Ludmila Costhek Abílio
1. Entre salões e apps
Em outubro de 2016, o governo de Michel Temer sancionou uma lei que passou desapercebida nos embates sobre as terceirizações. A lei “Salão parceiro – profissional parceiro” desobriga proprietários de salões de beleza a reconhecerem o vínculo empregatício de manicures, depiladora(e)s, cabelereira(o)s, barbeiros, maquiadora(e)s e esteticistas. O estabelecimento torna-se responsável por prover a infraestrutura necessária – os demais trabalhadores seguem sendo reconhecidos como funcionários – para que suas “parceiras” e “parceiros”, agora legalmente autônomos, realizem seu trabalho. Assim, aquela manicure que trabalha oito horas por dia ou mais, seis vezes por semana, para o mesmo salão, poderá ser uma prestadora de serviços.
Talvez por referir-se ao trabalho tipicamente feminino, aparentemente irrelevante e socialmente invisível, a lei foi recebida mais como perfumaria do que como a abertura legal da porteira para a uberização do trabalho no Brasil[1]. A uberização, tal como será tratada aqui, refere-se a um novo estágio da exploração do trabalho, que traz mudanças qualitativas ao estatuto do trabalhador, à configuração das empresas, assim como às formas de controle, gerenciamento e expropriação do trabalho. Trata-se de um novo passo nas terceirizações, que, entretanto, ao mesmo tempo que se complementa também pode concorrer com o modelo anterior das redes de subcontratações compostas pelos mais diversos tipos de empresas. A uberização consolida a passagem do estatuto de trabalhador para o de um nanoempresário-de-si permanentemente disponível ao trabalho; retira-lhe garantias mínimas ao mesmo tempo que mantém sua subordinação; ainda, se apropria, de modo administrado e produtivo, de uma perda de formas publicamente estabelecidas e reguladas do trabalho. Entretanto, essa apropriação e subordinação podem operar sob novas lógicas. Podemos entender a uberização como um futuro possível para empresas em geral, que se tornam responsáveis por prover a infraestrutura para que seus “parceiros” executem seu trabalho; não é difícil imaginar que hospitais, universidades, empresas dos mais diversos ramos adotem esse modelo, utilizando-se do trabalho de seus “colaboradores just-in-time” de acordo com sua necessidade[2]. Este parece ser um futuro provável e generalizável para o mundo do trabalho. Mas, se olharmos para o presente da economia digital, com seus motoristas Uber, motofretistas Loggi, trabalhadores executores de tarefas da Amazon Mechanical Turk, já podemos ver o modelo funcionando em ato, assim como compreender que não se trata apenas de eliminação de vínculo empregatício: a empresa Uber deu visibilidade a um novo passo na subsunção real do trabalho, que atravessa o mercado de trabalho em uma dimensão global, envolvendo atualmente milhões de trabalhadores pelo mundo e que tem possibilidades de generalizar-se pelas relações de trabalho em diversos setores.
A uberização, portanto, não surge com o universo da economia digital: suas bases estão em formação há décadas no mundo do trabalho, mas hoje se materializam nesse campo. As atuais empresas promotoras da uberização – aqui serão tratadas como empresas-aplicativo – desenvolvem mecanismos de transferência de riscos e custos não mais para outras empresas a elas subordinadas, mas para uma multidão de trabalhadores autônomos engajados e disponíveis para o trabalho. Na prática, tal transferência é gerenciada por softwares e plataformas online de propriedade dessas empresas, os quais conectam usuários trabalhadores a usuários consumidores e ditam e administram as regras (incluídos aí custos e ganhos) dessa conexão.
O fato é que as empresas-aplicativo têm pouca materialidade, mas altíssima visibilidade. A empresa Uber tem tamanha atuação pelo mundo que torna hoje cabível utilizarmos o termo em questão. A fonte da fetichizada “força da marca” neste caso se refere à multidão de trabalhadores e consumidores que a empresa consegue mobilizar pelo mundo (apenas na cidade de São Paulo, sabe-se que os motoristas já são mais numerosos que os taxistas. Ultrapassam os 50 mil; entretanto, a empresa não divulga seus dados). A atuação do Uber tocou em questões centrais do desenvolvimento capitalista, como a mobilidade urbana e as legislações em torno da economia digital. Tornou-se tema de campanhas e debates eleitorais, no terreno arenoso da permeabilidade entre empresas e Estado, que envolve interesses dos consumidores-eleitores, conflitos dos trabalhadores e embates de titãs sobre o tal “livre” mercado. Porém, mais do que isso, o Uber tornou evidente tendências mundiais do mercado de trabalho, que envolvem não só a transformação do trabalhador em microempreendedor, mas também do trabalhador em trabalhador amador[3] produtivo, questão que desenvolvo ao longo da análise.
As empresas-aplicativo firmam-se no mercado como mediadoras entre consumidores e trabalhadores-microempreendedores, provendo a infraestrutura necessária – ainda que virtual – para que esse encontro aconteça. Para tanto, assim como a proprietária que receberá a comissão pelo trabalho da manicure, o Uber recebe uma porcentagem (de 25%) por atuar como mediador entre a multidão de consumidores-poupadores e a multidão de motoristas amadores. Obviamente, sua atuação é muito mais complexa que isso. Assim como a “parceira” manicure não está em relação de igualdade com o proprietário ou a proprietária do salão para definir seus ganhos, a intensidade de seu trabalho, a extensão de sua jornada, o trabalhador uberizado também tem seu trabalho subsumido. Entretanto, as formas de controle, gerenciamento, vigilância e expropriação de seu trabalho são ao mesmo tempo evidentes e pouco tangíveis: afinal, o estatuto do motorista é de um trabalhador autônomo, a empresa não é sua contratante, ele não é um empregado, mas um cadastrado que trabalha de acordo com suas próprias determinações; ao mesmo tempo, o que gerencia seu trabalho é um software instalado num smartphone: mesmo definindo as regras do jogo, a empresa aparece mais como uma marca do que de fato como uma empresa. Mas o discurso sobre a “parceria” entre empresas-aplicativo e trabalhadores, assim como a imaterialidade destas, rapidamente se esfumaçam quando trabalhadores uberizados se apropriam de seu poder enquanto multidão e estabelecem formas coletivas de resistência e de negociação. Nesse momento as formas de controle, expropriação e opressão ficam explícitas.
Já estão em ato novas formas de organização política, que envolvem a criação de sindicatos de aplicativos, greves e manifestações de trabalhadores uberizados. Em 2016 ocorreu uma série de manifestações, greves, processos judiciais, formação de sindicatos de trabalhadores de aplicativos pelo mundo. Motoristas Uber americanos (atualmente mais de 400 mil) juntaram-se a enfermeiras, trabalhadores do setor hoteleiro, entre outros, na campanha “Fight for US$15”, que demandava o pagamento mínimo de quinze dólares por hora de trabalho. Na Califórnia, a empresa Uber optou por pagar US$100 milhões em acordo com dezenas de milhares de trabalhadores (não há dados claros sobre esse número) que acionaram coletivamente a justiça, requerendo reconhecimento legal do vínculo empregatício com a empresa. O acordo evitou que o processo fosse a julgamento (ver aqui e aqui). No final do ano, a justiça inglesa determinou que a Uber reconhecesse o vínculo empregatício com seus motoristas; o processo ainda está em andamento.
Os motoboys que trabalham para o aplicativo Loggi também organizaram, sob coordenação do SindimotoSP, manifestação que interrompeu faixas da Marginal Pinheiros e da Av. Rebouças, contra a nova forma de remuneração por entrega implementada pela empresa, que em realidade aumenta sua porcentagem de ganhos sobre o trabalho dos motofretistas. Os ciclistas-entregadores da empresa Foodora organizaram as primeiras greves de trabalhadores por aplicativos na Itália, as quais evidenciaram novas formas de punição (como o desligamento do aplicativo de lideranças), assim como de apoio (as manifestações começaram a contar com a adesão de usuários consumidores). Motociclistas do aplicativo Deliveroo, após sete dias de greve, conseguiram impedir mudanças que rebaixariam o valor de sua hora de trabalho. Também foram criados em 2016 o Sindicato dos Motoristas de Aplicativo de São Paulo, a Associação dos Motoristas Autônomos por Aplicativos e Sindicato dos Motoristas de Transporte Privado Individual de Passageiros do Estado do Pernambuco. No início de 2017, a Uber acionou a justiça da Califórnia, tentando impedir a formação de sindicatos.
2. O trabalhador-perfil e o consumidor-vigilante
Basicamente, a empresa Uber promove a conexão entre uma multidão de motoristas amadores pagos e uma multidão de usuários em busca de tarifas reduzidas em relação aos táxis; em algumas cidades se estabelece como uma opção economicamente acessível, menos degradante e mais veloz que o transporte público. Entrando de forma totalmente predatória e com poucas regulamentações, rapidamente a empresa reconfigura o mercado privado da mobilidade urbana. Tem uma estratégia agressiva de entrada nos mercados locais; em muitas cidades o Uber é ilegal, mas segue operando normalmente. Para tanto, conta com uma multidão de usuários e recruta – na passiva (melhor seria, conta com a adesão permanente de) – uma multidão de motoristas amadores, que encontram nessa atividade uma forma de geração de renda.
O Uber, assim como outras empresas que operam com a mesma lógica, estabelece regras, critérios de avaliação, métodos de vigilância sobre o trabalhador e seu trabalho, ao mesmo tempo que se exime de responsabilidades e de exigências que poderiam configurar um vínculo empregatício. Consumo, avaliação, coleta de dados e vigilância são elementos inseparáveis. Em realidade, o controle sobre o trabalho é transferido para a multidão de consumidores, que avaliam os profissionais a cada serviço demandado. Essa avaliação fica visível para cada usuário que for acessar o serviço com aquele trabalhador. A certificação sobre o trabalho vem agora da esfera do consumo, por meio dessa espécie de gerente coletivo que fiscaliza permanentemente o trabalhador. A multidão vigilante, na forma multidão, é então quem garante de forma dispersa a certificação sobre o trabalho. A confiança, elemento chave para que o consumidor entregue seus bens e documentos nas mãos do motoboy, para que adentre o carro de um desconhecido que será seu motorista (e que, diferentemente do taxista, não passou por um processo de certificação publicamente regulamentada), é então garantida pela atividade dessa multidão vigilante, que se engaja e também confia no seu papel certificador. Assim o trabalhador uberizado se sabe permanentemente vigiado e avaliado. Essa nova forma de controle tem se mostrado eficaz na manutenção de sua produtividade, na sua adequação aos procedimentos – informalmente estabelecidos – que envolvem sua ocupação. Ao adequar-se o trabalhador trabalha para si e para a empresa, para si e para o cultivo da marca, que em realidade depende inteiramente da atuação dispersa desse exército de motoristas.
A realização do trabalho conta com a disposição do trabalhador em aceitar a tarefa oferecida – o que quer dizer um permanente gerenciamento de sua própria produtividade –, mas essa aceitação requer vencer a concorrência entre os motoristas disponíveis. A avaliação da multidão de consumidores fornece os elementos para o ranqueamento dos trabalhadores. Este opera como um critério na determinação – programada, automatizada – de quais trabalhadores terão mais acesso a quais corridas.
Trabalhadores e consumidores tornam-se perfis virtuais, números de um cadastro. A atividade de ambos é material e tangível, é ela a fonte que alimenta o controle sobre o trabalho, sua organização e distribuição no tempo e no espaço, que, no entanto, são programados e executados pelos softwares e seus algoritmos.
Ser um trabalhador-perfil em um cadastro da multidão significa na prática ser um trabalhador por conta própria, que assume os riscos e custos de seu trabalho, que define sua própria jornada, que decide sobre sua dedicação ao trabalho e, também, que cria estratégias para lidar com uma concorrência de dimensões gigantescas que paira permanentemente sobre sua cabeça[4].
A uberização, portanto, consolida a passagem do trabalhador para o microempreendedor. Essa consolidação envolve novas lógicas que contam, por um lado, com a terceirização da execução do controle sobre o trabalho das empresas para um multidão de consumidores vigilantes; e, por outro lado, com o engajamento da multidão de trabalhadores com relação à sua própria produtividade, além da total transferência de custos e riscos da empresa para seus “parceiros”.
3. Mais um passo na flexibilização do trabalho
De saída, o termo flexibilização só tem sentido crítico se o compreendermos como mudanças contemporâneas do processo de trabalho ligadas à relação entre Estado, capital e trabalho; à relação entre inovações tecnológicas, políticas dos Estados nacionais na promoção dos fluxos financeiros e de investimento, aumento do desemprego e de novas formas de exploração que também envolvem mudanças subjetivas do trabalhador. Refere-se à relação entre a mobilidade do capital e a do trabalho em nível global. A flexibilização também pode ser compreendida mais simplesmente como as formas contemporâneas de eliminação de direitos associados ao trabalho e, ainda mais do que isso, da transferência de riscos, custos e trabalho não pago para os trabalhadores. Essa transferência envolve a extensão do tempo de trabalho, assim como sua intensificação, em formas mais ou menos reconhecíveis.
