Por Pablo Polese

O último pronunciamento de Jair Bolsonaro, em 24 de março de 2020, chamou a atenção por uma série de motivos, a começar pelo fato de um chefe de Estado vir em rede nacional se manifestar na contramão de todas as orientações sanitárias e de segurança das Organizações de Saúde do mundo todo.

Além da epidemia mundial do Covid-19, o contexto nacional do pronunciamento presidencial é o de um evidente isolamento social e político de Bolsonaro. Ele não tem o apoio do Senado e nem da Câmara. Manifesta-se desde sempre em guerra com o STF. Não possui apoio evidente e inconfundível nas Forças Armadas. Os governadores, sob a direção de São Paulo e Rio de Janeiro, estão cada vez mais se opondo às decisões e visões do governo federal. O filho, Eduardo, acabou de tomar um puxão de orelha do agronegócio pela ofensa à China. Não bastassem esses expedientes de governabilidade, Bolsonaro tem diante de si a maior crise econômica da história e já gastou todas as fichas com fanatismo neoliberal. Os principais editoriais da imprensa já se colocaram contra ele, bem como outros veículos da grande mídia. No Rio de Janeiro, liberaram as investigações da “rachadinha da Alerj”, mirando o senador Flávio Bolsonaro. Há ainda a pressão por conta do possível envolvimento no assassinato de Marielle Franco e as evidentes ligações da família Bolsonaro com as milícias. A última cartada do presidente, todos preveem, é um golpe de estado em sentido clássico, coisa que, ao que parece, ele já vinha ensaiando com o motim das Polícias Militares.

Frente a tamanhas dificuldades, potencializadas pela pandemia do coronavírus, ao que parece Jair adotou a seguinte estratégia: como ganha força o tema do impeachment e tudo indica que ele está perto de ser afastado, reagiu se antecipando: criou uma explicação onde seu afastamento seria o fruto de um golpe, capitaneado pela mídia em sua criação de uma crise inexistente, um cenário de pandemia que na verdade seria apenas “uma gripezinha”. Essa narrativa, além de tudo, municia sua militância digital, nada desprezível. Do começo ao fim, a fala do presidente parece ser uma declaração de guerra aos poderes institucionais e, ao mesmo tempo, atende às reivindicações de parte importante de sua base política e social: os pequenos empresários e trabalhadores mais precarizados. Tratou-se, em alguma medida, de uma convocação para que seus adeptos ajam, reforçando e legitimando o “direito de voltar a trabalhar”, defendido por muitos setores e camadas sociais prejudicadas pela crise decorrente das medidas de isolamento social.

Realista, o presidente parece estar prevendo uma guerra social e se antecipa visando montar seu próprio exército e estabelecer sua própria plataforma ideológica. Diante do medo e desespero, muita gente que não o apoiava agora o apoiará, a começar pelas classes “típicas” do fascismo: pequenos empresários vulneráveis ao esfriamento do comércio e trabalhadores desesperados, preocupados, por questão de sobrevivência, com o andar da economia e a manutenção de suas débeis fontes de recursos.

Adotando a posição de que é melhor termos as mortes decorrentes da pandemia do que as mortes decorrentes da recessão econômica aprofundada pelas medidas de isolamento social, Jair apostou alto, deixando bastante claro, assim como alguns empresários (dono da Madero etc.) que um alto número de mortes decorrentes da pandemia é um custo que deve ser aceito como inevitável. A seu lado ele tem a seguinte situação: o estancamento inevitável da economia deixará, em algumas semanas, milhões de pessoas em situação calamitosa, à beira do desespero e enfrentando níveis ainda mais baixos de subsistência, para não dizer o enfrentamento da fome, o aumento da criminalidade e o colapso de serviços essenciais. O povo (e aqui é “povo” mesmo, sem distinção de classes) pressente esse cenário e está com medo. Ora, diante dessas perspectivas, o governo tinha diante de si a saída humanitária do auxílio estatal, que demandaria aumento do endividamento e dos gastos públicos, visando reduzir os danos sociais da crise, saída adotada por inúmeros países. Embora o Legislativo esteja discutindo a viabilidade de uma renda mínima essa saída parece ter sido descartada de antemão pelo executivo federal, pois, pelo contrário, o governo Bolsonaro busca se aproveitar do contexto para implementar medidas de austeridade e acelerar polêmicos projetos de contrarreforma que estavam em pauta há tempos. Rejeitada essa forma de gestão da crise, só restava a saída bélica, e esta parece ser a opção não confessada de Jair Bolsonaro.

