Por Leo Vinicius
No dia 8 de janeiro de 2004, a Lei 10.835, que institui uma Renda Básica de Cidadania, foi sancionada pelo presidente da república. Pelos termos dessa lei, a partir de 2005 todos os brasileiros residentes no país e estrangeiros com pelo menos cinco anos de residência terão direito a uma quantia monetária anual, independente de sua situação socioeconômica. Uma quantia que seja suficiente para atender às despesas mínimas da pessoa com alimentação, saúde e educação. A lei dispõe ainda que a abrangência dessa renda deverá ser alcançada por etapas, priorizando as camadas mais necessitadas da população. O que significa tal lei? Evidentemente não significa a garantia de recebimento dessa renda, nem sequer pelas “camadas mais necessitadas”, muito menos uma garantia de um determinado valor monetário de recebimento. Ela significa a existência de um dispositivo específico através do qual o Estado poderá gerir a pacificação de um conflito, a ser posto por movimentos sociais organizados, seja pelo atendimento total ou parcial dessa demanda. A reforma agrária também é prevista em lei — chegou a possuir até ministério próprio!! —, no entanto são os movimentos de sem-terra, através do uso da ação direta, que fazem com que ela ganhe alguma realidade. Isso não é novidade, a abrangência e o ritmo de uma reforma são variáveis políticas totalmente dependentes do nível de ação, pressão e mobilização popular. Ora, não será diferente com a renda básica.
É verdade que tal lei pode significar também uma ajuda à legitimação dessa reivindicação, e até mesmo servir como um sopro no ouvido daqueles que até então não a haviam pensado ou projetado como demanda. Mas torná-la um direito efetivo, forçar sua abrangência, seu ritmo de implementação e seu incremento monetário é tarefa evidentemente para as ruas, para a construção de um movimento generalizado nacionalmente, para a ação direta.
Na ordem do dia mundialmente com a pandemia do covid-19, uma renda básica, embora por período limitado, a contragosto do Poder Executivo, de valor bem abaixo do salário mínimo e com condicionantes que excluem uma parcela da população que necessita dela, também apareceu no Brasil. Enquanto os empresários esperam que as medidas de retirada dos direitos dos trabalhadores durante a pandemia continuem após a pandemia, há também quem ache que é provável que a renda básica seja mantida após a pandemia, como a economista mainstream Monica de Bolle. Não é difícil prever que na atual correlação de forças apenas os empresários estão certos na sua expectativa. Embora estejamos numa realidade feita de pobres, miseráveis, precarizados, subempregados e desempregados, a renda básica continua fora da pauta dos movimentos sociais — embora possamos nos perguntar se é possível falar de movimentos sociais no Brasil atualmente.
Que falta provisão econômica à população em geral não se discute. Se não é renda, qual é a reivindicação então?
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“O Brasil quer Trabalhar!” era o lema da marcha contra a ALCA e a OMC promovida por movimentos sociais no dia 14 de junho de 2004, durante a abertura da conferência da UNCTAD em São Paulo. O lema seguia o mesmo tom dos documentos produzidos pela Coordenação dos Movimentos Sociais [1]. Palavras-chave: soberania nacional; desenvolvimento e crescimento econômico; geração de trabalho; valorização do trabalho; política industrial; reforma agrária [2]. A agenda do desenvolvimento econômico nacional com soberania do Estado brasileiro e suposta independência adentrava assim o século XXI. Em 2020, em meio à pandemia de covid-19, o governo brasileiro de extrema-direita chegou a lançar a campanha “O Brasil Não Pode Parar”, que visava se opor à paralisação do trabalho devido ao isolamento social para mitigar a epidemia. Essa campanha fazia parte da tomada de posição da extrema-direita pelo trabalho a qualquer custo (mesmo o de centenas de milhares de vidas) como fonte de renda, ao invés de uma renda ser diretamente fornecida pelo Estado, sem contrapartida de trabalho. O fato da extrema-direita ter visado com isso que os lucros não cessassem andava de mãos dadas com o governo não querer abrir o cofre para pagar renda à população.
