Por Lucas
É bastante recente, na história da humanidade, a noção de que homens e mulheres possam juntos realizar uma sociedade que tenha por critério o bem-estar geral, o autogoverno, a centralidade posta nos sujeitos desta mesma sociedade. Vejam que neste balaio podemos colocar quase tudo o que veio depois da revolução francesa, em termos de projetos políticos (e podemos opinar também que certas ideias terminaram caindo para fora dele). E seus inimigos principais foram e são aquelas forças conservadoras que invocam critérios transcendentais: o ser humano não é capaz de dominar seu próprio destino, e nosso caminho pelo vale de lágrimas inclui necessariamente a exploração do homem pelo homem, a hierarquia, a inferioridade das mulheres, o tribalismo, o exercício da crueldade, o amor pela guerra, etc.
A crítica aos rígidos valores tradicionalistas e ao ordenamento despótico da economia, que garantia os privilégios legais e hereditários de uma minoria, foi subversiva ao opor um nascente liberalismo contra o conservadorismo. Estava no centro da cena a possibilidade de o homem (e talvez alguma mulher) questionar os fundamentos mesmos da ordem social, pensar sua própria sociedade como um produto coletivo de sujeitos ativos, sem travas para empreender projetos, para debater todo tipo de questões sobre costumes, religião, a natureza do conhecimento, sem as balizas das escrituras sagradas e daquelas instituições que lhe funcionam de procuração.
Sem dúvida estamos falando de um cenário europeu. Mas outro caso particular é o dos Estados Unidos. Naquelas terras, o conservador respeita o “espírito” da Constituição, aquelas motivações profundas e fundamentais que inclinaram os Pais Fundadores a redigir o documento que sintetizaria a ordem social de um novo tipo de nação. Os complexos conflitos ideológicos e mercantis no seio desta nova classe social dirigente viriam a desatar a Guerra Civil algumas décadas depois da independência. Mas o que nos interessa aqui é o fato de que, no século XX, os termos conservador e liberal ganham conotações antagonistas diferentes das que se utilizam em outros lugares. Este antagonismo, que é maltratado pela retórica e pela elasticidade do uso de ambas as palavras, pode ser, no entanto, bem caracterizado a partir do famoso New Deal, o plano econômico federal do governo dos EUA para recuperar a economia após a crise de 1929. Dentro do espírito federalista da constituição, os conservadores estadunidenses eram fortemente contrários ao acúmulo de funções e à intervenção econômica do governo central. Para eles, os problemas deveriam ser resolvidos por cada estado segundo suas capacidades e recursos, obviamente a partir da iniciativa privada (por mais miserável que esta fosse na situação dada) e da força comunal, que é a base mitológica (e também muito concreta, como no caso da Ku Klux Klan) da nação estadunidense. Do lado daquilo que foi chamado liberal estavam aqueles que defendiam as medidas firmes e contundentes do governo federal a fim de criar um novo crescimento econômico e bem-estar social. Isto incluía a criação de diversas agências de regulação estatais, para dinamizar o contato econômico entre os estados, um plano de assistência federal para estados com menos recursos, obras públicas, etc. É claro que, como bons capitalistas, também tinham intenções de influenciar em temas delicados, mas muito importantes, como a educação e os direitos civis, escandalizando muitos opositores. Por isso o termo progressista também é associado aos liberais, ainda que possa existir um “conservadorismo progressista” na paleta ideológica.