O presidente se mantém fiel àqueles que lhes são fiéis, a começar pelos pequenos comerciantes e trabalhadores de setores mais precarizados, pessoas que não podem “se dar ao luxo da quarentena” e que são os primeiros a sofrerem os impactos negativos das medidas de enfrentamento da pandemia. Sua fala está alinhada com aquela parcela do empresariado que acredita que a morte de milhares de brasileiros é um preço pequeno a ser pago diante da iminência de uma recessão de consequências catastróficas para a economia do país.

Ao criticar a mídia por “exagerar” a crise epidêmica e os governadores por respaldarem tal exagero, tomando medidas concretas de garantia do isolamento social e demais medidas de contenção da disseminação da gripe, Bolsonaro jogou no colo dos governadores a responsabilidade pelo esfriamento da economia e todas as suas consequências, a começar pelo aumento do desemprego. Trata-se, parece, de uma tentativa de se blindar e de socializar a culpa do que quer que venha a acontecer com o país no futuro próximo. No entanto, com essa manobra ele se esquiva e socializa a culpa do que ocorrer em termos econômicos, e apenas econômicos, pois aposta alto na capacidade do país em conter as mortes ou, de repente, em que as mortes não serão em número suficiente para terem impacto decisivo na legitimidade de seu governo continuar de pé. Em sua aposta, quanto maior a eficácia das medidas de contenção da pandemia, maior o caráter de “gripezinha” e, portanto, mais alarmista e golpista foi a mídia. Se, no entanto, tivermos as previstas meio milhão de mortes, ficará difícil defender a teoria da conspiração professada pelo presidente. Após a crise é provável que tenhamos uma disputa de “narrativas” sobre número de mortos, o que poderia ter sido feito, como estaria a economia não fosse a pandemia etc., o que poderá ser usado para legitimar o evidente fracasso da gestão Bolsonaro em quaisquer setores que se escolha analisar.

O pronunciamento de 24 de março pode ser visto, ainda, como uma legitimação e um apelo ao pequeno, médio e grande capital para que mantenham a pressão em face dos trabalhadores, visando manter a economia ativa, como condição para que o presidente se mantenha no cargo, afinal, se a crise se aprofundar, dificilmente ele se sustentará na presidência. Para o caso dessa alternativa não lograr êxito, voltamos à estratégia presente no pronunciamento, de culpabilização dos governadores pelas repercussões econômicas catastróficas das medidas de enfrentamento da pandemia. Astuto, o presidente defende o próprio pescoço argumentando que em verdade está preocupado com o pescoço de milhões de brasileiros que sofreriam muito mais com a crise do que com os impactos mortais da pandemia.

A aposta de Jair, entretanto, parece ser uma aposta perdida, pois as projeções indicam que teremos perto de meio milhão de brasileiros mortos vitímas do Covid-19. Cremos que este número seja mais que o suficiente para deslegitimar as visões negacionistas do bolsonarismo. Ou será que não? Haverá um custo político a ser pago pelo governo, ou o bolsonarismo conseguirá forjar narrativas defensoras da alucinante posição do presidente? Quanto ao aprofundamento da crise econômica, certamente não faltará gente denunciando que a culpa do caos é, em parte, da má administração Bolsonaro, outros culparão as gestões estaduais e, claro, o legado petista. É tentando se antecipar a tudo isto que Jair proferiu o discurso de 24 de março. Todos querem uma volta à normalidade e, por isso, Jair apela para desejos inconscientes e conscientes de uma parcela da população que foi socialmente forjada para a indiferença para com o outro, pessoas criadas num mundo competitivo onde o empreendedorismo de si mesmo é visto como algo obviamente positivo. Aqui temos uma clara antinomia entre individualismo/fascismo e solidariedade. O lado de lá cresce e se forja a cada dia, por conta dos próprios mecanismos da economia. O lado de cá é construído com muito custo em cada organização de luta dos trabalhadores.

Há sinais de que o presidente poderá ser afastado do cargo, e talvez até mesmo sofra um impeachment, mas cremos que mesmo assim ele logrará manter uma base mobilizada e nada desprezível de bolsonaristas radicais (estima-se que componha 10% do eleitorado). Desde o início de sua gestão, Bolsonaro estava com a bomba da crise econômica na mão, e após a confirmação do que todos esperavam, os resultados pífios do PIB no primeiro ano de governo, ele já poderia ser retirado da presidência, a depender, é claro, de alguns outros fatores. Surgiu então a epidemia do Covid-19, que parecia ser a tempestade perfeita para redimir a culpa do governo diante da recessão. Será isto possível? O alto número de mortos e a provável comoção nacional que se seguirá dificilmente deixarão de pé essa versão discursiva redentória. Hoje, 24 de março, os EUA confirmaram 10 mil novos casos e já possuem quase o mesmo número de casos ativos que a Itália. Em dois dias o país terá mil mortos. Não demorará a ser assim também aqui no Brasil. O que vai calar mais fundo na população? O medo da morte ou o medo do desemprego?