Embora os documentos da CMS a que nos referimos sejam datados, eles explicitam uma visão de mundo e de sociedade que ainda domina os movimentos de esquerda, ou pelo menos suas direções. Nos primeiros anos do século XXI os movimentos ligados à CMS reivindicavam crescimento econômico, criação de frentes de trabalho, geração de empregos… Conjugada a essa reivindicação estava o princípio de “valorização do trabalho”. A valorização do trabalho, segundo a CMS, deveria ser base e fonte do desenvolvimento, reforçando o mercado interno e aumentando a capacidade de consumo da população [3]. Significaria em termos objetivos uma política de elevação salarial — e lembremos que só tem salário quem tem emprego ou “trabalho”.
Nos anos setenta, o filósofo socialista libertário Ivan Illich já tentava mostrar como numa sociedade a equidade e a autonomia são corrompidas e ameaçadas por um sistema de crescimento econômico, que necessita e exige o consumo de doses cada vez mais altas de energia, que institucionaliza atividades e valores, que torna as pessoas dependentes de mercadorias e serviços produzidos industrialmente e que as incapacita a dar respostas e soluções alternativas e autônomas [4]. Até mesmo a educação, a aprendizagem, a saúde, se tornariam monopólio de indústrias, através da institucionalização e profissionalização de atividades. A aprendizagem, por exemplo, passaria assim a ser um produto fornecido por professores e pela escola. Illich criou o conceito de monopólio radical para designar esse fenômeno, comum nas sociedades capitalistas e industriais, que ocorre quando uma necessidade se traduz na necessidade imperiosa de comprar ou usar um determinado produto ou serviço. Por exemplo, quando a necessidade de locomoção se traduz imperiosamente na necessidade de transporte motorizado ou de um automóvel; ou quando a necessidade de saúde se traduz imperiosamente na necessidade de fármacos e de médicos. Tratar-se-ia do domínio de um produto, e não de uma determinada empresa ou marca. O monopólio radical ocorre quando um processo de produção industrial passa a exercer um controle exclusivo sobre a satisfação de uma necessidade imperiosa, impossibilitando o recurso a atividades não industriais [5].
Illich valorizava, portanto, formas vernaculares [6] e autônomas de satisfação das necessidades, formas vernaculares e autônomas de aprendizagem, de manutenção da saúde, de locomoção, através da sua crítica às respostas industrializadas, heterônomas e institucionalizadas. Exemplo é a brilhante analogia: confundir aprendizagem com escola, para Illich, seria o mesmo que confundir salvação com Igreja.
Sem entrar em questões ecológicas e do sentido ou razão por trás de uma produção industrial de trabalho — e que não se confunda “produção industrial de trabalho” com “produção de trabalho industrial” —, como era reivindicada pela CMS através de um crescimento econômico, de uma determinada política econômica e da criação de frentes de trabalho, as questões que se colocam a princípio são duas, cuja tarefa de tentar responder deixo ao leitor:
i) Confundir falta de provisão econômica com falta de emprego não seria confundir salvação com Igreja? Não seria confundir uma necessidade humana não satisfeita com a ausência de um produto produzido industrialmente? Minha sede, com a falta de refrigerante? Não seria se perder na heteronomia estabelecida?
ii) Indicar primordialmente a política econômica do Estado e o crescimento econômico como solução ao “desemprego” não seria crer e fazer crer que a dinâmica da economia capitalista pode solucionar problemas decorrentes da própria existência do capitalismo, da apropriação privada, da competição pelo lucro? Não seria crer e fazer crer que o mal é a solução, ou que é através do mal que se encontra a solução? Não seria novamente se perder na heteronomia estabelecida? Evidentemente, uma vez que o problema é visto como falta de emprego, ou seja, que o problema é posto nos termos da ausência de uma determinada forma [7], de um produto, que só tem existência numa economia e numa sociedade capitalista, então a solução só poderá ser imaginada, e com razão, através de uma dinamização dessa economia (capitalista). Pondo o problema nos seus próprios termos, o capitalismo encontra assim o álibi social para sua própria expansão e crescimento, incorporando e mercantilizando cada vez mais esferas da vida e do planeta, não mais para produzir riquezas e acumulação, mas simplesmente para produzir emprego, para produzir trabalho. A geração de empregos se torna o álibi, a face “social” e exposta do crescimento econômico.