Por fim, adicionamos à receita um ingrediente a mais. A ciência econômica como fundamento das relações sociais por muito tempo foi apenas um tópico de discussão acadêmica, de colunas em jornais de circulação restringida aos setores sociais com formação erudita. A defesa da propriedade privada durante o século XX foi uma bandeira da Igreja Católica, mas seu fundamento religioso foi perdendo espaço para uma retórica científica ou tecnocrática, como está ocorrendo em tantas outras trincheiras (aborto, abstinência sexual, meio ambiente, etc). E se para a classe gestora internacional já não faz muito sentido apresentar uma defesa de princípios a respeito da inviolabilidade da propriedade privada, já que sua atenção está posta na economia global e não nas desaventuras mundanas das almas, é uma explicação econômica “científica” a que acalma os corações e demonstra que a iniciativa privada é a única e verdadeira solução. Os globalistas não ligam para o povo, e o povo em cólera, com suas pobres condições de vida, precisa de narrativas claras que possam vincular-se com o seu cotidiano. Uma explicação “subersiva”, que vem romper os esquemas e os poderes instituídos. Uma explicação que diz respeito apenas ao indivíduo e seu esforço neste mundo, e não se mete em filosofias sobre a organização social e os fins da sociedade.
Assim, está feita a reconciliação entre o conservadorismo político e o liberalismo econômico. Pois se trata de entender que está vedado ao homem e à mulher as intenções de realizar uma sociedade que tenha os sujeitos como agentes. Não. O destino da humanidade é alheio às nossas intenções, tanto faz se estamos falando de um plano divino ou de uma suposta natureza humana egoísta. Estas realidades, divina ou essencialmente humana, são tão óbvias para quem quiser ver que qualquer ideia que saia destas margens só pode ser o resultado de uma manipulação das elites. E sabemos que as elites são poderosas e farão de tudo para manter-se no poder, gerando ilusões e jogos mentais a que devemos resistir.
Para estes setores sociais, a agência humana tem um lugar muito específico para seu exercício, a propriedade privada. Mas não apenas no seu aspecto econômico. De fato, mais importante do que seu aspecto econômico é seu aspecto patriarcal. É no âmbito da família que o ser humano pode expressar sua agência. O homem educa e provê, a mulher cuida e ama, os filhos e as filhas obedecem e levam adiante os valores de seus antepassados. Existe uma forte contradição quando as empresas privadas começam a ameaçar a família, promovendo valores hostis à configuração tradicional, e neste momento passamos a chamar estas empresas de “corporações”, pois não por acaso já não estamos falando de empresas familiares, mas sim de poderes econômicos controlados por gestores globalistas sem laços nacionais, que não se importam com as fontes de trabalho no nosso país, que modulam constantemente seu discurso público para agradar minorias, etc.
Por tudo isso, é chamativo que na Europa estão sendo dados os primeiros passos de uma renovada aliança entre os Partidos Verdes e os conservadores. Uma boa carga de pragmatismo e um cenário de forte crise econômica ajudam as novas configurações políticas. Há pouco tempo atrás era comum que os conservadores apontassem os ecologistas como uma nova modalidade de força comunista. Por um lado isto se justificava pela leva de ativistas e militantes do movimento comunista que passaram para as filas do ambientalismo. Por outro, o ecologismo também parecia ser uma forma de forte controle estatal que buscava direcionar a sociedade, restringindo a liberdade econômica em nome de um bem maior. No entanto, os conservadores europeus, em países como Áustria e Irlanda, parecem estar percebendo que a pauta ambientalista não apenas não afeta as relações sociais tradicionais em seus países, senão que pode chegar a ser um novo tipo de plataforma protecionista para sua indústria, além de veicular conteúdos emocionais relativos ao território, às formas de vida e à concepção de mundo. Toda uma mudança para não sair do lugar.
Mas enquanto os conservadores não formulam maneiras de adaptar novos conteúdos às velhas formas, qualquer intenção de alterar o rumo natural das coisas é um plano ateu e comunista. Por isso os comunistas usam máscara na pandemia. Pois pensam que podem mudar o destino da humanidade a partir de suas ações conscientes no mundo. Também há todo tipo de gente que usa as máscaras sanitárias por outros motivos, por outros critérios. Serão muitos os tipos de comunistas neste balaio, mas este parece ser o balaio em questão.
Este artigo foi ilustrado com obras de René Magritte (1898-1967).