©Photo. R.M.N. / R.-G. OjŽda

Por Loren Goldner

Parte I. Sincronia. Estrutura Económica e Social do Século VI ao Século IX. 1995.
Parte II. Diacronia. Conflitos Sociais do Século V ao Século XIV. 1997.
Parte III. Sincronia. Família, Dinheiro e Estado do Século XI ao Século XIV. 2002.

João Bernardo é com certeza um dos teóricos radicais mais prolíficos e prodigiosos dos últimos 30 anos, mas, por escrever em seu português nativo e por muito pouco de seu trabalho ter sido traduzido para o inglês, ele permanece em grande parte desconhecido no mundo do marxismo anglófono. A publicação, este ano [2002], do terceiro e último volume de seu massivo estudo de 2000 páginas sobre o “regime senhorial” na Europa dos séculos V a XV constitui uma ocasião para, modestamente, corrigir esta lacuna. O objetivo da resenha a seguir é tanto tornar João Bernardo mais conhecido no mundo marxista anglófono, quanto, acima de tudo, trazer sua obra mais ambiciosa até hoje à atenção daquele mundo, e mais além. (Espera-se também dar a conhecer o livro de Bernardo a alguns verdadeiros medievalistas — o que, categoricamente, não sou — capazes de resenhá-lo em maior profundidade, ou de acelerar a sua tradução para o inglês) [1].

Os leitores da obra pregressa de Bernardo sabem a importância que ele dá aos “gestores” no desenvolvimento do capitalismo, mas aqueles que encontram o autor pela primeira vez neste estudo de três volumes do “regime senhorial” (termo que usa em vez de “feudalismo” [2]) não reconheceriam necessariamente a centralidade e as fontes deste aspecto de sua agenda, pois “os gestores” não estiveram socialmente no proscênio na maior parte do período analisado. Mas o livro “olha para frente” muitas vezes, para a emergência do absolutismo, e além do absolutismo para o capitalismo, para deixar claro qual é a importância final do “estado impessoal” para Bernardo.

O que sobressai em toda a análise de Bernardo é um sério desafio às interpretações estabelecidas (incluindo as marxistas ortodoxas) acerca destes séculos. Todas essas interpretações convergem em torno da tese de que a crise do regime senhorial em meados do século XIV (mais dramaticamente, é claro, na Peste Negra de 1348-49) foi o resultado do esgotamento da terra virgem disponível para cultivo, após quase mil anos em que uma dinâmica central do sistema tinha sido precisamente a ocupação e desenvolvimento de tais terras, um processo que, de fato, tinha sido praticamente paralisado no século XIV. Dentro dessa dinâmica, as principais interpretações citam fatores demográficos, agrários e tecnológicos [3], e para explicar o impacto da monetização da economia nos últimos séculos, alguns tendem a ver anacronicamente categorias protocapitalistas, como se o comércio fosse capitalismo. Para Bernardo, pelo contrário, todos estes fenômenos, até o comércio e as finanças internacionais inclusive (durante os séculos XIII e XIV), têm de ser vistos como um desdobramento ativo das relações de classe do regime senhorial, mediado em cada passo do caminho pela luta ativa entre classes.

Bernardo começa por identificar treze variantes regionais e temporais do regime senhorial, em contraste com o uso mais tradicional do “feudalismo”, derivado do caso do norte da França [4]. No centro de todo o seu estudo estão os conceitos do bannum e do mundium, ou as esferas do poder e (grosso modo) do serviço social do senhor, respectivamente. O bannum é “em suma, o poder do senhor de dizer sim e não” (I, 226), na paz e na guerra; o mundium era o lado mais benevolente e protetor do poder associado ao bannum. Bernardo vê essas esferas começarem inicialmente na casa do senhor e depois se expandirem para incluir outras famílias. Uma relação de desigualdade que começou dentro da família se tornou a base das relações entre o senhor e os servos, e entre o senhor e seus vassalos. As estruturas familiares foram o principal elemento organizacional deste modo de produção, baseado na troca de presentes [5]. Bernardo formula assim o que ele chama de “lei do regime senhorial” (primeira versão, para os séculos V a X) como a “troca pessoal e particularizada, ao longo do tempo, de presentes constituídos por objetos econômicos concretos de função desigual”, ou mais sucintamente uma “troca de funções desiguais” (I, 239) [6].