Bem, podemos concluir dessa reivindicação de trabalho e crescimento econômico os seguintes pontos, que também podem nos dizer muito sobre o estatuto do trabalho no capitalismo da nossa geração:
- O trabalho é o produto industrial e heterônomo que responde à necessidade de sobrevivência do indivíduo;
- O trabalho (industrializado, subordinado a um mando) constitui um monopólio radical à medida que se torna imperativo recorrer a ele para sobreviver;
- O crescimento e o desenvolvimento econômico devem produzir trabalho;
- O trabalho vira o produto planejado da industrialização;
- O trabalho vira álibi do crescimento econômico e da acumulação de capital;
- O trabalho ganha estatuto de objeto de consumo, aspecto que não lhe é mais desprezível, senão dominante.
Posto nesses termos, isto é, nos termos colocados por exemplo pela CMS no período em que a Lei da Renda Básica foi sancionada, a “valorização do trabalho” acaba significando uma desvalorização dos proletarizados [8], ou dos trabalhadores, se se preferir. Nesse caso, evidentemente, é preciso entender essa “valorização do trabalho” não somente em termos objetivos de elevação salarial [9], mas em termos subjetivos, de valorização dessa forma-trabalho produzida industrialmente pelo desenvolvimento capitalista ou pela criação de frentes de trabalho [10]. É desvalorização dos proletarizados na medida que ela não significa valorização das atividades concretas dos proletarizados e do fazer autônomo e fora do mando capitalista (chefe, patrão, gestor etc.) destes; e, ao contrário, acaba significando a valorização do mando, do mando do capital, que determina e define a forma-trabalho a que a esquerda em geral ainda se reporta e que se objetiva frequentemente na forma de emprego. Era de se esperar, ou pelo menos de se desejar, que, justamente em uma época de desemprego crônico, visto como principal problema nacional, as supostas vozes de esquerda viessem destacar e valorizar o que é produzido pelos proletarizados fora da forma-emprego, fora do assalariamento e da remuneração, e direta ou indiretamente explorado pelo capital ou tendo utilidade social. Mas não, costumam nos dizer — da esquerda à direita — apenas que se deve valorizar, e que portanto só tem valor, aquilo que o capital reconhece como passível de remuneração hoje, ou seja, em geral uma atividade que obedece a seu mando, supervisionada e subordinada — em geral o trabalho assalariado e os subempregos do mercado. A posição desejável leva tendencialmente à reivindicação de uma renda básica universal, a outra leva a reivindicar produção de trabalho e de emprego…
Negligenciar o fazer, a “produção” dos proletarizados que ocorre fora da forma-emprego (ou da forma-subemprego), não seria repreensível se ainda estivéssemos num momento, numa época, em que fosse desprezível o que nutre o capitalismo e que é produzido fora das fábricas, oficinas e locais ditos de trabalho.
