O imaginário português agonizante que se debate com o passado. Qual a possibilidade de montar um procedimento de retorno às figuras e eventos célebres, afim de derrubar-lhes como mito e monumento que se consolidaram historicamente? Por Joacy Ghizzi Neto

José Saramago
José Saramago

A narrativa de Saramago, em Todos os nomes, inicia-se com uma descrição cuidadosa dos espaços arquitetônicos e da organização do trabalho na Conservatória Geral do Registro Civil. Há uma divisão hierárquica entre os funcionários que trabalham no local e entre os habitantes sempre eternos deste espaço: os mortos e os vivos. Os mortos “recentes” vão para o fundo da Conservatória, que tem sua última parede constantemente derrubada e levantada adiante, ou mais para trás, para dar lugar aos novos mortos. Conta ainda com cinco grandes estantes que vão até o teto para dar mais espaço aos mortos, que, assim como os vivos que chegam no lugar, não param de aumentar.

Os mortos mais antigos ganham um certo lugar de destaque involuntário: como novos mortos não param de chegar, o lugar (in)conveniente para os falecidos mais antigos tornou-se a primeira estante da Conservatória, vindo depois somente do balcão que separa o público atendido dos auxiliares de escrita, sendo que recém-chegados são lançados para os fundos da parede que não pára de se mover. Os auxiliares de escrita, a base da hierarquia, trabalham sem parar e são obrigados a passar, atravessar, o tempo todo durante seu trabalho o espaço ocioso dos mortos mais antigos para conseguir chegar ao lugar de arquivamento dos vivos e dos mortos recentes, que são mais requisitados devido a fins de heranças, transferência de documentos, etc.

A consulta para o primeiro balcão, dos mortos antigos, é quase nula. Somente uma “figura excêntrica” teria interesse em requerer tais documentos para alguma pesquisa. Eis que um pesquisador se atreve a visitar este lugar, que tem proporções imensas, onde se perde por aproximadamente 10 dias e é encontrado faminto e delirante a comer os papéis dos documentos que não serviam de nada à sua alimentação. O chefe conservador forja um ataque de ratos para que tal evento passe despercebido. Este seria o momento primeiro, e aparentemente mais brutal, que Saramago lança na sua narrativa um olhar cético em relação ao documento histórico, permitindo-lhe ser falho ao abrir lacunas na História que um próprio pesquisador as digeriu inutilmente.

Em tempos anteriores, a arquitetura da Conservatória suportava em anexo as residências dos seus próprios funcionários. Cada casa era conectada diretamente ao local de trabalho de seus habitantes/funcionários, o que dificultava qualquer desculpa por atraso em relação a problemas de locomoção ou fingir alguma doença. Devido à “modernização” estas casas anexas são derrubadas e somente uma é conservada para fins de memória arquitetônica. Sem qualquer espécie de mérito, a casa escolhida é do Sr. José. Trabalhador exemplar ao ponto de não causar nenhuma diferença dentro do local de trabalho e tampouco alguma desconfiança do chefe conservador por ainda manter a chave da porta que o ligava à Conservatória. Nem José se preocupa em devolver a chave, nem o conservador faz questão de pedi-la.

No auge da sua solidão, José cria o hábito de selecionar pessoas famosas, celebridades de toda ordem, através de recortes de jornais monta uma coleção própria de 100 figuras. Eis que surge um desejo, que nunca o havia tocado, de ultrapassar a porta que o ligava à Conservatória. Agora para fins que não eram o seu trabalho, ou que eram supostamente não burocráticos: vasculhar a vida das pessoas famosas através dos verbetes que se encontram arquivados no seu local de trabalho. José se lança numa aventura noturna, fora de seu expediente, para coletar seus companheiros de solidão da sua morada para buscá-los na imensidão da Conservatória:

“[…] aquilo que tanto trabalho lhe vinha dando desde há largos anos, a saber, a sua importante coleção de notícias acerca de pessoas do país que, tanto por boas como por más razões, se haviam tornado famosas. […] Pessoas assim, como este Sr. José, em toda a parte as encontramos, ocupam o seu tempo ou o tempo que crêem sobejar-lhes da vida a juntar selos, moedas […] provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos chamar de angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a idéia do caos como regedor único do universo, por isso […] vão tentando pôr alguma ordem no mundo […]”.

arquivosJosé, entretanto, deixa de limitar-se a um mero colecionador e torna-se uma espécie de viciado, em acordo com a definição de Bataille em que o vício poderia ser representado como uma arte dedicada de maneira maníaca ao sentimento da transgressão. Enquanto montava uma espécie de arquivo pessoal paralelo – porém ultra-institucional, pois fazia questão de selecionar somente os célebres – carrega consigo, além dos cinco verbetes pré-estipulados pra coleta, um sexto que é aparentemente descoberto somente no retorno a sua casa. Tal verbete que rompe sua coleção é o de uma mulher desconhecida, que foi apanhada na Conservatória numa noite em que uma culpa arrebatadora o cometeu fazendo-o retornar em uma corrida desesperada para casa na qual deu duas voltas na chave ao trancar-se para dentro.