Tais relações regeram, por exemplo, a cunhagem do dinheiro, como no caso dos carolíngios, e Bernardo mostra tais tentativas de “fortalecer o conteúdo prateado como confirmação de um desejo de continuidade nos sistemas de poder” (I, 553); as relações monetárias e sociais estavam inextricavelmente entrelaçadas, mais uma expressão do bannum. Mas, finalmente, a expansão do bannum através do dinheiro, e a redução dos camponeses independentes a servos, só foi realizada através de um intenso conflito social. Além disso, em contraste com o pensamento histórico dominante (incluindo o pensamento marxista dominante quanto a este período), Bernardo insiste que “os conflitos não são uma realidade distinta das operações diárias do sistema social”, mas são essenciais para iluminar tais operações. Já desde os últimos séculos do império romano em diante e a formação inicial do regime senhorial, a fuga e o banditismo (por exemplo) foram continuações de lutas que tinham sido dominadas militarmente [7]. Mais tarde, a repressão de tais lutas obrigou muitas vezes a aristocracia cristã a suspender as guerras contra os muçulmanos. Mais uma vez, a expansão rumo às terras virgens é, para Bernardo, também forma de luta (II, 73).

Bernardo vê a forma inicial e pessoal de poder transformada em impessoal através da maior crise social dos séculos IX e X. É aqui que a sua originalidade se torna evidente e transforma as interpretações mais tradicionais da expansão em novas terras numa expressão de conflito social. (Ele mostra, por exemplo, como as conhecidas invasões dos vikings, magiares e muçulmanos associadas ao período após o colapso do império carolíngio foram, mais uma vez, não apenas incursões militares perturbadoras da ordem, mas como, pelo contrário, foram intercaladas de perto com a transformação das relações sociais então em curso, relações que por sua vez influenciaram os desenvolvimentos militares [8].) As invasões, devido a alianças entre invasores e facções dos invadidos, acabaram por expandir o sistema senhorial. Os resultados militares em diferentes partes do ex-império inspiraram-se em séculos anteriores de história em reorganizações diferentes e específicas das hierarquias locais. Até a crise, as terras não cultivadas e as vastas florestas eram para um campesinato independente uma válvula de escape permanente tanto para a simples fuga quanto para a migração, e a existência dessa válvula de escape teve um impacto direto na possível taxa de exploração do campesinato servil nas terras sob controle senhorial. “O controle sobre a abertura de novas terras era, para a aristocracia, a condição para superar a crise” (II, 607-608). Bernardo mostra como muitas das conhecidas heresias da época estavam, de fato, intimamente ligadas a esses lugares de refúgio. A crise dos séculos IX e X foi moldada pelo desaparecimento de um campesinato independente, quando os senhores estenderam seu controle sobre as terras anteriormente não cultivadas [9]. A estrutura familiar era integral, pois os filhos segundos de famílias aristocráticas e camponesas eram a principal força em novos assentamentos. As relações anteriores, modeladas na família e, portanto, surgindo como relações pessoais, deram lugar a relações impessoais, em que os grandes senhores dominavam uma população de servos mais uniforme que vivia nos seus territórios. A mesma impessoalidade estendeu-se às relações do senhor com os seus vassalos. Bernardo vê esta transição em conjunto com mudanças profundas nas estruturas familiares do campesinato e da aristocracia. O comunitarismo rural, a seu ver, evoluiu como uma “grande família artificial”. Até a crise dos séculos IX e X, as comunidades rurais continham servos e camponeses independentes; após o desaparecimento do campesinato independente, as comunidades rurais adquiriram uma impessoalidade que refletia a nova regra impessoal do senhor. As heresias ocorreram em terras que tinham sido recentemente enredadas por relações senhoriais, e refletiram o novo comunitarismo que foi uma resposta às novas formas senhoriais impessoais [10]. O controle das igrejas locais pela classe senhorial era parte integrante das novas relações. (O papel dos filhos segundos de famílias senhoriais no povoamento do nível superior da hierarquia eclesiástica mostra a centralidade contínua da família no sistema geral). A propagação das fortificações não visava tanto os inimigos externos, mas sim a potencial oposição interna. Nesse novo contexto sem camponeses independentes, o comunitarismo rural e as relações de exploração nele existentes foram refeitas, assim como a família senhorial, com “a contenção sistemática da população rural sendo inseparável da refiguração da classe dominante” (II, 361). Parte disso, para os explorados, incluía a penetração do trabalho assalariado nas antigas formas senhoriais (II, 343).