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Não é mais possível ignorar, por exemplo, que a “produção” ocorre também e até principalmente nos guetos, nas periferias, nos bailes funks, através de estilos e de consumos que produzem signos, centrais não somente à indústria da moda propriamente dita, mas cada vez mais às indústrias de bens de consumo em geral. Ou quando consumimos simplesmente, quando buscamos sentido através de objetos e de atividades, quando traçamos objetivos políticos inovadores e com eles novas demandas, quando criamos novas formas de comportamento e novos gestos, quando nos tornamos (produzimos) signos através de nossa militância, de nosso movimento, de nossa convicção política… Ou quando usamos mídias sociais… Como é possível desprezar todas as atividades concretas e fazeres dos proletarizados que alimentam incessantemente a economia??!! Como é possível, numa situação de dificuldade econômica e de desempregabilidade crônicas, os proletarizados e seus movimentos ignorarem a produção de valor, quando não de utilidade social, que se processa fora do mando capitalista, fora do “trabalho” propriamente dito, e cujos atores — uma coletividade cujos limites não podem ser arbitrados e que engloba toda a sociedade — não são remunerados por essa produção??!! Ignorarem que neste sistema social não seja paradoxal que a tragédia e o drama da superexploração das famílias carvoeiras em Minas Gerais possa ser uma fonte de valor maior que a própria força de trabalho dessas famílias, rendendo uma grande matéria em horário nobre da TV Globo??!! Ignorarem que os empregados e mesmo os temporários hoje em dia correspondem apenas a determinadas e poucas funções estratégicas de um empreendimento cujo ciclo de “produção” é muito mais vasto e impossível recortar??!! Ignorarem que o capital explora cada vez mais nossa existência, nossa vida, e não somente nossa força de trabalho??!!
Atualmente o empreendimento capitalista que tende a se tornar hegemônico de forma cada vez mais explícita, quer o chamemos de pós-fordista ou de qualquer outro nome, consiste na captura, em pôr a seu serviço esses fluxos pré-constituídos de forma social e autônoma. Lançando mão de dispositivos de captura da atividade social em geral e das externalidades positivas que só podem ser produzidas autonomamente e em comunidade, o empreendimento capitalista hegemônico consistiria assim em saber localizar e pôr em sequência fluxos de fazer mais do que centralizar e organizar processos de trabalho — subordinando diretamente portanto apenas etapas estratégicas de trabalho. O crowdsourcing — ou multidarização na expressão da socióloga Juliana Oliveira — emergiu como dispositivo de captura dessa atividade social e externalidades. Os capitalistas já bem sabem o que é produzido fora da empresa. Quando os proletarizados tomarão consciência disso?
Com base no que tentei expor nestes últimos parágrafos, podemos concluir, ou destacar, os seguintes pontos:
- O salário não define mais quem produz valor ou utilidade social; num contexto de produção de valor difusa ele não define quem participa do ciclo de produção;
- O emprego e o trabalho ganham faticidade cada vez mais como controle político e social, e menos como atividade ou forma propriamente produtiva;
- Além da remuneração (salário, comissão etc.), a subordinação a um mando tende a formar a base da diferenciação entre a atividade laboral e não-laboral; o salário não indica quem produz, mas quem ou quando se produz sob o mando capitalista e/ou subordinado a um chefe;
Alguém chegando de Marte concluiria com razão que o fator determinante para se receber remuneração na sociedade em que vivemos não é a utilidade do que se produz, ou simplesmente participar da produção, mas o fato de se estar ou não subordinado a um chefe, patrão ou mando. A reivindicação de renda básica poderia assim muito bem significar o rompimento com um imaginário cada vez mais deslocado no contexto do capitalismo contemporâneo; imaginário que ainda confunde e mistura criação de riqueza e de valor com subordinação a um patrão e a um mando capitalista ou tecnocrático.
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A (reivindicação de) renda básica universal, além de responder a uma urgência material flagrante, corresponde a uma “valorização do trabalho” resultante da autovalorização dos proletarizados. Correspondendo a uma “valorização do trabalho” entendida como valorização das atividades concretas dos proletarizados, o que inclui o não-trabalho e os fazeres e atividades do “mundo da vida” (a produtividade do “mundo da vida”), a (reivindicação da) renda básica universal aparece assim como elemento de um processo de autovalorização dos proletarizados.
Dentro de um processo de autovalorização podemos ainda lembrar, junto com Emmanuel Rodríguez [11], que a renda básica significa a possibilidade de organizar de modo próprio o trabalho vivo, o fazer, dentro e contra a formação de capital, como demonstram os exemplos das redes de software livre, de empresas comunitárias, e como demonstrou a experiência dos piqueteros na Argentina, entre outras.