Nas últimas décadas ficou claro que também era possível transferir o gerenciamento do trabalho para o próprio trabalhador – é óbvio que um gerenciamento subordinado, costurado pelas ameaças da concorrência e do desemprego. O fato é que a passagem do relógio de ponto para o relógio de pulso mostrou-se extremamente eficaz na intensificação do trabalho e na extensão do tempo de trabalho. Hoje a jornada de oito horas parece uma lembrança distante para trabalhadores das mais diversas qualificações e remunerações[5].
O cerne da flexibilização em realidade está nesse movimento que transfere para o trabalhador a administração de seu trabalho, dos custos e dos riscos, sem com isso perder o controle sobre sua produção. David Harvey ao tratar da organização na dispersão e João Bernardo[6] ao demonstrar que terceirizar a produção não significa perder o controle sobre a mesma são autores que deixam evidente que a dispersão do trabalho não significou perda de controle do capital ou qualquer tipo de democratização no processo de trabalho. Pelo contrário, o que vimos nestas décadas é a enorme centralização do capital acompanhada por novas formas de intensificação do trabalho, extensão do tempo de trabalho e transferência de riscos e custos para os trabalhadores, em formas cada vez mais difíceis de mapear.
A uberização complementa-se com as terceirizações ao mesmo tempo que concorre com elas. Complementa-se na medida em que é mais um passo na transferência de custos e responsabilidades sobre a produção. Mas é também uma forma de eliminação de empresas terceirizadas que não conseguirão bancar a concorrência com as empresas-aplicativo. É o que vemos no segmento dos motoboys, hoje legalmente reconhecidos como motofretistas. Nos anos 1980, o motoboy era diretamente contratado pela empresa, até mesmo a moto era de propriedade da contratante e não do trabalhador. A partir dos anos 1990 empresas terceirizadas de entregas espraiam-se pelo mercado. Hoje são mais de 900 mil motoboys no Brasil, na cidade de São Paulo provavelmente mais de 200 mil. Esse imenso exército de motoqueiros – que dão suas vidas e pernas cotidianamente para garantir a circulação de bens de consumo e de documentos – foi se expandindo juntamente com a terceirização de seu trabalho. A extensão do crédito para os mais pobres permite a aquisição financiada da moto; os celulares tornam-se instrumento de trabalho popular, o que reconfigura toda a logística e o ritmo de trabalho desses profissionais; a baixa qualificação exigida e a remuneração mais alta que outras ocupações de mesmo nível são elementos que contribuem para a consolidação e o espraiamento das empresas terceirizadas e de uma ampla oferta de vagas para motoboys. Ao mesmo tempo, o crescimento do contingente de trabalhadores e das empresas contratantes também está relacionado ao desenvolvimento de São Paulo como metrópole colapsada na questão da mobilidade urbana e simultaneamente centro da valorização financeira e fundiária.
Nesse universo bem consolidado de empresas terceirizadas e seu enorme exército de trabalhadores, adentram os aplicativos de motofrete. Estão há menos de cinco anos no mercado, não há dados precisos, mas já contam com a adesão de dezenas de milhares de motofretistas em São Paulo. Para ser um entregador da Loggi o motoboy torna-se um microempreendor MEI[7] e tem de estar regulamentado como motofretista[8]. Os fundadores da Loggi entraram no mercado criando um nicho que não existia até então. Assim como o Uber, o aplicativo Loggi conecta consumidores e motoristas (neste caso, motofretistas); define o valor da entrega, retendo uma comissão de 20% por essa mediação; automatizou a logística, desenvolvendo um software que geolocaliza os motofretistas disponíveis e os consumidores. O consumidor faz um pedido, a plataforma online torna o pedido visível para os motofretistas mais próximos do ponto de partida, quem aceitar primeiro leva. Motofretistas são mapeados antes e também ao longo da entrega. O consumidor tem acesso aos dados do motofretista – nome, foto, avaliação de outros consumidores – e pode acompanhar online seu deslocamento: a vigilância opera como um mecanismo central para a confiança do consumidor. Para o motoboy, os aplicativos podem ser o meio de livrar-se da exploração da empresa terceirizada (que em geral abocanha 40% do valor da entrega realizada) e tornar-se um trabalhador por conta própria, o que, por enquanto, pode proporcionar-lhe rendimentos maiores. Trabalhar por conta própria requer abrir mão de direitos (caso o motoqueiro seja formalizado) e enfrentar a relação permanente entre concorrência e rendimentos: quanto mais trabalhadores aderirem aos aplicativos, menor será a possibilidade de ganho e provavelmente maior será o tempo de trabalho[9].
Ainda, é possível a articulação e uma retroalimentação entre uberização e terceirização clássica. Para muitos, hoje o aplicativo e as terceirizadas se combinam: o motofretista preenche com entregas ofertadas no aplicativo os poros de não-trabalho na sua jornada para as terceirizadas – uma estratégia que requer o saber-fazer de sua própria logística.
4. O admirável mundo do e-marketplace
Para compreendermos a uberização temos de enfrentar os termos já muito familiares ao mercado, mas pouco apropriados pelas armas da crítica (para onde mirar?). A economia digital hoje é o novo campo da flexibilização do trabalho, enquanto um campo virtual que conecta a atividade de consumidores, trabalhadores e empresas, sob formas menos reconhecíveis e localizáveis.
Atualmente, olhando apenas para o Brasil, motoristas, motofretistas, caminhoneiros, esteticistas, operários da construção civil, trabalhadores do setor de limpeza, babás, assim como advogados, médicos, professores, entre outros, contam com aplicativos que possibilitam a uberização de seu trabalho. O mercado de trabalho em geral agora é permeado por um espaço virtual de compra e venda de trabalho, conhecido como e-marketplace. Trata-se de um universo virtual extremamente propício para a transformação de trabalhadores em microemprendedores, assim como de trabalhadores em trabalhadores amadores. Como me explica o diretor de uma empresa-aplicativo de motofrete em São Paulo, o “e-marketplace é um lugar onde pessoas se encontram para fazer compras. Somos um lugar onde pessoas que procuram motofrete encontram motofretistas.”
O e-marketplace tornou-se um universo extremamente profícuo e lucrativo, fomentado pelas chamadas startups, que são novos modelos de empresa. Loggi, Uber, Google, Facebook são exemplos de startups que deram certo. Startup nomeia a combinação contemporânea entre inovação, empreendedorismo e um amplo mercado de fundos de investimento (os chamados investidores-anjo). São pequenas empresas de alto potencial lucrativo; a inovação aqui se refere ao desenvolvimento tecnológico, mas também à possibilidade de criarem novos modelos de negócios. Segundo a revista Exame, “uma startup é um grupo de pessoas à procura de um modelo de negócios repetível e escalável, trabalhando em condições de extrema incerteza”. As startups dão uma espécie de materialidade ao espírito empreendedor do capitalista contemporâneo e a um novo formato de futuras corporações: a empresa Uber é o exemplo de startup bem sucedida; como narra seu site, foi criada em 2008, quando dois amigos iluminados, andando nas ruas de Paris, se deram conta de que a dificuldade para conseguir um táxi era em realidade um belo nicho de mercado. Lançada no mercado em 2010, a empresa hoje atua em 540 cidades pelo mundo. Em 2016 seu valor de mercado era de mais de 64 bilhões de dólares. Livrar-se dos custos do trabalho mantendo os ganhos e controle sobre a produção: as startups que se firmam como empresas-aplicativo – tal como as compreendo aqui – concretizam o auge do modelo da empresa enxuta, com um número ínfimo de empregados e milhares de empreendedores conectados, de consumidores engajados, de trabalhadores amadores. São fundamentais na consolidação do e-marketplace; mas, se aparecem como mediadoras entre oferta e demanda (tais como a Amazon; o site de sebos Estante Virtual; os aplicativos móveis para táxis, como Easytaxi; sites de vendas de roupa online, como Dafiti), em realidade parte dessas empresas promove uma imensa reorganização do mundo do trabalho, estabelecendo novos nichos para diversas ocupações, novas formas de controle sobre o trabalho, novas experiências do consumo.
5. Crowdsourcing: a multidão produtiva de trabalhadores amadores
A multidão como um bom negócio. Em 2008, o jornalista Jeff Howe cunhou o termo crowdsourcing[10]. O outsourcing teria chegado ao seu novo estágio, a crowd constituía-se como a nova fonte das terceirizações. Navegando na celebração da economia compartilhada, o autor em realidade desvendava a enorme transferência de trabalho das empresas para os usuários navegantes do ciberespaço. O debate é longo e complexo. O que somos nós, usuários do Facebook? A cada post, um cent, não para nós, é claro. O que torna a empresa uma das de maior valor de mercado no mundo senão a participação de seus usuários? O que faz do Youtube o Youtube senão a produção e uploads e visualizações permanente de seus usuários? Seria essa atividade trabalho? Mas não é preciso enveredar por esse caminho complexo das atividades criativas de consumidores que se traduzem magicamente em lucro para empresas. Atualmente, a transferência de trabalho na forma trabalho está explícita em diversos sites que contam com a adesão da multidão de usuários-trabalhadores. No início dos anos 2000, a NASA criou o projeto Clickworkers e com ele descobriu que não precisava ter trabalhadores contratados para identificar elementos como crateras nas fotos de Marte: após testar a multidão, comprovou que esta era tão eficiente e muito mais rápida no cumprimento da tarefa, realizada gratuitamente como forma de “colaboração para o futuro”. O site Innocentive hoje congrega cientistas uberizados com corporações como Procter & Gamble, Johnson’s & Johnson’s. Estas perceberam que seus departamentos de pesquisa e desenvolvimento podem se estender aos laboratórios improvisados de profissionais em busca de complemento de renda ou apenas motivados pelos “desafios” lançados no site. As soluções propostas pelos usuários podem ser patenteadas pelas empresas, a contrapartida para o usuário selecionado são as premiações em dinheiro.
O crowdsourcing só é possível se o trabalhador for o trabalhador amador. O que vamos nos deparando é com uma perda – apropriada de forma lucrativa – do lastro do trabalho. A multidão de trabalhadores realiza trabalho sem a forma socialmente estabelecida do trabalho, em atividades que podem transitar entre o lazer, a criatividade, o consumo e também o complemento de renda. Trata-se de uma ausência da forma concreta do trabalho, o que significa a plena flexibilidade e maleabilidade de uma atividade que, entretanto, se realiza como trabalho (estaríamos vendo o que Francisco de Oliveira, há 14 anos, denominou de a plenitude do trabalho abstrato[11]?). O motorista Uber não é um motorista profissional, como o taxista. O resolutor de enigmas do Innocentive pode até ser um empregado de algum departamento de Pesquisa e Desenvolvimento, mas enquanto usuário, é um cientista amador. Não há local de trabalho definido, não há vínculos, não há dedicação requerida, não há seleção, contrato ou demissão (ainda que, como vimos, a concorrência opera permanentemente, de forma difusa e ilocalizável). Digamos que, na contemporaneidade, todo trabalhador é um potencial trabalhador amador. Assim como o motofretista combina seu trabalho na terceirizada com o do aplicativo, assim como o engenheiro pejotizado passa seus dias entre o computador e a direção do carro Uber, trabalhadores dos mais diversos perfis socioeconômicos engajam-se em atividades que não têm um estatuto profissional definível, mas que podem ser fonte de rendimento, de redução de custos, ou mesmo do exercício de sua criatividade.
6. Da viração para a Gig economy
Voltando para os salões de beleza, o trabalho tipicamente feminino oferece-nos as raízes da flexibilização do trabalho que atravessa o mercado de cima a baixo. A indistinção entre o que é e o que não é tempo de trabalho, a fusão entre esfera profissional e esfera privada e a impossibilidade de mediações publicamente instituídas na regulação do trabalho, a indefinção quanto ao que é e o que não é trabalho são alguns dos elementos que costuram a vida das mulheres. No mais precário trabalho da costureira em domicílio, da empregada doméstica, da dona de casa podemos encontrar elementos que hoje tecem a exploração do trabalho de forma generalizada[12]. Olhando para uma ocupação tipicamente feminina, foi possível reconhecer tendências em curso no mercado de trabalho que hoje desembocam na forma visível da uberização. As revendedoras de cosméticos, só para a empresa Natura, hoje são mais de 1,4 milhão de mulheres no Brasil. Com os mais diversos perfis socioeconômicos, diaristas, secretárias, professoras, donas de casa, entre tantas outras, combinam sua profissão, ou a ausência dela, com as revendas. As revendas têm uma capilaridade impressionante com a vida pessoal e com outras ocupações. Vender ao longo da jornada de trabalho na escola, no escritório, vender nas festas de família, promover oficinas de maquiagem nas férias, distribuir produtos na repartição pública: o que a pesquisa evidenciou foi uma plena adesão a um trabalho sem forma trabalho, e é justamente essa falta de formas que possibilita sua permeabilidade com outras atividades.