Um documento da Abin, vazado também em 24 de março pelo Intercept Brasil, prevê 8,6 mil mortes pelo Covid-19 no país, nos próximos 10 dias. Qual será a consequência social e política do cenário que se aproxima? Bolsonaro atua como se previsse que o futuro próximo será de guerra e barbárie, com saques em massa e demais situações de caos social. Podemos dizer que ele está errado? Os trabalhadores, diante desse cenário, culparão a quem? Encontrarão o quê ou quem como alternativa redentora para todos os males?

 

Com sua declaração de 24 de março, de guerra institucional, Bolsonaro se apresenta, antecipadamente, como alternativa a um caos social criado em grande parte pela sua própria forma de gestão do Estado, do governo e da relação entre estas esferas e as empresas. Com uma sequência notória de mobilizações e greves já no início da crise da epidemia, nós, trabalhadores, estamos percebendo nosso valor como produtores da riqueza social e, com as mobilizações que estão explodindo em todos os lugares, buscando garantias de renda, segurança e saúde nos locais de trabalho, mostramos que podemos também apresentar uma alternativa ao caos social em curso. Basta uma radicalização da situação, com inflação e empresários buscando ganhos oportunistas, para talvez nos vermos forçados a passar das reivindicações defensivas (manutenção do emprego, do salário, condições de segurança no ambiente de trabalho etc.) para reivindicações ofensivas: tomar o controle da logística e dos espaços de trabalho e de sociabilidade que mantêm e seguirão a manter a sociedade viva, ou seja, setores de produção e distribuição de alimentos, remédios, hospitais etc. Apenas assim, com organização e pressão social, poderemos evitar que o caos seja maior e que a barbárie tome conta de tudo, resultando no extermínio de muitos de nós, seja pela letalidade do vírus aliada ao colapso da saúde pública, seja pela própria falta de recursos decorrentes do desemprego ou o puro e simples extermínio dos trabalhadores e da “população sobrante” por parte de um exército preocupado em restabelecer a ordem sob botas fascistas — e atendendo a clamores populares.

Bolsonaro mira mais uma vez uma centralização de poder no Executivo. Arquiteta, ao seu modo, a criação de (ou o não combate a, o que dá na mesma) um caos que justifique o golpe. A novidade, perigosa, é que a crise da pandemia e o caos social por vir podem abrir para Bolsonaro uma janela de adesão de setores que hoje não são, de modo algum, apoiadores do bolsonarismo. Com seu discurso e sua prática Bolsonaro apela para um pragmatismo bélico e assim pode despertar o fascismo latente em pessoas e setores que até então não se viam neste lado da trincheira, talvez por não se virem, ainda, em guerra, em desespero. Nesse sentido a tática do presidente pode render frutos mesmo com ele fora da presidência, em batalhas posteriores à crise do coronavírus. O medo do desemprego e da morte pode levar a um “despertar” do fascismo em pessoas até agora resistentes a abraçar essa tendência, e é importante observar que tal despertar não depende apenas de Bolsonaro e do bolsonarismo: trata-se de uma forte tendência social presente e com fundamentos profundos na sociabilidade (economia, religião etc.) e na violência inerente a um cenário de alta competição e crise econômica. Diante desse risco os trabalhadores precisam criar válvulas de escape para que as posições fascistas não aflorem, não ganhem legitimidade e expressividade, o que significa não permitir que o caos social tome rumos de aprofundamento da barbárie, ou seja, o individualismo máximo da guerra de todos contra todos. Como de praxe em contextos de crise política e econômica, a história interpõe aos trabalhadores o desafio de bater de frente com os patrões, criando uma janela para a construção de alternativas societárias baseadas na solidariedade, que existe em germe sempre que um trabalhador se preocupa com outro e não apenas consigo mesmo. A dificuldade extra, entretanto, reside no fato de que os processos de trabalho são hoje organizados sob a égide da uberização, o que implica uma grande dificuldade em visualizar o patrão e o capital como contrapostos ao trabalhador que, por outro lado, se vê como um patrão de si mesmo. Aqui, as dificuldades políticas e organizativas aumentam, e certamente a solidariedade necessária na luta contra as tendências fascistas precisará extrapolar o âmbito das ações internas a uma empresa ou ramo, forjando redes de solidariedade que permitam, materialmente, aos trabalhadores uberizados parar de trabalhar sem que isso implique em catástrofes pessoais e em adesão à alternativa fascista.

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