Processo de autovalorização que pode ser observado na América Latina na forma do resgate e reforço das culturas dos povos originários [12].
A resposta que muitas comunidades pobres e marginalizadas na América Latina, descendentes de povos originários, têm dado nas últimas duas décadas para sua situação econômica tem passado pelo reforço e resgate da sua cultura originária e ancestral. O resgate de elementos dessas culturas tem tido relevante papel no desenvolvimento das lutas sociais na América Latina e na proeminência de povos originários latino-americanos no cenário anticapitalista mundial. As respostas que essas culturas dão aos problemas de sobrevivência em geral passam longe, ou até mesmo se contrapõem, à ideia de desenvolvimento e crescimento econômico. Muitos mapuches, por exemplo, propõem voltar a formas ancestrais de convivência e não querem nem sequer a divisão equitativa do bolo, simplesmente porque o sabor do bolo não lhes agrada, isto é, sua concepção de “bem-estar” passa longe do consumo [13]. Recuperação de territórios, autodeterminação, resgate e manutenção de fazeres e modos de vida têm sido respostas conjuntas que podem ser encontradas nas lutas de vários desses povos originários.
Autovalorização que passa também pela autodefinição dos problemas enfrentados, isto é, definindo-os nos seus próprios termos; não mais como ausência de um produto fornecido por um mítico crescimento econômico, como define o poder. É o que fazem aqueles que de “desempregados” passam a se constituir em movimentos de sem-terra [14] ou se tornaram “piqueteros”. É o que fazem os povos zapatistas, os mapuches, os guaranis, os pataxós quando definem seus problemas e a si próprios não pela ausência de um produto industrial, mas em termos de autodeterminação e possibilidade de existência cultural. É o que farão aqueles que, de “desempregados”, se enxergarão antes como não-remunerados, reivindicando de início a renda básica universal. Fora da determinação e da definição heterônoma do capital as respostas são diversas e incontáveis, mesmo com todas as suas ambiguidades. Ceder ao capital o poder de definir os termos da discussão é entregar a própria capacidade de imaginação e criação. E não há autovalorização que não seja ao mesmo tempo criação.
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Para finalizar esses parágrafos que já se estendem, apenas três pontos em favor do lema “renda básica universal” (em detrimento do lema “trabalho” ou “emprego”):
- “País cria emprego mas aquém do necessário” (manchete da Folha de S.Paulo, 21/05/2004). “País cria 644 mil empregos formais em 2019, melhor resultado em seis anos” (manchete de O Globo, 24/01/2020). Tais manchetes, bastante comuns nos noticiários nacionais, deixam claro que aquilo que a sociedade deve produzir é acima de tudo “trabalho”. Tal circularidade — trabalhar para produzir trabalho, onde o trabalho não encontra referência fora dele mesmo, caminhando indiferentemente pelo “útil” e pelo “inútil”, pelo “decente” e “indecente”, pelo “construtivo” e pelo “destrutivo” — o expõe em toda a sua irracionalidade atual enquanto categoria econômica, despertando seu sentido como forma política, de controle e reprodução social. O que vemos é o discurso da economia política — e mesmo da sua crítica clássica — assim como o discurso sindical, empresarial, governamental, jornalístico alimentarem um princípio de realidade, alimentarem um imaginário, e funcionarem como ideologia (no sentido marxiano do termo). Em uma situação em que as categorias e conceitos da economia política implodem junto com a própria separação entre consumo/produção, produção/reprodução, produção/circulação, produtivo/improdutivo, economia/cultura, os discursos da produção, do trabalho, do valor de uso constituem um princípio fantasma de dissuasão [15]. Quando é a sociedade a estar subsumida no capital, essa separação do econômico em uma esfera da “produção” e do “trabalho” constitui acima de tudo um modelo de simulação, um princípio de realidade e um imaginário a serem alimentados. Reivindiquemos renda e não trabalho, portanto.