A empresa transfere para a multidão de trabalhadoras uma série de riscos e custos, e conta com uma dimensão não contabilizável e não paga do trabalho dessas mulheres. O espaço da casa, o ambiente de trabalho, o investimento em produtos para uso próprio como meio de venda, as relações pessoais funcionam como vetores para venda e também para a promoção da marca. Mas o que mais nos interessa aqui é perceber a atual adesão de 1,4 milhão de mulheres, somente no Brasil, somente para uma empresa, ao trabalho amador. O trabalho sem forma trabalho, sem estatuto de trabalho, que opera como um meio de complemento de renda, como um exercício de uma identidade profissional indefinida, como facilitador para o consumo. Do lado da empresa, o trabalho amador informal está muito bem amarrado, traduz-se em informação, em uma fábrica que tem sua produção pautada pelo ritmo das vendas desse exército gigantesco.
O motorista Uber tem com seu trabalho uma relação muito parecida com a da revendedora Natura: um complemento de renda advindo de uma atividade que não confere um estatuto profissional, um bico, um trabalho amador, que utiliza o próprio carro, a destreza do motorista, suas estratégias pessoais e sua disponibilidade para o trabalho.
Olhando para esses trabalhadores, vemos em ato a viração, tema atual e ao mesmo tempo constitutivo do mercado de trabalho brasileiro desde sua formação. A viração – e remeto-me ao uso que Vera Telles fazia do termo já no início dos anos 2000[13] – é pouco tratada nos estudos do trabalho brasileiros, inclusive na produção e análise de dados sobre emprego/desemprego; entretanto é constitutiva da vida e da sobrevivência dos trabalhadores de baixa qualificação e rendimento. O “viver por um fio”[14] das periferias brasileiras significa um constante agarrar-se às oportunidades, que em termos técnicos se traduz na alta rotatividade do mercado de trabalho brasileiro, no trânsito permanente entre trabalho formal e informal (como demonstra Adalberto Cardoso[15]), na combinação de bicos, programas sociais, atividades ilícitas e empregos (ver pesquisas do viver na periferia, em especial os coordenados por Gabriel Feltran, Vera Telles e Cibele Rizek[16]). A trajetória profissional dos motoboys entrevistados deixa isso evidente. Hoje motoboy-celetista e entregador de pizza, amanhã motofretista-MEI, ontem montador em fábrica de sapatos, manobrista, pizzaiolo, feirante, funileiro, funcionário de lava-rápido. Motogirl hoje, antes diarista, copeira, coordenadora de clínica para viciados em drogas. Motofretista, serralheiro, repositor de mercadorias; confeiteiro e também ajudante de pedreiro. Proprietário de loja de bebidas, trabalhador na roça, funcionário do Banco do Brasil e hoje motofretista autônomo. Motoboy hoje, antes faxineiro, porteiro e cobrador de ônibus. Este é o movimento com que grande parte dos brasileiros tecem o mundo do trabalho.
Mas a viração agora já tem nome internacional e globalizado, seguimos na vanguarda do atraso: a gig economy[17] nomeia hoje o mercado movido por essa imensidão de trabalhadores que aderem ao trabalho instável, sem identidade definida, que transitam entre ser bicos ou atividades para as quais nem sabemos bem nomear. A plataforma online da empresa Airbnb, por exemplo, hoje conta com a adesão de milhares de usuários que disponibilizam seus domicílios para aluguel instantâneo e passageiro; atuando como microempreendedores amadores, tornam-se uma espécie de administradores de suas próprias casas. A gig economy é feita de serviços remunerados, que mal têm a forma trabalho, que contam com o engajamento do trabalhador-usuário, com seu próprio gerenciamento e definição de suas estratégias pessoais. A gig economy dá nome a uma multidão de trabalhadores just-in-time (como já vislumbrava Francisco de Oliveira no início dos anos 2000 ou Naomi Klein ao mapear o caminho das marcas até os trabalhadores)[18], que aderem de forma instável e sempre transitória, como meio de sobrevivência e por outras motivações subjetivas que precisam ser mais bem compreendidas, às mais diversas ocupações e atividades. Entretanto, essas atividades estão subsumidas, sob formas de controle e expropriação ao mesmo tempo evidentes e pouco localizáveis. A chamada descartabilidade social também é produtiva. Ao menos por enquanto.
Notas
[1] Quando da sanção, o presidente do SEBRAE, Guilherme Afif Domingos, adiantou: “o setor de beleza será o modelo para a terceirização em todos os setores”.
[2] O Contrato Zero Hora já abrange 3% da força de trabalho no Reino Unido, mais de 900 mil trabalhadores, e cresce exponencialmente a partir de 2012. O contrato regulamenta a condição de trabalhador just-in-time, possibilitando às empresas a utilização da mão de obra de acordo com sua necessidade, a custos e encargos reduzidos.
[3] Para discussão sobre o trabalhador amador: Dujarier, M. Le travail du consommateur. Paris, La Découverte, 2009. Abílio, L.C. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo : Boitempo, 2014.
[4] Fazendo o cálculo custo-benefício, centenas de motoristas Uber concluíram que custos com o desgaste do carro, entre outros, são maiores na realização de pequenas corridas. Uma das saídas encontradas foi buscar as corridas mais longas a partir do aeroporto de Guarulhos. Essa decisão se traduziu na formação de bolsões de estacionamento, nos quais formam-se gigantescas filas de espera pelo próximo trabalho. O motorista pode passar horas (12 horas, como diz a notícia) esperando por um chamado vindo do aeroporto – o qual ele tem de aceitar sem saber seu destino nem o valor a ser ganho. Motoristas passam o dia jogando baralho e dominó, e em torno deles já se formou uma rede de trabalhadores informais fornecedores de marmitas, bebidas, banheiros químicos.
[5] Na pesquisa que realizei com motofretistas ficou claro que a maioria dos entrevistados tem uma jornada de 14 horas por dia ou mais sobre a moto, em meio ao trânsito de São Paulo.
[6] Harvey, D. A condição pos-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo : Loyola, 1992. Bernardo, J. Democracia totalitária: teoria e prática da empresa soberana. São Paulo: Cortez, 2004.
[7] No Brasil a uberização é ainda potencializada por uma nova figura jurídica, criada no governo Dilma, do Microempreendedor Individual (MEI). A princípio estabeleceu-se como um meio para a formalização de trabalhadores informais de baixa renda, que então se tornam pessoas jurídicas, podendo emitir nota fiscal, sem terem as responsabilidades jurídicas de uma empresa. O MEI não pode faturar mais de 60 mil reais por ano e contribui para a Previdência Social, tendo acesso a benefícios sociais tais como auxilio maternidade, auxílio doença e aposentadoria. A figura do MEI tornou-se ao mesmo tempo instrumento governamental para a redução da taxa do trabalho informal no Brasil e veículo extremamente eficaz da pejotização dos trabalhadores de baixa qualificação e rendimento.
[8] Em 2009 o governo Lula reconheceu e regulamentou a profissão de motofretista e mototaxista. As prefeituras encarregam-se das regulamentações locais. Em São Paulo a regulamentação foi o mote de diversas manifestações em que centenas de motofretistas bloquearam vias principais da cidade com seu instrumento de trabalho. A regulamentação envolve uma série de custos para os motoboys. Até hoje, apesar de estar implementada na cidade de São Paulo, não é fiscalizada, permanecendo opcional para o trabalhador. As empresas-aplicativo de motofrete cadastram apenas profissionais regularizados. Para elas a regulamentação é extremamente propícia, na medida em que certifica o trabalhador autônomo, operando como uma forma de burocratização da relação de confiança que é fundamental para que o consumidor contrate o serviço. Assim sendo, os motoboys que trabalham com aplicativos são motofretistas-MEI.
[10] Howe, Jeff. Crowdsourcing: How the power of the crowd is driving the future of business. Nova York, Rondon House, 2008.
[11] Oliveira, F. Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
[12] Ver seções “O flex é feminino” e “O sistema de vendas diretas e a exploração do trabalho tipicamente feminino” em Abílio, L.C. Sem maquiagem.., cit.
[13] Telles, V. Mutações do trabalho e experiência urbana. Tempo social, n.18, v.1, 2006, p. 173-95.
[14] Castel, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.
[15] Cardoso, A. Ensaios de sociologia do mercado de trabalho brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2013.
[16] CABANES, R.; GEORGES, I.; RIZEK, C. & TELLES, V (orgs.). Saídas de emergência: Ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo. São Paulo: Boitempo, 2011; FELTRAN, G. O valor dos pobres. Cadernos CRH, Salvador, v.27, n.72, p. 495-512, Dez. 2014; TELLES, V. S.; CABANES, R. (Orgs.). Nas Tramas da Cidade – trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.
[17] Gig economy é o termo que hoje nomeia a sobrevivência por meio de bicos, contratos de trabalho temporário, atividades como a do Uber. O termo dá a dimensão da globalização da viração (ver aqui e aqui).
[18] Oliveira, F. Passagem na neblina. In: Stédile, J., Genoíno, J. (orgs.) Classes sociais em mudança e luta pelo socialismo. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. Klein, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. São Paulo: Record, 2002.
Leia mais notícias, entrevistas e depoimentos sobre a exploração do trabalho via aplicativos na série Luta nos aplicativos publicada no Passa Palavra.
Artigo excelente que mexe com uma forma extremamente contemporânea de trabalho. Todavia, para além do lado explorador danoso da questão, há que se ver que essa uberização das atividades implica em mais autonomia para @ trabalha@r e, do que venho conversando com “colaboradores” desses aplicativos, isso tem aparecido como uma enorme vantagem. Ou seja, não ter um chefe direto que te dá ordens e não te deixa faltar quando você adoece, é apontado por muit@s como uma vantagem digna de abandonar empregos de carteira assinada. O que a autora pensaria sobre isso? Parabéns pela publicação.
O texto coloca em vista uma discussão interessante sobre uma tendencia que tem despontado em alguns setores do capital, tendencia essa que é importante para quem quiser entender o capital em sua totalidade.
Se de um ponto de vista teorico marxista, não consegue se explicar e entender as 1,4 milhões de vendedoras da Natura dentro da classe trabalhadora brasileira, se não se reconhece e explica as centenas de milhares de motoboys pelo Brasil e os outros tantos de trabalhadores de Uber, então o buraco nessa visão teorica é bastante significativo.
Esse é um dos pontos de partida da questão. Um dos motivos que me trouxe de uma forma empolgada a ler esse texto foi pela segunda parte do nome “subsunção real da viração”, onde imaginei que a subsunção real nesses setores de trabalho seria um elemento tratado durante o texto. Infelizmente foi apenas uma expressão no nome do texto.
Minha empolgação com esse tema aparece ao entender e concordar com Marx em que a subsunção real do trabalho ao capital ser uma das caracteristicas fundamentais do modo de produção especificamente capitalista.
Acho que o texto não capta nessa tendencia de uberização como particular em apenas alguns setores especificos do capital e em condições bastante particulares. Coloca como se fosse uma tendencia geral, considero isso um erro bem grande ao se tentar olhar para como essa tendencia se insere na totalidade.
Alguns elementos importantes para seguir no apontamento da critica, e analisar de setores da classe trabalhadora e os setores do capital, são algumas coisas do Capital para como olhar pra a estrutura economica em geral e a sua dinamica interna tipicamente capitalista. Na “contribuição a critica da economia politica” o marx vai fazer algumas diferenciações importantes entre a produção, circulação, distribuição e consumo, diferenciando entre elas embora estejam entrelaçadas e isso vai seguir por toda a obra do capital como um elemento completamente fundamental em que essa divisão não é uma abstração geral mas que pauta o entendimento da diferenciação, entre dinamicas diferentes de trabalho em esferas diferentes (o capitulo do livro 1 sobre a “cooperação” desenvolver as dinamicas gerais do trabalho na esfera da produção e, eu diria de forma mediada, do trabalho na esfera da circulação, do livro 2 sobre a circulação/dinamica comercial e parte do 3 sobre o capital bancario)
Durante todo o capitulo sobre cooperação e manufatura no trabalho mostra elementos da socialização do trabalho, utilização de maquinas e ferramentas de forma coletiva, relação entre trabalho coletivos em subsunções ainda formais de trabalho ao capital e mostra o maquinario, o trabalho coletivo em grande escala, socialização do trabalho e uma força motriz constantes como elementos que abrem a possibilidade para a subsunção passar para uma perspectiva real (mesmo com todos esses elementos juntos, não necessariamente sendo uma subsunção real), vai ser um dos capitulos completamente centrais para entender diferenciação de dinamicas produtivas dentro de setores de trabalho dentro do capital hoje, diferença e tendencia dentro deles.
Sobre a diferenciação que faz entre trabalho produtivo em geral (ou seja, que gera um valor de uso), entre trabalho produtivo de um ponto de vista capitalista geral e trabalho produtivo do ponto de vista de seu detentor capitalista individualmente enquanto coisas diferentes, e tambem inseridos em dinamicas diferentes
No decorrer do livro 2 e 3 apresenta a questão dos proletarios que estão empregados na circulação das mercadorias (dentro da esfera da circulação no capital comercial e bancario), e não na produção de mercadorias (materiais e imateriais) não produzirem mais-valia mas do ponto de vista dos capitalistas que os detem, serem trabalhadores produtivos dado que para sua acumulação de lucro é ele expropria trabalho não pago deles e que quanto mais trabalho socialmente necessario não pago extrair na realização das mercadorias(em suas trocas), mais vai conseguir acumular capital.