Se os colecionadores estão em busca de uma ordem no mundo, que é regido pelo caos, José rompe seu mundo/coleção paralelo e harmônico para lançar-se numa jornada ao caos: há um desejo inexplicável, que rompe a racionalidade da burocracia do seu trabalho e da sua coleção, pela mulher desconhecida. Assim como o espaço da Conservatória não lhe mais convinha, seu próprio conforto da coleção dos célebres se faz insuficiente e José se parte ao mundo ordinário. Cessando o processo de cópia dos verbetes dos famosos, partindo sua consciência entre o mundo da burocracia, dos mortos e dos vivos, ou dos mortos vivos e dos vivos mortos, busca nas ruas, na chuva, nas residências onde uma criança chora e na qual um marido ciumento pode chegar a qualquer momento, para encontrar a identidade “real” do verbete fora da coleção.

Tal não trabalho só pode ser cumprido à noite, que assim como a escuridão dos espaços ociosos da Conservatória ganha uma pulsão de vida na própria vida de José. Porém, tal movimento se faz necessário fora da hierarquia do trabalho e da institucionalidade dos verbetes, falsos ou originais. A busca agora é por um corpo.

Todo este novo movimento na vida de José, suas aventuras pela Conservatória noite adentro e Conservatória afora e por fora dela mesma, lhe causa uma notável queda no rendimento do trabalho, uma sonolência e erros que jamais haviam sido presenciados por qualquer um que trabalha no mesmo lugar. A consciência partida de José se reflete no mundo do trabalho: sua busca pelo outro/outra se faz na escuridão da noite que não é possível conciliar com uma noite de sono saudável e um rendimento impecável no seu serviço. A face cansada e a barba por fazer lhe rendem um interrogatório pelo conservador, que durante a conversa e os questionamentos do porquê deste desleixo, José se deixa desviar o olhar para a lista telefônica que estava em cima da mesa do chefe, o que incomoda o conservador já que a lista nada tem a ver com a Conservatória. Seu desejo/olhar só consegue se fazer para fora da esfera do trabalho.

Sem a pretensão de afirmar que este é o eixo central, ou o “traço social que forma a estrutura do livro”, mas sim criando uma leitura própria é que aponto para a saída das esferas institucionais e burocráticas, que José empenha em busca da mulher desconhecida, como possibilidade de lançar-se à História oficial a fim de rompê-la, de abrir-lhe um corte que não pode estancar ou não sem deixar uma cicatriz qualquer para contar uma história outra.

Inegável a intenção em Saramago de construir um romance de cunho universal, escolhendo José como o único personagem com alguma subjetividade própria, enquanto os outros são “os subchefes”, “a senhora do rés-do-chão”, “a mãe da criança”, e ainda ao não identificar precisamente qual é o local geográfico específico da narrativa. Porém, tal movimento pode nos remeter a questão do imaginário português agonizante que se debate com o passado e ainda de como lidar com esse duvidoso glorioso Passado, com nossos mortos antigos ou ainda: qual a possibilidade de montar um procedimento de retorno às figuras e eventos célebres afim de derrubar-lhes como mito e monumento que se consolidaram historicamente.

Difícil não se deparar com uma sólida e canonizada tradição literária portuguesa que de alguma forma já se empenhou em tal tarefa. Eduardo Lourenço, em O Labirinto da Saudade, recorda o movimento desenvolvido por toda a grande literatura portuguesa do século XIX e todas suas questões diversas, ou a principal: a problematização da relação entre o escritor/cidadão e sua consciência em relação à Pátria. Entretanto, para saber “quem somos e o que somos como portugueses” é necessário compreender o que é Portugal. Garret e Herculano se deparam com uma fragilidade histórica que não remonta somente ao passado português mas também na relação entre seu projeto que mescla a consciência individual do cidadão, militante liberal que ambos foram, com o destino de Portugal. O ser e o destino de Portugal tornam-se a grande obsessão da produção literária portuguesa do século XIX, a ponto de Lourenço afirmar que, a partir de Garret e Herculano, qualquer obra nesse contexto que não toque tal problema nos pareça “in-significante”.

archives1Eis que José Saramago, já no final do século XX, lança uma narrativa em “Todos os nomes” que não se encontra Portugal, seu passado ou seu cidadão/escritor em busca da consciência pátria do presente. Teria sido então Portugal e seu passado glorioso enterrado ou retirado da literatura portuguesa? Não se encontra talvez nos termos e pressupostos que Garret e Herculano desempenharam. Mas a estante dos mortos antigos da Conservatória Geral do Registro Civil continua ser a primeira, e a que precisa ser rompida cotidianamente pelos auxiliares de escrita para se chegar a qualquer lugar que seja dos arquivos. Impossível não atravessar, esbarrar ou esfolar-se neste imenso balcão ocioso. Pois o Sr. José – Saramago? – busca outro caminho.