- Se a distinção entre não-trabalho e trabalho tende a desaparecer tendo-se como referência o valor e as habilidades envolvidas (cada vez mais os trabalhos são constituídos por habilidades políticas, comunicativas e relacionais), por outro lado, se a referência é a autonomia, a liberdade e até mesmo o sentido para o indivíduo em nível vivido, a atividade da “vida não-remunerada” (o fazer, o não-trabalho) é ainda na maioria dos casos substancialmente diferente da atividade da “vida remunerada” (o trabalho). A sensação de já se “trabalhar” (fazer) demais para ter de arrumar “trabalho” (emprego), e de que essas atividades que fazemos são, senão mais “úteis”, pelo menos mais preenchidas com sentido do que os empregos e a maioria das atividades remuneradas que estão por aí, pode indicar não apenas a subjetividade de uns tantos jovens, mas certas condições objetivas, a partir das quais um projeto subversivo se torna possível.
- Ao passo que a Renda Básica é potencialmente capaz de unificar sob a sua bandeira — em torno de uma reivindicação concreta e já legitimada por uma lei — movimentos de desempregados e de sem-teto, jovens sem perspectiva de emprego ou que buscam autonomia, trabalhadores precarizados e flexibilizados e praticamente todos os segmentos da população; a bandeira Emprego, ou Trabalho, permanece abstrata e serve antes como álibi, faceta “social”, de uma política de desenvolvimento e crescimento econômico. Emprego ou Trabalho de início se mostra menos propenso a unificar segmentos da população por ser abstrato e incapaz de se objetivar numa conquista social para um segmento amplo ou significativo da população. E é incapaz de se objetivar numa conquista porque na prática o “emprego” não se coloca dentro da esfera do direito social, mas da contingência e aleatoriedade do mercado, batendo à porta de uns mas não de outros. Enquanto a Renda Básica se coloca como benefício gerido numa esfera pública, o emprego é necessariamente um benefício concedido e decidido na esfera privada empresarial, ou seja, cuja gestão é deixada ao mercado… restando apelar às hipotéticas políticas macroeconômicas que, miticamente, o produziriam.
Dezembro de 2004 – abril de 2020
Notas
[1] Participavam da CMS movimentos e organizações como o MST, a CUT, MTST, entre outros.
[2] Cf. Manifesto da Coordenação dos Movimentos Sociais, documento base da CMS, de 20 de agosto de 2003. Em 11 de setembro de 2003 a CMS lançou um manifesto menor, chamado Mobilização pelo Desenvolvimento Nacional, assinado pela CUT (Central Única dos Trabalhadores), MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), UNE (União Nacional dos Estudantes), CMP (Coordenação de Movimentos Populares), Pastorais Sociais, Conam (Confederação Nacional das Associações de Moradores), UBES (União Brasileira de Estudantes Secundaristas), MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), UBM (União Brasileira de Mulheres), Marcha Mundial das Mulheres, Consulta Popular, JOC/Brasileira (Juventude Operária Católica), CIMI (Conselho Indígena Missionário), MTD (Movimento de Trabalhadores Desempregados), Conen (Coordenação Nacional de Entidades Negras).
[3] Veja por exemplo Manifesto da Coordenação dos Movimentos Sociais, op.cit.
[4] Cf. ILLICH, Ivan. Energia e Equidade. In: LUDD, Ned (org.). Apocalipse Motorizado: a tirania do automóvel em um planeta poluído. São Paulo: Conrad, 2004.
[5] Por exemplo, se para saciar a sede se é obrigado a beber refrigerante (seja ele da marca x ou y): “Um homem com sede pode desejar beber uma bebida não alcoólica, fresca e gasosa, e se ver limitado na escolha por haver uma só marca, mas permanece livre para saciar sua sede bebendo cerveja ou água. Só quando sua sede se traduz, sem outra possibilidade, na necessidade imperiosa de comprar obrigatoriamente uma garrafa de determinada bebida, se estabelece o monopólio radical” (Ivan Illich, O Monopólio Radical. Trecho do livro A Convivencialidade).