E por ultimo, com duas citações que acho bastante importantes pro tema, com enfase em quando fala em formas de transição e subsunções apenas formais, no capitulo VI inédito o Marx vai abordar alguns setores especificos de trabalho
“Um trabalho de identico conteudo pode ser produtivo ou improdutivo.
[…] Uma cantora que canta como um pássaro é uma trabalhadora improdutiva. Na medida em que vende seu canto é uma assalariada ou uma comerciante. Porém, a mesma cantora contratada por um empresario que a põe a cantar para ganhar dinheiro, é uma trabalhadores produtiva, pois produz diretamente capital. Um mestre-escola que ensina outras pessoas não é um trabalhador produtivo. Porém um mestre escola que é contratado com outros para valorizar, mediante o seu trabalho, o dinheiro do empresário da instituição que trafica com o conhecimento é um trabalhador produtivo. Mesmo assim, a maior parte destes trabalhadores, do ponto de vista da forma, apenas se submetem formalmente ao capital: pertencem às formas de transição.[…]”
“(no caso da produção não material, mesmo quando é efetuada com vistas exclusivamente a troca e mesmo que crie mercadorias, existem duas possibilidades)
1. [Produção] Resulta em mercadorias, valores de uso, que possuem uma forma autônoma, distinta dos produtores e consumidores, quer dizer, podem existir e circular no intervalo entre produção e consumo como mercadorias vendáveis, tais como livros, quadros, em suma, todos os produtos artísticos que se distinguem do desempenho do artista executante. A produção capitalista aí só é aplicável de maneira muito restrita, por exemplo, quando um escritor numa obra coletiva – enciclopédia, digamos – explora exaustivamente um bom número de outros. Nessa esfera, em regra, fica-se na forma de transição para a produção capitalista, e desse modo os diferentes produtores científicos ou artísticos, artesãos ou profissionais, trabalham para um capital mercantil comum dos livreiros, uma relação que nada tem a ver com o autêntico modo de produção capitalista e não lhe está ainda subsumida, nem mesmo formalmente. É a coisa em nada se altera com o fato de a exploração do trabalho ser máxima justamente nessas formas de transição.
2. A produção é inseparável do ato de produzir, como sucede com todos os artistas executantes, oradores, atores, professores, médicos, padres etc. Também aí o modo de produção capitalista só se verifica em extensão reduzida e, em virtude da natureza dessa atividade, só pode estender-se a algumas esferas. Nos estabelecimentos de ensino, por exemplo os professores, para o empresário do estabelecimento podem ser meros assalariados; há grande número de tais fábricas de ensino na Inglaterra. Embora eles não sejam trabalhadores produtivos em relação aos alunos, assumem essa qualidade perante o empresário. Este permuta seu capital pela força de trabalho deles e se enriquece por meio desse processo. O mesmo se aplica às empresas de teatro, estabelecimentos de diversão etc. O ator se relaciona com o público na qualidade de artista, mas perante o empresário é trabalhador produtivo.”
É central perceber que os processos de trabalho, de longe mais discutidos e apontados nesse texto, estejam na esfera da circulação(sendo na realização da troca de mercadorias, e não na produção delas, ou no setor de transportes, que o marx vai classificar como um setor da produção dentro da circulação) portanto tendo de forma mediada, ou simplesmente não tendo, certas caracteristicas e tendencias gerais do trabalho dentro da esfera da produção (tendencia de concentração de trabalhadores em certos locais de trabalho, composição organica muito crescente, divisão do trabalho/trabalho coletivo de forma crescente dentro dos processos produtivos, a subsunção real do trabalho ao capital ser a dinamica que pauta tudo).
Todos os trabalhos apontados para essa uberização são trabalhos bastante pouco socializados/coletivizados, uma cabelereira corta um cabelo e não uma equipe, um motorista de uber dirige o carro sozinho, um médico clinico faz uma consulta, uma vendedora da Natura vende os produtos sozinha, um professor da uma aula sozinho.
Tambem não é coincidencia que o trabalho seja remunerado na forma de salario por peça (capitulo sobre salario, livro 1 do capital) que faz com que os proprios trabalhadores trabalhem com intensidade grande para mais receberem e só serem pagos por trabalho feito, com a própria dinamica salarial exercendo supervisão sobre os trabalhadores empregados nessa condição, dado que supervisão junto a outras formas de remuneração para essas funções poderiam ser bastante mais complicadas e deveriam gerar resistencias ao inves de intensificação do ritmo de trabalho. Segue nessa linha de não ser coincidencia que o salario por peça subsista absurdamente mais nessas categorias de trabalho não subsumidos realmente, com trabalho individual bastante diferenciavel entre cada trabalhador do que em trabalhos muito socializados, em bancos e fabricas, como exemplos grandes (embora essa dinamica seja maior do que eles) os salarios por produtividade não são por peça (provavelmente nem poderiam mais ser assim), a socialização do trabalho é grande a ponto das remunerações por produtividade se manterem em torno de coletividades de trabalhadores, por toda a empresa, por fabrica, por setor, mas em geral não mais por peça para cada trabalhador. A dinamica de socialização do trabalho produtivo aponta para mudanças nas formas completamente individualizadas de remuneração por produtividade.
Em geral, os trabalhos apresentados tem uma composição organica de valor de capital no processo produtivo muito baixa (os maiores gastos, muito de longe, são com a força de trabalho e não maquinario, equipamento, estabelecimentos etc) que tambem é uma caracteristica muito mais particular do capital na circulação, sendo diferente dessa dinamica dentro do capital dentro da esfera da produção.
Mesmo nas outras profissões citadas, mas não muito discutidas, “esteticistas, operários da construção civil, trabalhadores do setor de limpeza, babás, assim como advogados, médicos, professores”, em nenhum deles a subsunção avançou plenamente para uma subsunção real do trabalho ao capital e as composições organicas/tecnicas são em geral muito baixas (com o caso da construção civil subsistir composições organicas e técnicas grandes a outras absurdamente baixas no mercado de trabalho hoje, e com um grau alto de confiança diria que a uberização aponta pra esse secundo nicho e não para o primeiro, e com os médicos, imagino que os aplicativos são muito mais para clinicos, onde tambem, embora no setor de saude a composição organica seja muito superior a essas outras citadas, nesse setor especifico da medicina a composição organica é absurdamente baixa).
Nesse meio ai, tem coisas que foram colocadas misturadas como uma coisa só e passam longe de ser.
Setores da esfera de produção que se encontram em momentos de transição, onde o capital ainda tateia em como subsumir realmente o setor mas ja deu a passos largos na sua dinamica de subsunção formal para extrair o maximo de trabalho possivel(o capital ainda, como dinamica geral, não conseguiu adentrar muito em controlar cada aspecto do processo produtivo de uma consulta médica e dividir em diversas tarefas simples a função de um médico-clinico mas ele consegue observar a dinamica geral das consultas e ver quanto tempo é o tempo médio socialmente necessario para realizar consultas e colocar esse tempo como tempo geral para os médicos por consulta e fazer enormes de seus salarios serem por produtividade em torno do numero de atendimentos/tempo de consultas, e mantem isso enquanto tenta adentrar em cada aspecto produtivo de cada consulta, expropriar esses conhecimentos do trabalhador e colocado apenas como um executor coletivo de tarefas simples definidas pelo capital) junto a setores “puros” da esfera de circulação que a unica função é conseguir trocar os produtos, como as 1,4 milhões de vendedoras da Natura, aonde não se tem qualquer perspectiva de subsunção real do trabalho, de maior socialização do trabalho e de incrementos na composição organica, setor que provavelmente vai permanecer com essas caracteristicas até o fim do capital.
Enfim, do que defendo como uma analise teorica marxista sobre essa questão, essa tendencia de uberização passa longe de ser uma tendencia geral do mundo do trabalho e apenas se coloca em setores especificos do capital, alguns de forma mais permanente e provavelmente estrutural, outros de forma transitoria (por mais curta ou longa que essa transição aconteça) até seguirem a tendencia geral dos setores gerais mais bem estabelecidos de acumulação capitalista da produção, onde essa uberização não é discutida no texto, acredito que sendo um dos motivos que não faria sentido ela ocorrer dada a dinamica produtiva atual neles.
De uma perspectiva empirica de analise sobre essa Gig economy, e não só de uma perspectiva teorica de como essa tendencia não é geral, não vai apenas crescer e não vai tomar a maioria dos empregos hoje, o passapalavra ja publicou um texto traduzido do Kim Moody fazendo uma analise empirica desde 1995 até 2015 do trabalho nos EUA, mostrando empiricamente que essa Gig Economy não corresponde a o que de fato ocorreu no mercado de trabalho nos ultimos 20 anos la (embora é claro que a precarização cresceu, o que são coisas absurdamente diferentes).
http://passapalavra.info/2016/12/110082
Acredito que pra qualquer tentativa mais solida de defender uma Gig economy ou uberização geral do trabalho, é necessario passar por analisar series historicas mais gerais e observar essas tendencias por elas, e não apenas a partir de um recorte temporal de setores particulares em que essas tendencias podem se manter justamente pelas caracteristicas desses setores.
Excelente texto, Ludmila! Muito esclarecedor!
Pensando na minha profissão (professor)… a chamada uberização do trabalho também já chegou. Com aplicativos como o Apprise (ou AulasUP) o aluno consegue pedir uma aula particular em domicílio de forma instantânea. Nesse aplicativo, o professor também pode anunciar suas aulas.
Isso sem contar outras formas de precarização e intensificação do trabalho como plataformas de relacionamento online de professores/alunos/pais. Nessas plataformas, os professores postam atividades extras, ficam disponíveis para tirar duvidas etc. E o pai-consumidor pode controlar esse trabalho, supostamente em beneficio do aprendizado do filho. Em alguns casos, o processo de terceirização garante espaço para que empresas formulem provas, criem avaliações que simulem as provas externas, corrijam redações (mas sem que isso alivie a rotina do professor, pois os resultados e a concorrência entre as escolas é uma forma de trazer a lógica concorrencial para o espaço escolar).
Na escola pública, as plataformas online são obrigatórias. No final do ano, não saímos de férias enquanto o SGP (plataforma da prefeitura de São Paulo) não estiver preenchido. Mas como todos sabem, existe um agravante, o wifi costuma não funcionar nas salas de aula. Ou seja, a plataforma que deveria “facilitar” o trabalho é apenas mais um trabalho que o professor de escola pública leva para fazer em casa.
O comentário de Danilo foi feito no dia 20/02, às 08 horas. Por um problema técnico ele estava na nossa pasta de SPAM. Ao percebermos o problema alteramos a data do comentário para 22/02 de modo a que ele figure como comentário recente.
Coletivo Passa Palavra
o texto é interessante, e os comentários dão pé para uma boa discussão. entendo que o que Arabel diz é que o trabalho destes “peões” (uber, cabelereira, etc) não é modificado pela dinâmica do capital, apenas no sentido de como são contratados ou de como são remunerados. No mesmo sentido diz o Danilo sobre os professores.
Com relação ao texto do Marx e o conceito de subsunção, entendo que talvez o que vemos com estas novas modalidades de contratação/remuneração/bicos, é que o que o avanço tecnológico do capital permitiu foi um aproveitamento maior da extensão da jornada de trabalho e uma diminuição dos tempos mortos, especialmente na modalidade de receber por serviço entregue. Assim, particularmente do lado destes trabalhos o que vemos é um aumento da mais-valia absoluta, que Marx relaciona com a subsunção formal.
No mesmo caso, o interessantíssimo caso do crowdsourcing de trabalhadores amadores. No caso, a produtividade é aumentada enormemente através da tecnologia, mas depende da extensão do trabalho de um grande número de trabalhadores que as vezes nem sequer é remunerado — vejam o novo documentário do Herzog (Low and Behold), lá aparece um caso de uma empresa que criou um “joguinho” no qual cada usuário pode propor fórmulas químicas em um desafio que depois são testadas pela empresa.
Por outro lado, penso nos antigos serviços de rádio taxi, para comparar com o Uber, e me parece que a subsunção real não ocorre do lado do peão que realiza o serviço de transporte, mas sim do lado dos antigos operadores de telefone que antes tomavam o pedido e encaminhavam para o taxista por rádio. Este é o emprego que está sendo modificado e substituído pela automatização. Quando os carros autônomos estiverem já funcionando em escala comercial, serão então os motoristas — sobrarão apenas aqueles que ajudarão em casos de clientes com deficiências ou outros casos que demandem um serviço diferencial.
o texto e os comentários são muito bons para tratar certos temas.
Concordo com Arabel no sentido de que estes trabalhos não estão entrando na subsunção real, pois não estão tendo um aumento da produtividade da hora trabalhada. O que os aplicativos fazem é flexibilizar ao máximo a jornada de trabalho, podendo assim aumentar a mais-valia absoluta — isto é subsunção formal. No mesmo sentido vai essa coisa muito interessante que o texto trás, sobre o “crowdsourcing” na forma de uma multidão de trabalhadores amadores que doam tempo de trabalho não remunerado. No novo documentário do Herzog, “Low and Behold”, aparece uma empresa que fez um joguinho simples com fórmulas químicas, os jogadores podem vencer desafios e propor novas fórmulas que então são testadas pela empresa. Neste caso o que se está fazendo é absorvendo mais-valia absoluta de uma forma que os trabalhadores nem sintam que estão trabalhando, eles estão apenas passando tempo com recreação lúdica.