Há um duplo movimento nos passos de José: adentrar a Conservatória, durante a noite, afim de encontrar as figuras célebres e iniciar a montagem de seu acervo próprio, que é uma cópia justamente dos verbetes institucionais. Em tal procedimento às escuras José descobre que os famosos, ou quem os criou, mentiam: os dados encontrados nos verbetes tinham informações, negativa ou positivamente, que não conferiam às dos artigos onde os encontrou no primeiro momento. Novamente o documento apresenta-se falho, forjado e sempre arbitrário em relação a quem se remete. Eis que surge uma “terceira” via possível de releitura de Portugal, a partir desta mulher desconhecida que é simplesmente qualquer uma dentro dos zilhões de verbetes que se encontram na Conservatória. A mulher desconhecida não estava nos recortes de jornal dos famosos, mas no meio de todos os nomes.

Neste sentido, coloco José Saramago na mesma linha, agora tortuosa, da tradição literária que buscou desmonumentalizar a História de Portugal pensando a identidade e o imaginário português. Porém, há um corte epistemológico brutal: Garret e Herculano eram militantes liberais, republicanos e cristãos (contradição aparente), enquanto Saramago é um materialista histórico dialético onde a morte/passado ganhará uma condição fundamentalmente material e terrena: a Conservatória. Para onde lançamos nossos mortos na terra? Não há paraíso ou inferno e tampouco interessa para onde foi, irá ou se virá D. Sebastião, mas onde estão ou colocaram todos os nomes ou se realmente todos os nomes encontram-se na História.

Porém a busca pela mulher desconhecida, empenhada por José, não se faz sem contradições. O mesmo parte para uma série de investigações e interrogatórios de pessoas estranhas munido de uma credencial falsa da Conservatória e de um ofício do conservador, também falso, e escrito pelo próprio José, onde a autoridade se encarna de maneira assombrosa:

“[…] Em nome dos poderes que me foram conferidos e que debaixo juramento mantenho, aplico e defendo, faço saber, como Conservador desta Conservatória Geral do Registro Civil, a todos quantos, civis ou militares, particulares ou públicos, vejam, leiam e compulsem esta credencial escrita e firmada de meu punho e letra, […]”

dominosSe José se dispõe a aventurar-se ao mundo ordinário, das ruas, da chuva, da criança chorando, o faz carregando a autoridade consigo e usando-se dela para arrancar informações e o íntimo dos que lhe aparecem ou ele lhes atravessa. Diante do medo de que alguém possa encontrar sua credencial falsa em algum lugar da sua casa, decide “escondê-la” entre as cópias dos verbetes da sua coleção de celebridades. O lugar onde desejaria estar?

Durante todo este tempo, o assombrava a idéia de que alguém poderia descobri-lo em tal empenho, se alguém o visse na rua com uma credencial falsa em busca da identidade de um verbete, seria pior do que o encontrassem dentro da própria Conservatória. Eis que numa noite se depara com o conservador sentado na sua casa, lendo os relatos ex-secretos das suas investigações particulares. Ao deparar-se com um auxiliar de escrita desempenhando tarefas que não lhe eram atribuídas – José jamais recebeu qualquer ordem para trabalhar fora de expediente, muito menos fora de seu ambiente de trabalho – o conservador provavelmente vê sua própria figura e função posta em xeque. Há um paradoxo entre a cumplicidade do conservador e as buscas de José, sendo que o primeiro se mostra amigável diante do desejo do segundo.

todos_os_nomesAo descobrir que a mulher desconhecida suicidara-se poucos dias antes, José e o conservador encontram-se diante de uma lacuna imensa: que fazer com tal corpo que já não existe senão no cemitério? Preservando sua autoridade, o conservador propõe cinicamente um jogo oferecendo um cavalo de Tróia que José aceita com grado. A proposta do conservador é que José volte aos arquivos da Conservatória para encontrar a certidão de óbito da mulher desconhecida, afim de rasgá-la para que ela sobreviva. Sobrevivendo assim, na verdade, a própria burocracia.

Voltando para os arquivos da Conservatória em busca da certidão de óbito para manter a mulher viva, José aceita o jogo do conservador, colocando-se diante da sua estaca zero: o mundo da burocracia que rege as vidas e as mortes. Diante do triunfo da instituição, o que resta para José, ou para nós, é a experiência e a memória das andanças pela escuridão, a sonolência teimosa, as falhas no trabalho e tudo o que lhe permitiu partir-se para um mundo outro, o da vida ordinária que pertence aos homens. É diante da profanação dos verbetes, “devolvendo-lhes” aos próprios homens, que José permite encontrar-se nos todos os nomes, fora da onde estavam anteriormente.

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