Uma remontagem semelhante da elite aristocrática teve lugar nas cidades, através de formas pacíficas e violentas de luta. Mesmo onde apareceram certos aspectos de manufatura, como em Veneza, a forma corporativa de organização manteve toda a produção dentro das relações senhoriais urbanas (II, 429), e, segundo Bernardo, não havia nenhuma classe assalariada como tal durante esse período (II, 437). Houve, naturalmente, em várias cidades, uma grande população flutuante (arraia-miúda) excluída da elite e das corporações artesanais, que sobreviveu de uma combinação de caridade, crime e trabalho ocasional, mas suas erupções foram, até o final do século XIV, sempre mobilizadas em lutas entre facções da elite urbana [11]. Sua convergência e conversão em uma única forma de trabalhadores assalariados estava a séculos de distância (II, 449).

Para Bernardo, além disso, a cidade atuava como um “senhor coletivo” em relação ao mundo rural circundante, sobre o qual exercia efetivamente o bannum; as cidades eram “parte integrante do regime senhorial” (II, 516). Assim, muitos membros da elite senhorial urbana, embora permanecendo na cidade, continuaram a adquirir mais terras e permaneceram intensamente interessados no funcionamento de suas propriedades rurais (II, 476). A cidade explorou o campesinato sob seu controle, geralmente através da tributação [12]. Na Flandres, as cidades até organizaram ataques confiscatórios para impor impostos sobre o campo. Bernardo rejeita os “mitos” que tendem a ver os grandes comerciantes urbanos como aspirantes a uma vida diferente da nobreza, ou a ver a nobreza como indiferente aos negócios. Ele acha impossível desembaraçar as duas esferas, como, por exemplo, na atividade empresarial de muitas ordens militares como os Cavaleiros Teutônicos. Da mesma forma, a maioria das famosas batalhas das facções urbanas em várias cidades italianas (como aquelas entre guelfos e gibelinos) estavam geralmente ligadas a conflitos e alianças com a nobreza rural.

Bernardo, como indicado anteriormente, rejeita as explicações demográficas da expansão do sistema. “É”, escreve ele, “sem dúvida muito confortável para os historiadores invocarem acontecimentos externos, eles próprios inexplicáveis, para justificar processos sociais complexos. As flutuações demográficas estão sempre disponíveis como argumento, e como observei… quando fiz a análise da expansão para novas terras no período anterior, o fato de um aumento da terra cultivada é a base sobre a qual muitos autores deduzem que a população aumentou, sendo essa dedução apresentada ao mesmo tempo que a causa desse fato. A explicação para um dos processos econômicos e sociais mais decisivos permanece, portanto, presa em um círculo vicioso metodológico”. (II, 529). Nenhum desses aumentos populacionais, argumenta o autor, causou a colonização e novos assentamentos. Pelo contrário, tais expansões geralmente eram uma expressão do poder senhorial, como (para dar um exemplo entre muitos) no caso dos monarcas boêmios e húngaros que encorajaram a imigração estrangeira a se fortalecer e a reduzir o poder dos aristocratas locais. (II, 539). As grandes peregrinações, sobretudo a partir do final do século XI, a Jerusalém (Bernardo rejeita o termo “cruzadas”), são ainda mais evidentes evidências da difusão da soberania senhorial sem colonização (II, 550-551). Eram, antes, válvulas de escape “permitindo ao regime superar a grande crise dos séculos IX e X sem a explosão de seus antagonismos” (II, 552). “O desmatamento e a abertura de novos campos não eram apenas operações da economia agrária, mas aspectos de uma colonização entendida no sentido amplo da palavra, como submissão das populações a uma fiscalização contínua” (II, 583). Ao privar as heresias de suas fortalezas, a classe senhorial as continha temporariamente. Enquanto alguns desses movimentos, como os valdenses, conseguiram apoio generalizado dos camponeses, sua autodefesa militar acabou empurrando-os para exigir tributo de uma nova forma dos camponeses, alienando-os e deixando os hereges isolados abertos à destruição. No final do período em estudo (século XIV), esses movimentos começaram a mudar seu foco de uma Jerusalém imaginária para a construção de uma Jerusalém real.