Agora, se existe algo nisso tudo que me parece que sim entra na subsunção real é justamente aqueles trabalhos que estão sendo modificados pelos aplicativos. Antes de existir o Uber, você ligava para uma operadora de radio-taxi, que passava as coordenadas para o motorista, etc. Esse trabalho deixa de existir e é substituído pelos programadores que desenvolvem e fazem a manutenção do sistema. O que não falta hoje são projetos de promoção à educação em informática e de hackers do bem. São eles que dinamizam o setor de serviços.
Achei o artigo bárbaro e acompanho tudo que a Ludmila escreve. Eu fico com uma dúvida: isso significa a transformação total do mercado de trabalho ou uma coexistência entre regimes melhores e esses mais recentes e precários? afinal os serviços e a indústria precisa de uma certa diversidade de consumidores. O que essas crescente complexidade de realidades de trabalho pode acarretar para o poder descritivo da categoria de trabalhador?
Discordo dos comentários que apontaram não se tratar de subsunção real e de uma tendência global inquestionável.
Subsunção real.
A subordinação formal do trabalho ao capital se caracteriza por manter a estrutura organizativa do processo de trabalho tal como está, de modo que o capitalista só consegue o incremento da produtividade por meio da extensão da jornada, ou seja, por meio de mecanismos toscos, ligados à violência e pressão física e política contra os trabalhadores.
A subordinação real do trabalho ao capital se caracteriza por renovar a estrutura organizativa do processo de trabalho, o que é possível graças à apropriação capitalista do saber-fazer dos trabalhadores, seus conhecimentos historicamente acumulados do processo de fabricação etc. Aqui o capitalista consegue o incremento da produtividade por meio do aumento de mecanismos mais refinados que levam ao aumento da taxa de exploração pela via do desenvolvimento das forças produtivas: a ciência e técnica a favor da produtividade e da exploração do trabalho. A pressão contra os trabalhadores advém, portanto, de pressões econômicas: ele não possui mais o controle de seu trabalho, não tem mais o saber-fazer, que foi transferido para as máquinas do patrão, está portanto realmente subordinado ao capital, uma vez que só pode realizar-se como “trabalhador” se estiver inserido na relação social com os capitalistas detentores dos meios de produção e dos modos de trabalhar. Em casa, o trabalhador formalmente subordinado é trabalhador, o realmente subordinado é trabalhador apenas potencialmente. Ora vejamos, o Capitalismo vai aprimorando as formas de organização do trabalho, com taylorismo, fordismo, toyotismo e agora, uberismo (não foi o primeiro, mas pela abrangência global provavelmente vai levar o “nome” nos livros de sociologia do trabalho). Cada um destes desenvolvimentos aprimora a exploração do trabalho tanto em termos de aumento e intensificação da jornada (mais-valia absoluta), quanto em termos de refinamento das formas de exploração via desenvolvimento das forças produtivas (mais-valia relativa). A ideia de que o Uber não subordina realmente, mas tão somente formalmente, o trabalho dos motoristas ignora que sem o aplicativo Uber os motoristas são no máximo caronistas. É a mesma situação de um operário querer ser operário em casa, sem a matéria-prima e maquinaria a serem trabalhadas. Além disso a Uber impõe não apenas graus de qualificação, mas formas de trabalho: o carro deve ser relativamente novo, o motorista deve ser despojado em linguagem e tratamento com os clientes, deve-se oferecer água e balinhas e deve-se seguir – a não ser por orientação do cliente – o trajeto indicado pelo aplicativo associado a outro aplicativo, ou Google maps ou Waze, acabando com a festa dos taxistas que davam voltas a mais pela cidade desconhecida pelo passageiro, aumentando o custo da viagem. Os fiscais do trabalhador, a serviço da Uber, são os próprios clientes. Na Uber (e outras empresas por aplicativos) a subordinação do trabalhador ao capital não é apenas real, é hiper ou cyber-real, em especial se pensarmos que tanto o trabalhador quanto o consumidor produzem permanentemente saber-fazer apropriado pelo capital. Isso ocorre, como a Ludmila colocou, no próprio uso de aplicativos e sites como o Google, Facebook etc. Graças à exponenciação da alta tecnologia proporcionada pela internet tornamo-nos interconectados com diversas empresas, fornecendo a elas o ingrediente fundamental dos mecanismos de mais-valia: a informação. A subordinação cyber-real do trabalho ao capital se dá como um tentáculo que liga trabalhador, usuário e empresas. Não é só o trabalhador que se cybersubordina, mas o usuário também. Esse tentáculo se apresenta para nós enquanto ferramenta de entretenimento e de facilitação da vida: o GPS do meu celular indica onde estou, em vez de eu ter que procurar como louco um taxi; no caminho indico um atalho, o aplicativo percebe a alteração de rota e estuda a “dica”, que será adotada nas próximas viagens de outros usuários, garantindo a excelência do serviço. Enquanto esperava “meu Uber”, digitei algo no YouTube ou no Google, alguns bits de informação que somados a outros yottabytes produzidos pela população mundial conectada renderão ao Google uma base de dados a ser vendida e usada lucrativamente etc por empresas e Estados, aprimorando a exploração e dominação às custas do trabalhador, como de praxe, mas sem que este esteja suando. Adicionalmente fornecemos informações úteis para a inteligência estatal e empresarial contra-insurgente, mas isso é outra questão. O fato é que a subordinação é real e cyber-real, determinando não apenas a possibilidade do trabalhador trabalhar, mas a forma como se dará esse trabalho. A manicure ou médico ou professor “de aplicativo” que não executar seu trabalho dentro de padrões médios de qualidade irá para a guilhotina pela via das avaliações dos clientes (fiscais de produtividade) e critérios de seleção dos parceiros Uber, ManiUber, MediUber, ProfeUber. A individualização nas formas de oferecimento do serviço garante que a guilhotina seja percebida como culpa do trabalhador individualmente considerado, um mau empreendedor de si mesmo. Se o toyotismo se caracterizou pela captura da subjetividade, o Uberismo captura nossa alma.
A tendência é global.
A gig economy individualiza a relação entre operário e patrão num nível que vai além do velho contrato de trabalho, forçando, por mecanismos refinadíssimos, o operário a “se vender” num outro nível bastante mais profundo do que a mera venda de sua força de trabalho, que vai até a alma dos sujeitos-empreendedores de si mesmos. É a forma de organização do trabalho mais avançada e poderosa dos dias de hoje, que converte o antigo “bico” em algo permanente e não em algo temporário dada a perspectiva que havia de obtenção de um emprego estável. Pela sofisticação e por dar ao trabalhador uma aparência bastante concreta (por isso “inquestionável”) de liberdade da organização de seu tempo de trabalho ela indica os caminhos futuros do capitalismo em sua plasticidade de formas. A liberdade é falsa não porque o trabalhador não pode faltar ao trabalho sem uma punição, mas porque ele pode faltar e pode trabalhar “quando quiser”, a punição será o rendimento menor e a falha na projeção empreendedora de si enquanto empresário de sucesso, empresário 5 estrelas de sua força de trabalho. Esse meio de organização do trabalho por aplicativos, encarregados de conectar quem oferece e quem busca um serviço, tem potencialidade para se espraiar para praticamente todos os ramos da economia. A Ludmila citou vários, inclusive o setor hoteleiro! Imaginem só, é uma reconfiguração global dos serviços, o setor carro-chefe da economia, e nada impede a Uberização em setores produtivos no sentido da lei da gravidade (que produzem mercadorias que se pode pegar na mão), como bem colocado pela autora quanto à relação com a terceirização etc. A internet representa a maior revolução tecnológica nas forças produtivas “desde a invenção da roda”, como gosta de dizer o João Bernardo, e me parece que com os drones e a uberização estamos tendo uma boa ideia das potencialidades desta ferramenta que com certeza está moldando as relações sociais de agora e do futuro, para o bem e para o mal dos anticapitalistas.
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Penso que uma das vantagens do artigo é não ter se apegado a discussões etéreas em torno de conceito, mas tê-lo traduzido em situações observáveis. Não que o momento do conceito não seja importante, mas talvez estejamos passando por uma quadra histórica em que atentar os sentidos para certas nuances da experiência empírica seja tarefa indispensável para quem queira pôr a teoria de pé e operante para a ação política. Esse caráter exploratório, se acaso torna o artigo suscetível a críticas no que toca ao uso seguro de categorias consagradas, confere-lhe o mérito de nos dar a ver configurações embrionárias e pouco conhecidas de uma realidade em andamento, estimulando a reflexão.
Nesse sentido, tenho acordo com o Pablo quando reforça que Marx chamou de subsunção real o movimento pelo qual determinados ramos da produção eram atravessados pela introdução de novos equipamentos, maquinarias e métodos organizacionais que permitiam que a lógica capitalista se entranhasse em toda a extensão do processo de trabalho. Na prática isso significava a articulação sistemática dos avanços científicos ao processo produtivo, tendo em vista o aumento da produtividade e dos níveis de exploração do trabalho vivo para outro patamar. Muito esquematicamente, o que o conceito de subsunção real do trabalho ao capital procurava descrever era a capacidade de o capital extrair (expropriar) gestos e conhecimentos adquiridos no ato do trabalho – e que, até então, eram inseparáveis de seus executores – e transferi-lo para a nova maquinaria. A partir de então, é o trabalhador que precisa se adaptar ao ritmo ditado pela máquina, e não o contrário. Em outras palavras, o que a subsunção real faz é destacar estes conhecimentos do antigo trabalhador artesão/manufatureiro para cristalizá-lo num aparato tecnológico impessoal, diante do qual o ele se torna um mero agente passivo (um “apêndice”, como se diz).
O significado desta operação era a desqualificação do antigo trabalhador especializado – aquele que, embora já subordinado aos interesses da acumulação, incorporava saberes e métodos laborais sem os quais o processo não se fazia possível. Desta ótica, subsunção real assinala não outra coisa senão o avanço do capital sobre os minúsculos espaços ou resquícios de autonomia de que, em maior ou menor grau, gozam (criam, conquistam) os trabalhadores nos seus ambientes laborais.
É óbvio que transpor a ferramenta explicativa de Marx para pensar mudanças da atualidade é algo que requer ajustes, de modo que o conceito é mobilizado aqui, penso eu, mais como um pontapé para a reflexão do que como fórmula pronta e acabada. Por isso, no meu entendimento, noções como a de subsunção formal e real, mais do que estágios estanques, devem ser tomados como parâmetros que apenas orientam o campo de embates que capital e trabalho travam cotidianamente, uma permanente disputa pelo controle sobre o ritmo e o sentido da produção. E, nesse sentido, penso que a analogia teórica evocada pela Ludmila foi bastante apropriada.
Não por acaso, ela me veio à cabeça há uns dois meses, quando, por ocasião de uma viagem a uma cidade turística brasileira, tomei o serviço do Uber com motoristas que ressentiam de ter de fazer a viagem pelo trajeto dado pelo aplicativo. Por diversas vezes, os motoristas reclamavam que o GPS, ao contrário do que prometia, não indicava o caminho mais rápido para se chegar ao destino; e que este, o melhor caminho, era aquele sabido por eles, os “atalhos” aprendidos por longas vivências e andanças pela cidade. Numa das situações, o motorista teimosamente desviou-se da prescrição. Eu até tentei argumentar que o GPS tem um algoritmo que leva em consideração uma série de variáveis que não apenas a distância, como os semáforos, eventuais acidentes, oscilações do trânsito em função do horário etc, mas ele insistiu no seu caminho. Resultado: apesar de termos saído dois ou três minutos antes da turma que pegou o carro de trás, chegamos dez minutos depois deles.
A resistência em aceitar a “superioridade” do dispositivo eletrônico – em termos de precisão e eficiência no que diz respeito ao deslocamento pela cidade – revela a existência de um conflito, que ora se apresentava como imperícia com o funcionamento do novo aplicativo, ora como uma espécie de orgulho ferido. Mas em qualquer um dos casos, o que se tem é o receio de que um determinado saber específico, acumulado pela experiência na cidade – fator que deveria distinguir o “motorista nativo” do “turista de fora” – tenha o seu estatuto rebaixado, podendo até se tornar obsoleto diante do novo aparato.
Ora, se bem entendida, a ideia de uberização busca descrever precisamente as virtualidades deste momento. Primeiramente, uma tendência a que conhecimentos tácitos adquiridos não só no ambiente de trabalho stricto sensu, mas também na experiência cotidiana pela cidade, passem, num primeiro momento, por procedimentos de codificação/digitalização detalhada para, em seguida, serem plasmados em programas e sistemas informacionais de plataforma proprietária, que, por sua vez, passam a se tornar ferramentas obrigatórias para a realização de certos tipos de trabalho. Como bem lembrado aqui, nem as mais sutis práticas de solidariedade (como a carona), assim como manhas e truques da simples existência cotidiana, passam incólume desses esquemas de codificação.
