão apenas nas periferias geográficas) tem vivido na última década um verdadeiro boom da dinâmica imobiliária da autoconstrução e da autopromoção de moradia (como as ocupações de prédios). Apenas no centro de São Paulo existem hoje cerca de 60 edifícios reconhecidamente ocupados — não necessariamente por movimentos de moradia. Será possível que a leitura desse cenário é a mesma que Francisco de Oliveira fez na década de 1970, de que a autopromoção da moradia deve ser questionada por ser um fator de rebaixamento salarial? Considerando tudo o que coloquei anteriormente, entendo que a autoconstrução à qual se referia Oliveira estava inserida num modo de vida urbano que fazia parte da formação da classe trabalhadora assalariada: certa estabilidade, luta por direitos sociais, laços familiares e comunitários construídos também por determinado cristianismo católico, a possibilidade latente de se vislumbrar — ou lutar — por um futuro que fosse, ainda que a duras penas.
Esse cenário mudou radicalmente. A “viração”[1] não tem possibilidade de vislumbrar o futuro, ela é presente perpétuo. Não há rebaixamento de salário porque a relação salarial é minoritária, quando existente. A ocupação para moradia pós-PMCMV (Programa Minha Casa Minha Vida) não é a mesma da década de 1980 — em nenhum aspecto (podemos voltar ao tema em outro momento). Os mercados populares, por falta de designação melhor — não direi nem ilícitos nem informais, pois sua caracterização transcende esses conceitos — de qualquer coisa, inclusa a terra e a moradia, revelam a “subsunção real da viração”[2] não apenas no mundo do trabalho, mas também na moradia: enorme aumento de cômodos para locação popular (“empreendedorismo imobiliário”) e impossibilidade de “chegar e construir” sem pagamento ou submissão aos chefes locais. Como não olhar para essa conjuntura e não ver novamente o urbano conformando a nova classe trabalhadora? Não o ver constituindo as condições sociais que permitem e condicionam a submissão à viração, ou mesmo a produzem? Pois alguém que vê suas condições de moradia antes estáveis (pela autoconstrução) se transformarem em corrida para morar hoje (e não amanhã) certamente está forjado para a viração no trabalho. E não faltarão meios — principalmente financeiros — de captar essa dinâmica imobiliária para os mercados formais (outro assunto que merece aprofundamento) — como a Uber já mostrou para o caso da força de trabalho.
Nessa conjuntura, muda o sentido das lutas em torno das ocupações e autoconstrução? Certamente sim. Antes de tudo pelo simples fato de que a forma social da viração se sustenta na privatização de todos os elementos da vida, rumo à atomização do ser social em competição. E então se torna necessário olharmos para os novos papéis da gestão privada desses territórios (que também são os corpos que neles habitam), que ganham relevância na medida em que a produção privatizada do espaço participa da formação de um sujeito social e político despossuído até mesmo da disponibilização da sua própria força de trabalho para si mesmo — desde o ato mais primitivo de fazer um abrigo para si — e de suas já parcas possibilidades de organização coletiva autônoma. E ganha relevância histórica o fato de tal privatização estar sendo realizada pelas disputas internas da própria classe — seja por meio do “crime”, ou de lideranças locais, ou até mesmo movimentos de moradia. Então, pergunto: dá para pensar a viração no mundo do trabalho sem a mudança de paradigma representada pela perda de autonomia na produção da moradia da antiga autoconstrução? Acho difícil. Então, há algo de urbano na formação da nova classe trabalhadora e nas suas lutas.
Notas
[1] TELLES, Vera da Silva. Mutações do trabalho e experiência urbana. In: Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, v. 18, n. 1, pp. 173-195, junho de 2006.
[2] Ludmila Costhek Abílio cunhou este termo genial ao falar da uberização do trabalho. Ver o artigo Uberização do trabalho: subsunção real da viração.
Excelente começo na coluna, Isadora.
Já ansioso pelo seu próximo texto.