[6] Illich usava a palavra vernacular para descrever o simples, o local, o comunal, o que prescinde de assistência externa.
[7] Aqui utilizamos forma segundo a definição de John Holloway, segundo o qual as formas (forma-mercadoria, forma-emprego, forma-Estado etc.) são modos de existência das relações sociais. Cf. HOLLOWAY, John. Mudar o Mundo sem Tomar o Poder. São Paulo: Viramundo, 2003.
[8] Por proletarizados pode-se entender, seguindo uma definição inspirada em Hardt e Negri, todos aqueles cuja atividade é direta ou indiretamente explorada por normas capitalistas de produção e reprodução, e a elas subjugado. Cf. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.
[9] Sobre elevação salarial a pergunta que não quieta é: existe medida mais eficaz para elevação salarial do que a garantia de uma renda básica universal?
[10] Não queremos ser injustos na crítica, pois de fato a reivindicação de frentes de trabalho pode ser uma bandeira interessante não apenas para a construção de movimento social, mas na medida que o próprio trabalho é planejado e gerenciado pelo movimento, abrindo importantes espaços de autonomia e de formação política, como demonstram algumas experiências no Brasil.
[11] RODRÍGUEZ, Emmanuel. El gobierno imposible: trabajo y fronteras en las metrópolis de la abundancia. Madri: Traficantes de Sueños, 2003.
[12] Como esse projeto geral desenvolvimentista, produtivista e nacionalista da esquerda majoritária (dos movimentos em torno da CMS, passando pelo desenvolvimentismo de Dilma e Ciro Gomes) poderia se compatibilizar na prática com um “apoio às lutas dos povos indígenas” e à “garantia de suas terras e culturas” (ver Manifesto da CMS, op. cit.) é uma dúvida que paira no ar. Como tal projeto e tais demandas formuladas poderiam se compatibilizar com o desejo e a cultura expressa pelo Cacique Adão, da aldeia do Massiambu? Em abril de 2004, num dia de manifestações indígenas em Florianópolis, o Cacique Adão expressou seu desconforto com a acusação de que eles não produziam nas suas terras declarando: “Nós nunca aprendemos a trabalhar. Trabalho para nós é a coisa mais ruim que tem. Trabalho é tristeza. Nós temos a nossa cultura: fazer, fazer alguma coisa em comunidade” (Cf. Dia de manifestações indígenas em Florianópolis, 20/04/2004, publicado aqui, atualmente fora do ar). “O Brasil quer Trabalhar” dizia a CMS, mas o Cacique Adão e sua aldeia não queriam.
[13] Uma referência podia ser achada na enrevista “Los mapuches frente al gobierno y las multinacionales”, disponível aqui em 2004. O leitor poderá possivelmente apreender hoje em dia o imaginário dos Mapuches em outras entrevistas e matérias disponíveis online.
[14] É bom lembrar a grande hipocrisia da direita a esse respeito: ao mesmo tempo em que retoricamente se mostra preocupada em solucionar o problema do “desemprego” ataca os movimentos de sem-terra, que têm remediado o “desemprego” mais do que qualquer conjunto de políticos, economistas e empresários poderia sonhar em fazer. Não é novidade que grande parte dos integrantes desses movimentos já engrossavam as favelas nos centros urbanos. Na passagem de desempregado a sem-terra já se reduz por si só o número de desempregados. Além disso, a perspectiva da luta pela reforma agrária através de um movimento organizado e de ação direta faz com que um contingente de camponeses não venha aumentar as estatísticas de “desemprego” nas cidades.
[15] Sobre a ideia ou estágio da economia política como um princípio fantasma de dissuasão, na qual ela não desapareceria propriamente mas ganharia tal forma de existência, ver: BAUDRILARD, Jean. A Troca Simbólica e a Morte. Rio de Janeiro: Loyola, 1996.
Ilustram este artigo esculturas de Léopold Chauveau