A segunda característica fundamental que a noção de uberização agrega, a meu ver, é que a função de supervisão e controle seja cada vez mais exercida pela multidão de usuários conectados em rede. Ou seja, a autoridade exterior sobre os processos produtivos, que um dia pertenceu a “ciência” nas primeiras escolas gerenciais, é hoje repassada para a figura do cliente/usuário. E, nesse sentido, a uberização daria continuidade, com graus inimagináveis de capilaridade, a muitos aspectos já apresentados pelo toyotismo. Se se confirma a tendência a que uma multiplicidade de usuários conectados se converta numa espécie de “círculos de controle de qualidade elevados à escala global”, triste terá sido o curso tomado pela multidão tão exaltada por Negri.
Sobre as questões levantadas pelo Arabel, embora me pareçam pertinentes, tenho algumas objeções. Em certo momento, ele argumenta que os processos de trabalho tratados no artigo dizem respeito a setores que apresentam apenas parcialmente, ou mesmo não apresentam, características e tendências gerais do trabalho realizado na “esfera da produção” (grandes concentrações de trabalhadores, composição orgânica crescente, alto grau de divisão do trabalho e subsunção real). Primeiramente é preciso dizer que o artigo da Ludmila parece querer mostrar justamente arestas da realidade atual, ou de uma parte dela, que escapam à perfeição generalizante dos conceitos. Daí, a simples afirmação de que as características apresentadas não se encaixam nos modelos clássicos que dividiam as esferas e os setores da produção não são, por si só, fatores que desabonam a qualidade da elaboração, pois é precisamente para essa aparente discrepância que o artigo quer chamar a atenção. Nesse sentido, não vejo procedência no argumento de que se tratam de trabalhos “pouco socializados” (a cabeleireira, o motorista etc.), pois é precisamente essa individualização que o artigo problematiza, na tentativa de apreender uma mudança.
Mas mais importante do que isso é perceber que, no comentário do Arabel, a descrição feita para demonstrar o suposto caráter pouco coletivo destes trabalhos se concentra em aspectos quase fisiológicos de sua execução, deixando para trás a estrutura técnica e social que lhe dá suporte. Afinal, no quadro hipotético da uberização, as vias não muito ortodoxas pelas quais esse trabalho “individual” se converte em trabalho “coletivo” seriam justamente a novidade permitida pelas novas tecnologias informacionais. O que é um aplicativo senão a extração de saberes e conhecimentos difusamente produzidos pela “inteligência coletiva” e sua posterior cristalização em suportes eletrônicos que permitem que eles sejam padronizados e reproduzíveis em outras escalas e contextos? A socialização aqui está pressuposta na forma técnica e social que determina as condições de realização desse trabalho, e não necessariamente nos aspectos físico-palpáveis do momento de sua realização (ainda que, mesmo neste plano, seja algo para nós pensarmos).
O comentário do Arabel afirma ainda que a forma de pagamento por trabalho feito (ou por peças) é típico de setores que não se inserem na esfera produtiva, onde a regra continuaria sendo a remuneração por produtividade acordada com um coletivo de trabalhadores. Será então o pagamento por peças uma exclusividade do setor de serviços? Muitas experiências se têm desenvolvido na busca de aproximar a indústria automobilística da prática do crowdsourcing, por exemplo. Isso sem falar nas parcerias para transferência de tecnologias, cada vez mais corriqueiras, entre empresas e centros de pesquisas públicos ou privados; nos esquemas de subcontratação em que se imbricam regimes de trabalho e remuneração que sequer devem ter recebido algum tipo de denominação pela sociologia do trabalho. De modo que, a meu ver, é plenamente possível pensar esta tendência se consolidando mesmo nos setores “indiscutivelmente” produtivos. No mais, qual seria o interesse dos capitalistas desses setores em particular (a Fiesp, por exemplo) em fazer avançar alterações na legislação trabalhista que permitam negociações e acordos cada vez mais particularizados?
Alega ainda o baixo grau de composição orgânica dos setores citados no artigo e, por consequência, os entraves para o avanço pleno da subsunção real. Objeção cabível. Dada a própria natureza das capacidades que lhe são exigidas, como gerenciar plenamente o rendimento de trabalhos cujos resultados se objetivam em riquezas sociais escorregadias a esquemas de avaliação quantitativos? Como utilizar unidades homogêneas de medição para avaliar, por exemplo, o nível de “satisfação” proporcionada por um serviço? Como aumentar a produtividade por intermédio de incrementos tecnológicos e maquinários em processos de trabalho onde a participação desses elementos é proporcionalmente pequena em face do volume de aplicação de energias humanas? De fato, é necessário reconhecer que todos estes setores, especialmente os que mobilizam porções maiores de componentes intelectuais e relacionais, são de difícil subsunção.
Mas, em favor da hipótese lançada pelo artigo, arrisco dizer que, em muitos destes casos, o aumento do ritmo e do rendimento do trabalho depende menos das inovações tecnológicas do que das mudanças organizativas no processo de trabalho; na verdade, de uma intrincada articulação entre estes dois fatores. A começar pelos nem tão novos sistemas de avaliação já mencionados acima, em que o gerenciamento dos resultados é feito digitalmente a partir do cliente-usuário. Se a nota média obtida pela motorista ou pela manicure, por exemplo, corresponde a algum conteúdo de verdade em relação ao serviço prestado, isso pouco importa. O importante é que o sistema põe estes trabalhadores em estado alucinado de concorrência entre si, o suficiente para que sua atividade, ainda que envolva alto grau de dedicação pessoal, seja inteiramente heterodeterminada – desde a balinha oferecida, a constante manutenção no veículo, até o sorriso falso que eles são obrigados a dar ao exigente e todo poderoso cliente. Naturalmente isso não seria possível não fosse uma série de arranjos legais/institucionais que difundiram o micro-empresariamento de si principalmente entre os trabalhadores da viração, dado que não ficou de fora do artigo.
Apesar de tudo, é razoável pensar que nestas atividades ainda haja bastante margem para resistências e iniciativas dos trabalhadores, embates pelo controle dos ritmos e dos métodos de trabalho, como no exemplo individual dos motoristas citados acima, além do vários casos coletivos já publicados neste site; tendo sempre em mente que um dos fundamentos da relação das novas tecnologias com as informações geradas em sua órbita de atuação seja o aperfeiçoamento constante do sistema, quase em tempo real, de modo que a assimilação do conflito tende a acontecer em ciclos muito mais rápidos do que estamos acostumados.
Se essa tendência delineada pela Ludmila vai se confirmar e generalizar, eu não sei; mas dá o que pensar. De cara, fica para mim o enorme desafio de reconsiderar a ação política dos trabalhadores no que toca a relação com a organização e distribuição dos tempos de trabalho. Afinal, a luta pela autodeterminação do trabalho, em um nível mais profundo, sempre consistiu numa disputa pelo controle sobre o tempo. A nova subsunção, no entanto, parece ter devolvido o problema para o colo dos trabalhadores, mas não sem antes tê-lo virado do avesso. Formalmente, os trabalhadores uberizados, os empreendedores, são senhores de seu próprio tempo – em tese! Mas o que se verifica, na prática, é que menos controle efetivo se tem sobre a própria vida quanto mais feições de liberdade e autonomia apresenta o trabalho. Portanto, dizer que tudo-está-como-sempre-esteve- e-deveria-estar pode servir como tranquilizante da consciência, ou dar sustentação ideológica para velhas práticas burocráticas, mas não serve para apreender transformações que parecem tocar a fundo a experiência dos trabalhadores.
“o trabalho dos motoristas ignora que sem o aplicativo Uber os motoristas são no máximo caronistas. É a mesma situação de um operário querer ser operário em casa, sem a matéria-prima e maquinaria a serem trabalhadas.”
A analogia do pablo passa muito, mas muito longe mesmo de refletir qual a situação desse trabalhador, que tem um carro, consegue se manter comprando gasolina, paga regularmente a manutenção do carro e tem acesso ao google maps/waze para fazer seus trajetos. Q que falta a ele é a mediação com consumidores em um mercado majoritariamente tomado (pelo uber, 99taxi, os próprios taxistas etc).
A analogia mais proxima seria um artesão que sabe tecer, tem um fiar e material para produzir mas que encontra um problema em onde escoar sua produção, ja que empreendimentos mais produtivos dominam o mercado e tem relações organicas com o capital comercial, que facilita o escoamento da sua produção, enquanto esse trabalhador não.
Essa situação reflete milhares de vezes mais uma subsunção formal do que a analogia apresentada por ele.
Sobre a afirmação que a tendencia é global, a questão fica apenas afirmando sobre como é interessante para o capitalista essa relação de uberização. Eu não discordo que seja.
O ponto é que ao invez de apenas ficar descrevendo como funciona e seus impactos, que é algo que texto da Ludmilla ja faz, não apresenta um ponto de analise teórica sobre como isso é generalizavel, apontando condições da estrutura economica para que esse movimento aconteça.
Parece que a questão do taylorismo, do fordismo e do então uberismo de agora apenas aparecem como escolhas que o capitalista toma livremente, apenas a partir de sua vontade, esquecendo que, de condição para o taylorismo foi necessario uma concentração de trabalhadores em um mesmo local de trabalho, e uma divisão no processo produtivo das tarefas que eram realizadas todas por cada trabalhador para especialização de cada um deles em tarefas simples (ou seja, o processo produtivo tem que ser sido capturado e reintroduzido pelo capital em um nivel minimo para se realizar, assim como só é possivel contratar essa quantidade coletiva de trabalhadores quando a acumulação de capital atinge um patamar minimo), que para o fordismo é necessario uma linha de montagem no processo produtivo (o que coloca diversas questões anterioras e tambem as coloca onde ainda não foi possivel fazer isso acontecer), assim como a utilização da “uberização” se coloca em certas condições estruturais.
O capitalista não escolhe livremente qual a dinamica que esta colocada no seu setor. Ela é limitada por diversos fatores da estrutura economica (e não só juridicos) que tiram a coisa de qualquer cenario onde o patrão apenas olha para as vantagens de possiveis regimes de trabalho e escolhe entre todos os disponiveis.
De resto, segue na afirmação sem nenhuma analise empirica, em oposição ao texto do Kim moddy.
Repito o que ja escrevi, se essa é uma tendencia global, por que então ela não se observa na economia dos EUA como tendencia geral nesses ultimos 20 anos (lugar com certeza ponta de lança na uberização), ou então, se essa analise do Kim moddy esta errada, quais são os erros e onde esta outra analise empirica que monstre o contrário?
O taiguara coloca bem a questão da subsunção real mas acho que falta um elemento que as vezes parece lateral e que é uma mudança central apontado pelo Marx da passagem das manufaturas organicas e heterogeneas para a subsunção real na maquinaria(interessante notar que vai afirmar o caracter tipicamente capitalista da dinamica da maquinaria e não fazer essa afirmação sobre as manofaturas, mesmo que nelas apareçam desenvolvimento por mais-valia relativa), que é o papel do motor, que mantem um ritmo produtivo continuo, regular e permanente de forma impessoal no decorrer de todo o processo produtivo, trocando assim o tempo de trabalho do trabalhador pelo tempo de trabalho da maquina (elemento este que não esta colocado nas profissões apontadas de uberização)
O capital, em subsunção não plenamente reais, ainda não tomou completamente o controle do processo produtivo mas fica no seu entorno. Ele consegue medir o tempo médio de uma consulta médica e colocar esse tempo em cada consulta para batimento de metas, ele consegue calcular com waze/google maps em torno do tempo médio para fazer percurso e pagar menos se o motorista enrolar, mas essas caracteristicas são de processos produtivos em que o trabalhador ainda é o sujeito do processo (mesmo que sendo regulado e pressionado para se manter na produtividade média, e não pouco pressionado), é qualitativamente diferente de quando o tempo se entranha no processo produtivo de forma automatica e se autonomiza dos trabalhadores.
Sobre os aspectos “quase fisiologicos” da função, esse não é um elemento secundario da analise e é desenvolvido de forma completamente colada a questão da composição organi como a composição técnica dos processos de trabalho, de forma esquematica, como e quanto de força de trabalho coloca em movimento tantos instrumentos de produção e com quais qualidades.
É muito diferente o trabalho de um trabalhador que passa por todos instrumentos de trabalho durante o processo produtivo do que uma divisão do trabalho onde trabalhadores são responsaveis por instrumentos diferentes, que tendem a se especializar muito mais nas suas funções especificas do que no caso anterior, mesmo que a composição organica por acaso venha a permanecer igual.
Trocando as palavras então sobre os cabelereiros, esteticistas, maquiadores etc, de “socialização” por trabalhos onde a divisão do trabalho não se adentrou, especializando cada uma das tarefas do processo, que ai são realizadas por apenas um trabalhador que de forma continua e permanente fica, alterando o tipo de trabalho e ferramentas de trabalho durante o processo produtivo. Trabalhos “pouco socializados” porque nas fases produtivas onde se inserem esses trabalhadores, o processo produtivo não ultrapassa o que o Marx apresenta como caracteristica mais basica do trabalho coletivo, que é a cooperação simples (e em varias das profissões discutidas no artigo, não se tem nem cooperação simples dentro da fase do processo produtivo colocado).
Concordar ou não com a procedencia sobre o argumento não muda o nivel de cooperação do trabalho nas fases produtivas onde esses trabalhadores se inserem.
“A socialização aqui está pressuposta na forma técnica e social que determina as condições de realização desse trabalho, e não necessariamente nos aspectos físico-palpáveis do momento de sua realização”
Estão colocados momentos diferentes do processo produtivo que embora se relacionem, e bastante, são momentos diferentes com composições técnicas e organicas diferentes, justamente o momento que determina as condições da realização desse trabalho (que é um processo produtivo em si) e o processo produtivo de sua realização.
A argumentação tenta tornar a segunda, exatamente a mesma coisa que a primeira, e mesmo não sendo disassociaveis, são coisas diferentes.
É como observar durante o desenvolvimento do capital o aparecimento de fabricas empregando centenas/milhares de trabalhadores gerando produtos que, depois de sua passagem pela fábrica, são repassados para trabalhadores (pela historia, geralmente mulheres e crianças em uma profissão que é indisassociavel e surge com essa produção fabril) fazerem o acabamento em suas casas, de forma completamente manual, antes de terem qualidade do produto avaliada caso a caso para definição de remuneração e irem ao mercado como produtos finais.
Essa comparação que você faz não capta a diferença entre os momentos do processo produtivo, afirmando duas coisas que são indisassociaveis como uma só, a interpretação sobre o caso acima, a se observar a diferença entre as composições técnicas e organicas do setor que cria as condições para esse trabalho final, e as próprias desse trabalho final (mais-valia relativa no setor de base se articulando com mais-valia absoluta no acabamento) não é desenvolvida.
Não é porque o setor final da realização do trabalho do uber é um tanto mais entrelaçado com o trabalho que determina as condições de sua realização, que esse ponto anterior se torna diferente.
“O comentário do Arabel afirma ainda que a forma de pagamento por trabalho feito (ou por peças) é típico de setores que não se inserem na esfera produtiva, onde a regra continuaria sendo a remuneração por produtividade acordada com um coletivo de trabalhadores. Será então o pagamento por peças uma exclusividade do setor de serviços?”
Essa afirmação foi pra bem longe da afirmação que eu fiz sobre o salario por peça e os PLR, o setor de serviços, em sua grande maioria, não é pertence então a esfera da produção?…
Precarização de todos os tipo de contratação, multiplicidade de regimes juridicos pra dividir trabalhadores, acordos por empresa ou locais de trabalho passando por cima de sindicatos ou negociação coletivas com toda a categoria.
Essas 3 coisas são situações colocadas de forma geral pra classe trabalhadora, independente do seu tipo de contrato. A uberização é um sistema de contratação especifico que gira em torno de assalariamento por peça, os 3 primeiros casos são questões gerais, essa é uma particular e portanto são coisas qualitativamente diferentes e não tem que ser colocadas juntas como se fossem de mesmo tipo (a não ser que de fato se mostre teorica e empiricamente que essa uberização é uma tendencia global, que acho bem dificil por tudo que ja apontei).
O que acho brisa é que concordo sobre os 2 pontos fundamentais apontados de novidades trazidas por essa uberização como coisas inovadoras, até com mais pontos alem desses, mas como resoluções de apresentarem uma forma completamente nova para conteudos antigos (como a questão da medição de qualidade para cada “peça” produzida, questão nem um pouco nova na historia e em torno do qual se articularam varios conflitos, e a passagem dessa medição para o consumidor e não mais centralizando etc, embora é claro que essa passagem é mais facil, simples e talvez possivel em tipos especificos de processos produtivos) e mesmo assim, isso parecer não ser suficiente.
Terminando com as analogias, é como um embriologista tenta se manter sempre atento a coisas novas e que encontra um ovo, de uma especie não encontrada antes, com dureza, cor ou transparencia e tamanho nunca encontrados antes.
Enquanto alguem aponta que essa nova descoberta apresenta resoluções novas e ainda não vistas em em caracteristicas morfológicas que ovos podem ter mas que ainda sim, é um ovo. Esse embriologista ignora essas observações e não aceita que essa descoberta não seja reconhecida como nada menos do que uma possibilidade de desenvolvimento completamente nova na embriologia….
De resto, boa sorte na busca do interlocutor a quem se direciona essa colocação sobre a tranquilização das consciencias e sustentador ideologico de velhas práticas burocráticas
Arabel, sem o aplicativo Uber os motoristas são no máximo caronistas, seus carros são apenas carros, não são táxis-Uber. No Rio de Janeiro vê-se um táxi há quilômetros de distância, devido ao tom amarelo de suas latarias. A empresa detém a capacidade de pintar os carros com a tinta amarela invisível do Uber, portanto ela detém a capacidade de transformar um meio de transporte em um meio de produção destinado a ser posto em movimento para fins lucrativos e de extorsão de mais-valia. É a mesma situação de um operário querer ser operário em casa, sem a matéria-prima e maquinaria a serem trabalhadas, pois o que os motoristas têm é um mero carro, um mero celular com Waze. Tente ser Uber com um carro e um Waze, quero ver. Repito, a Uber não apenas dá os clientes e os meios de escoamento da mercadoria-transporte, ela converte o “trabalhador em potência” (dynamis) em um “trabalhador em ato”. Com esse poder definidor da própria essência do trabalhador-Uber, e com o controle do processo de trabalho do motorista de modo articulado ao processo de valorização, a subsunção que se opera é não só real, mas hiper-real, pelo que já apontei acima e, na minha opinião, pelo que está no texto da Ludmila. Voc~e argumentou em resposta ao Taiguara que não há na uberização o elemento de troca do tempo de trabalho do trabalhador pelo tempo de trabalho da maquina. Como não, se até o trajeto é determinado pelo Waze? Como não, se o motorista lerdo será mal avaliado, e o apressadinho também? Como não, se a baixa remuneração impõe – como muitos me contaram – que o sujeito que trabalha de Uber 100% (em vez de ser apenas um “complemento de renda”) precisa trabalhar mais de 12 horas por dia? A opressão dos patrões quanto ao tempo de trabalho dos operários é algo tão odioso e traumático que muitas pessoas estão avaliando a “liberdade” do motorista em “decidir não trabalhar” “quando quiser” como se estivéssemos face a face com o reino da liberdade, quando a imposição para o esfacelar-se trabalhando foi intensificada e aprimorada, continuando a vir, em duas frentes: de dentro (empreendedorismo de si mesmo, que antes era mero puxa-saquismo interessado em promoção de cargo ou aumento salarial) e de fora, pelas velhas leis da economia. Enfim, a máquina dita o ritmo, e nesse caso não dá nem pra ser luddita.
Não obstante, se for formal – e não nego que contém elementos de mera subsunção formal, afinal são apenas categorias de análise, óculos – o que muda? O que muda na luta contra essa forma renovada de organização da exploração por meio de aplicativos em um mundo conectado? O essencial é isso, e por isso o mais grave desse debate é sua insistência de que não se trata de uma tendência. O curioso é que ao argumentar isso você fala nos últimos 20 anos, quando Ludmila está falando dos próximos 20 anos. Talvez o único problema da análise dela – aos seus olhos – seja seu caráter precoce, quase visionário. Imagino que todos que fazem teoria social não dogmática passam por isso, encarar e teorizar sobre o novo é pedreira.
O método de exploração por aplicativo e ferramentas de conexão entre pessoas e entre coisas via internet aponta para o futuro das relações de exploração, isso vem sendo apresentado não só diante dos nossos olhos nas economias modernas ao redor do planeta, mas também nos principais órgãos de informação capitalistas, a começar pelo mais competente deles, o The Economist (um único exemplo: http://www.economist.com/news/leaders/21706258-worlds-most-valuable-startup-leading-race-transform-future). Além disso, vê-se a tendência com uma rápida olhadinha no ramo das TOP 500 maiores empresas do globo e na variação do número de empresas de tal ou qual ramo quando se compara ano a ano: crescem os serviços e tecnologia, ou numa rápida olhada no caráter mais ou menos tecnológico dos cursos profissionalizantes, além das sugestões e “lista de deveres” que analistas do campo da administração e economia colocam como necessários para o sucesso das empresas hoje em dia: aí valoriza-se, devidamente, a “imagem” da empresa (consciência ambiental, cidadania etc), a maior conectividade da empresa com seus fornecedores e com os clientes etc. e muitas vezes tais diretrizes envolvem a criação de um app específico para a empresa ou então o cadastro e “parceria” da empresa com algum app já de sucesso – algo meio óbvio, afinal hoje todos possuem e usam o tempo todo esses microcomputadores de bolso, que são para as empresas simultaneamente veículos midiáticos, pontes para o escoamento das mercadorias etc etc etc.
Por fim, você me acusou de ficar apenas descrevendo como funciona o Uber “o que o texto da Ludmila já faz” em vez de apresentar “um ponto de análise teórica sobre como isso é generalizável, apontando condições da estrutura econômica para que esse movimento aconteça”. Ora, o texto da Ludmila e alguns dos comentários apresentam justamente como o método é generalizável, além de dar exemplos concretos e nomes nos bois. Não sei mais o que você espera. Talvez uma tabela do IBGE ou DIEESE ou algo assim, mas sinceramente, algo assim só virá conformar o que na minha opinião está óbvio, pois a comprovação de que se trata de uma tendência global está (sempre na minha visão) dada, basta ler jornais, andar na rua e procurar emprego. As condições da estrutura econômica que você fala que faltam foram colocadas: terceirização, existência de trabalhadores com qualificação e interesse econômico em adentrar relações de trabalho assim delineadas, desenvolvimento tecnológico suficiente para interconectar patrões invisíveis, operários empreendedores bem-dispostos e clientela interessada e tecnologicamente capaz de usar os novos serviços, que vão ganhando legitimidade automática etc.
O capitalista não “escolhe livremente” a forma de organização do trabalho, ele escolhe a mais vantajosa possível dentre as disponíveis no acervo de técnicas de exploração, lutando e negociando permanentemente com os trabalhadores as questões de detalhe – que às vezes podem significar não usar as forças produtivas mais modernas, como por exemplo no corte de cana, onde os boia-fria impõem a permanência de técnicas que mantenham a necessidade de sua mão-de-obra, portanto de seus empregos, oferecendo em troca uma relação salarial benéfica para os patrões. Embora a luta de classes decida, os capitalistas detêm enorme poder de escolha quanto às forças produtivas de tipo A ou Z onde investirão seus capitais, e fazem isso porque podem, graças à subsunção real dos “poderes socioprodutivos do trabalho”, que passam às mãos do capital.
Quando Arabel questiona criticamente a real possibilidade de generalização da uberização, compartilho de sua dúvida, e ainda que me pareça sim um futuro provável e possível para diversos setores, compreendo que uma coisa é pensar, por exemplo, em um futuro generalizado de professores uberizados – como Danilo já nos apresenta agora, outra seria o de operários da GM. Entretanto, se olharmos para os operários contemporâneos, que não estão só na GM, mas nas fábricas de hamburguer McDonald’s, nas empresas de telemarketing, nas redes Starbucks, veremos o exército de trabalhadores Just-in-time que já estão uberizados há um bom tempo.
Em realidade, o artigo tem em mira abordagens marxistas que se dependuram na idéia de progresso, que enfocam permanentemente as modernas ou modernizadas formas de desenvolvimento do capitalismo, tomando o outro lado da moeda – das ocupações de baixa produtividade, das ocupações que são facilmente (e muitas vezes erronamente) taxadas de improdutivas, do trabalho tipicamente feminino, etc – mais como resquícios do desenvolvimento capitalista do que parte do jogo permanente entre modernização e precariedade – o qual, de minha perspectiva, está no cerne da teoria marxiana, mas é permanentemente obscurecido. Recuperando o exemplo dado por Arabel, no último comentário, da fábrica com seus milhares de operários padrão e costureiras domiciliares, estas são geralmente mais compreendidas como resquício do que parte igualmente central do ciclo global do capital. Esta perspectiva tem consequências políticas e impasses sérios, dificultando há décadas a compreensão das formas de exploração e da acumulação capitalista na periferia.
A segunda mira do artigo refere-se aos debates sobre a subsunção do trabalho na contemporaneidade. O toyotismo se apropria da subjetividade e do conhecimento do trabalhador, não mais os negando, mas os colocando como, digamos, uma espécie de fator de produção. (ver artigo de Leda Paulani – O papel da força viva de trabalho no processo capitalista de produção -http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=000049&pid=S0101-4161200500010000700013&lng=pt). Esta apropriação abriu brechas para o questionamento sobre a própria fonte da formação do valor, na medida em que o trabalho teria um caráter agora imensurável, incontabilizável, não redutível a trabalho abstrato. Esta perspectiva dá brechas para um empobrecimento da definição de subsunção real do trabalho, ao possibilitar uma interpretação que acaba por transformar a violência das formas de dominação e expropriação do trabalhador em uma dominação que se exerce apenas sobre o seu corpo e não sobre sua alma. Em outras palavras, o trabalhador operário é facilmente transformável em mero apertador de parafusos, como se o dispêndio de energia a que Marx se referia fosse de uma energia proveniente puramente do movimento físico do trabalhador, quando em realidade é muito mais terrível, trata-se do roubo de seu corpo físico e sua alma – ou seja, sua subjetividade, seu conhecimento sobre a produção, etc. Na mesma linha, o artigo também mira no desvio da compreensão da força de trabalho como força produtiva social do trabalho. Ou seja, o que está em jogo não é a mera soma de forças do trabalho individualizadas, ou da força de trabalho concebida como a propriedade individual do trabalhador, mas da façanha capitalista da apropriação da força produtiva social do trabalho enquanto tal. Seguindo os argumentos de Taiguara e Pablo sobre a subsunção, o elemento central da subsunção real do trabalho refere-se a esta apropriação da força produtiva social do trabalho que então aparece como força produtiva do capital, e volta-se como força estranha contra o próprio trabalhador.
Isto posto, a definição de subsunção real aqui busca desvendar, como o que Taiguara escreveu, por “ vias não muito ortodoxas pelas quais esse trabalho “individual” se converte em trabalho “coletivo” seriam justamente a novidade permitida pelas novas tecnologias informacionais”.
As trabalhadoras da Natura não têm seu trabalho subsumido como uma soma das atividades esparsas de 1,5 milhão de mulheres. Na esteira de fábrica, sua atividade se torna a informação que pauta simplesmente todo o ritmo da produção, que possibilita que a empresa se livre de uma série de riscos e custos. São um trabalhador coletivo da distribuição, há algo aí que as categorias estáticas não vão dar conta de explicar.
O que leva à questão: seria a uberização possível apenas para trabalhos de “pouca socialização”? o que pressupõe trabalhos nos quais a divisão do trabalho está parcamente desenvolvida, e estão no máximo assentados em uma forma de cooperação simples. Esta questão é central, mas podemos inverter a perspectiva. Ao invés de pensarmos no que restringe a uberização – seria este seu limite? (ou, até mesmo, o limite de sua relevância política?), podemos inverter o ponto de partida. Estas ocupações na sua forma uberizada nos evidenciam novas formas de apropriação e subordinação do trabalhador coletivo, que mesmo em atividades individualizadas, pouco segmentadas, podem se realizar como um trabalhador coletivo. Seria um limite ou pelo contrário, a explicitação que os limites da subsunção real foram ampliados? A organização dos trabalhadores no mesmo local de trabalho, a divisão de tarefas, a especialização são os germes para a subsunção real do trabalho e ao mesmo tempo seus fundamentos (limitantes); estaríamos vendo um “soltar das amarras” da subsunção real?
Esta liberação já havia mostrado os dentes com o toyotismo Seria possível pensarmos então em mais um passo, do uberismo? Se estes limites se ampliam, também se reconfiguram o gerenciamento e a “autonomizacao dos meios de produção como capital perante o trabalhador”,nas palavras de Marx. No caso do motorista Uber, ele pode ter o carro, dirigir, fazer a manutenção, etc, mas o que lhe faz motorista Uber não é isso. O que define seus ganhos, o que define qual passageiro atenderá, o que define as possibilidades da próxima corrida, e mais ainda, a forma como vai executar seu trabalho é o “meio de produção” software, que opera ao mesmo tempo como o meio de gerenciamento e de expropriação de seu trabalho. Mas tudo isso só é possível se os trabalhadores forem uma multidão, e o gerenciamento for terceirizado para a multidão de consumidores, ou seja, gerenciamento e organização do trabalho estariam operando sobre novas bases. Há algo muito complexo aí que não nos permite comparar este motorista ao artesão que precisa de um mediador para escoar a sua produção. Este mediador não é um mediador, é o proprietário do mais importante meio de produção (em realidade todos os outros podem pertencer ao próprio trabalhador), e este meio é o que possibilita o motorista ser motorista, ao mesmo tempo que dita as regras de seu trabalho, define o valor de seu trabalho, sua remuneração. Ainda, e daí o título do artigo, esse motorista nem era motorista, ele se torna de forma amadora um motorista da marca Uber, porque a marca Uber se apropria da viração.
A definição de viração em realidade é um dos únicos termos utilizados para evidenciar algo que segue muito pouco conhecido sobre o mercado de trabalho brasileiro. A trajetória de grande parte da população brasileira é feita da viração: alta rotatividade, combinação de diferentes trabalhos, bicos passageiros e permanentes, algo que as estatísticas não mostram nem contabilizam (ver que interessante o que está sendo agora contabilizado como desemprego “ampliado”, mas também poderia ser contabilizado como a real do trabalho: http://www.sinafer.org.br/novo/desemprego-ampliado-no-brasil-e-de-212-quase-o-dobro-da-taxa-oficial/) (os argumentos de Kim Moody poderiam ser pensados pelo mesmo caminho? Menos a novidade, mais o evidenciamento de algo que já ocorre há decadas?). Entretanto, a viração parecia corresponder ao “atraso”, as formas “pré-capitalistas” dentre outros termos que sempre estabelecem a linha divisória entre o verdadeiro capitalismo e seus resquícios; agora fica difícil não enxergar que, chamemos como quisermos, mas estas atividades que são bico, que puderam (perigosamente, em minha opinião) serem tomadas como formas ‘pequenas”, “desimportantes”, “improdutivas” de garantir a sobrevivência, agora estão subsumidas, e não se trata de um retorno ao passado (que significaria associa-las a uma subsunção formal), mas entender os novos passos da subsunção real.
O que nos leva à questão de Lindemberg, sobre o poder descritivo da categoria trabalhador. Ou enxergamos as novas formas de expropriação do trabalho que estão fortemente assentadas em uma apropriação lucrativa da perda de formas do trabalho ou vamos seguir nos embates entre o que seriam meras formas de exploração pré-capitalistas e as verdadeiramente capitalistas, assim como não vamos dar conta de entender a apropriação de atividades que aparecem como lazer, exercício da criatividade, etc. O joguinho citado, jogado durante o trabalho é um trabalho sem forma trabalho, mas que se realiza como trabalho. Como descreve-lo? Nomea-lo?
Quanto a questão de Veridiana, essa parece simples, mas para mim é muito complicada e facilmente ignorada. De saída afirmamos que a autonomia que vem junto com a flexiiblizacao do trabalho é uma falsa autonomia, etc. Mas esta resposta não dá conta de explicar a resposta de 100% dos motoboys que entrevistei – o que eles mais valorizam em seu trabalho é a liberdade. Não ter patrão, fazer seu horário (mesmo que sejam 14 horas por dia). Enfim, está claro que é uma falsa autonomia, mas ao mesmo tempo para o trabalhador é e não é, há uma dimensão de liberdade na flexibilização que é difícil da gente enfrentar.
Acho que está correta a tendência descrita no artigo, isso não quer dizer que será realizada em 100% das estruturas produtivas. Afinal nunca foi assim a transformação de sistemas produtivos.
Ela já está sendo construída ha algum tempo com a a desarticulação dos grandes pátios industriais e a transformação de unidades de produção altamente tecnologicas. Para quem acompanhe o que dizem os capitalistas verá que há algum tempo a The Enomist já tem falado da possibilidade de se dividir a produção por completo com as impressoras 3d.
Verá também que profissões ditas liberais, como a advocacia, entram cada vez mais nessa escala de produção. E por aí vai.
Como se articular a partir daí, as respostas não me parecem prontas.
Parabéns para autora, gostei muito.Publicamos um texto, mais ligeiro e jornalístico, com um enfoque mais jurídico, na mesma época no Empório do Direito, no Conjur e na Revista da Anamatra. Confluências importantes.
Explorei também, do ponto de vista jurídico, o deslize da produção taylorista, linear, ‘disciplinar’ (Foucault) para a produção reticular do ‘controle’ (Deleuze).
Seguem os links
http://www.conjur.com.br/2017-fev-16/desafio-direito-trabalho-limitar-poder-empregador-nuvem
http://emporiododireito.com.br/o-direito-do-trabalho-pos-material/
Este artigo sobre uberização é perfeito, retrata fielmente tudo o que eu e diversas pessoas no mundo estamos passando ao “prestarmos serviços” a estes aplicativos.
Já fui motorista UBER Black aqui em São Paulo e atualmente sou motofretista Loggi.
Infelizmente estes aplicativos são pura ilusão. Estou na condição de MEI, porém não me sinto um micro-empreendedor, visto que eu sou totalmente subordinado a plataforma, sendo obrigado a seguir todas as regras da empresa sem exceção e corro constantemente risco de retaliação.
Estou escravizado, pois a ilusória liberdade de trabalhar o dia e horário que quiser não existe. Tenho que trabalhar diuturnamente, senão não pago minhas contas. De domingo a domingo, sem benefícios e direitos trabalhistas. Se sofrer um acidente de moto, estarei em apuros.
Fiquei na linha de frente nos protestos aqui em São Paulo juntamente com o Sindimoto SP quando em novembro de 2016 a Loggi baixou drasticamente a nossa remuneração em quase 50%. Após 3 dias de paralisação, a Loggi voltou atrás.
Por conta disto, tornei-me delegado sindical e um dos representantes do Sindimoto APP SP.
Continuo nesta batalha e não é segredo para a alta administração da Loggi que tenho convicção que a minha relação de trabalho é CLT.
A escravidão não pode continuar desta forma mascarada.
Atenciosamente
Robson de Souza Raimundo
ESTUDO DE CASO
RdeSR ou a autoconsciência como work in progress…
O artigo e o tema são ótimos, porém lendo os comentários eu fiquei mais convencido de que o “livre” mercado triunfa por falar a língua do povo (“ganhe dinheiro”, “seja seu próprio chefe”). Já os intelectuais usam palavras tão complexas que talvez nem eles entendem, quanto mais o povo! É necessário escrever de forma mais simples e, principalmente, escrever menos.
Caros colegas do PP. O que voces tem lido acerca do debate teorico sobre valor e trabalho digital e essas conceituacoes de “capitalismo de dados“ e etc?
Me faltam referencias de carater critico, nao ideologico, sobre o tema.
Agradeco desde ja
O texto de Abílio se mostra na sua forma mais imediata e aparente como uma notícia sobre o mundo do trabalho, mas na medida em que as nossas retinas ultrapassam as primeiras linhas percebemos como a morfologia do mundo do trabalho vem se transformando por meio do neoliberalismo e a crise do sistema capitalista.
A uberização do trabalho e a subjunção real da viração, elucida o processo de perda de direitos transformando o trabalhador em um microempreendedor em que esse muitas vezes tenha sequer a compreensão da totalidade a qual esta inserido e dos seus desdobramentos. Chamado de parceiro, trabalhador just-in-time o que temos ocultado é que o trabalhador trabalha mais por muito menos com horas e horas parados sem receber pelo deslocamento, sua alimentação, gasolina, enfim pelos instrumentos de produção (não confundir com os meios de produção). Ao mesmo tempo em que o sistema capitalista aprimorou suas formas de controle por meio da avaliação pelas multidões de usuários.
A uber serve como uma referencia para uma realidade que vem se impondo em todos os campos de trabalho. Mesmo que de forma ilegal, esse sistema vem se espalhando cada vez mais e as leis não conseguem abarcar essa nova conjuntura em que temos o gerente coletivo. O motorista uber além de pagar pelos custos do seu trabalho tende a engrossar as filas de desempregados pela nova estrutura.
Nesse ínterim, uma nova, há mudanças subjetivas e objetivas com uma forte eliminação dos direitos trabalhistas e com transferência de riscos.
Que desemboca em um mundo em que há a transferência de riscos da empresa para o “parceiro”, empreendedor, enfim, para o trabalhador.
Esse trabalho não pago pode ser facilmente vislumbrado pelos motoboys que tem retirado do seu salário 20% da empresa de aplicativo que não é um patrão mais controla de forma ferrenha o seu “parceiro”, porém transfere para ele todos os custos. Esses vão desde um pneu furado ao pagamento da gasolina.
O admiravel mundo novo é esse espaço em que o e-marketplace, como espaço virtual, flexibilização, enfim o startups. Estão nesse campo coorporações como a Amazon a Easytaxi entre outras.
E não é só no campo dos trabalhos com necessidade de pouca escolarização em que temos essa degradação. Cientistas conforme citado pela autora também tendem a adentrar nessa morfologia,
O artigo de Abílio, deve ser lido por todo trabalhador que precisa compreender o mundo para transformá-lo, pois se descortina sobre nossas retinas um trabalhador sem identidade com o que faz e muitas vezes não sabe o que realmente ele precisará fazer para sobreviver. Virção, Gigi- Economy, economia dos bicos, trabalhador just-in-time, a mudança do nome não altera as condições nefastas que o sistema capitalista esta impondo aos trabalhadores. Assim, é preciso ler cada vez mais textos da autora para compreender melhor esse mundo. Não adianta ser contra a máquina. É preciso lutar para que a função social que a tecnologia ocupa no todo social se modifique e possa ser usada em favor do trabalhador e não contra a classe que a tudo cria conforme descreveu Georgy Lukács na Ontologia do ser social, parte II.