Depois de fazer essa análise, Bernardo volta-se no Volume III para a questão do dinheiro, e é aqui que ele mostra, de forma altamente original, como é impossível entender o dinheiro no regime senhorial sem entender as relações esboçadas acima, e sua evolução. O dinheiro, para Bernardo, era o veículo do poder impessoal. Após a imposição do poder impessoal pelo século X, a classe senhorial conseguiu o controle total da criação do dinheiro, mas Bernardo insiste que é um erro comum de interpretações mais antigas ver essa evolução como resultado do comércio. O dinheiro se espalhou, a seu ver, como instrumento de poder impessoal entre senhores e servos e entre senhores e vassalos. A sua difusão não pôs de modo algum em causa o poder senhorial. Para Bernardo, o dinheiro não funcionava como agente de troca, mas como agente do exercício impessoal do poder, como na substituição do tributo monetário por formas mais antigas de tributo em espécie [13]. Ele insiste, mais uma vez, na distinção entre comércio e capitalismo.

Para aprofundar esta análise, Bernardo distingue três tipos de dinheiro, a Forma I usada nas relações entre os senhores e os servos [14], a Forma II usada nas relações entre os senhores e seus vassalos, e a Forma III, dinheiro fiduciário que surgiu para financiar operações de crédito nas cidades, que (como já foi dito) Bernardo considera um “senhor coletivo” em suas relações com o mundo rural ao seu redor [15].

Para Bernardo, esses três tipos de dinheiro são a chave para uma compreensão do novo papel da monarquia a partir do século X. A sua convergência no rei ocorre precisamente após a extinção do campesinato independente. Assim, a operação do dinheiro, longe de ser uma força comercial cega, na verdade expressa relações sociais por toda parte. A política monetária dos reis (como a tentativa de estabelecer uma moeda forte na França entre 1360 e 1385) foi muitas vezes a causa direta da resistência popular. A nova fase do poder impessoal refez as duas famílias aristocráticas, bem como a relação destas últimas com os vassalos [16]. O uso de mercenários espalhou-se, minando formas mais antigas de serviço militar vassalo. Os vassalos pagavam cada vez mais o seu tributo em dinheiro. O dinheiro assumiu progressivamente o bannum e o mundium impessoais remanescentes, com o crédito a desempenhar um papel cada vez maior (III, 268-269). As duas grandes ordens militares, os templários e os cavaleiros de São João de Jerusalém, eram banqueiras. A própria emergência de grupos como os monges, nessa capacidade, refletiu a nova impessoalidade das relações sociais. Relações semelhantes, novamente mediadas pelo dinheiro, deram origem a uma burocracia assalariada, novos “profissionais de gestão” (III, 280) como Bernardo os chama. “A separação da esfera pública da esfera privada, sem a qual o Estado moderno não se desenvolveria, tem sua gênese nesse período….”. (III, 286). Universidades foram desenvolvidas para educar este estrato independentemente das instituições para a educação do clero. Para Bernardo, esta reconstrução impessoal das casas senhoriais através da Forma II do dinheiro (usado entre senhores e vassalos) aponta para todo o período do absolutismo, e “do século XV ao século XVIII toda a vida social e política pode ser analisada nos termos paradoxais das famílias artificiais impessoais” (III, 293). Voltando ao seu próprio período de emergência do poder impessoal, ele aponta como o modelo da família moldou até mesmo as instituições comerciais (III, 355).

No cenário urbano, no século XIV, o que Bernardo chama de Forma III ou dinheiro fiduciário (fiat ou papel) vem à tona, financiando um impressionante nível de comércio de longa distância. Ele vê este tipo de dinheiro emergir em conjunto com “a intensificação das contradições internas da sociedade urbana”, sobretudo no norte da Itália. No entanto, esse dinheiro fiduciário (ao contrário do que ocorreu séculos mais tarde sob o absolutismo) expandiu-se “sem a existência de qualquer centro estável de soberania com alcance global” (III, 375). Essa forma de dinheiro (seguindo a insistência de Bernardo no modelo de família em ambas as fases dos regimes senhorial) era ainda “parafamiliar” e não meramente mercantil, como se tornaria mais tarde. Bernardo traça o surgimento de letras de câmbio, seguros e crédito como atividades recém-especializadas dentro desse quadro. O dinheiro fiduciário começou a se espalhar a partir de práticas improvisadas de reservas fracionárias por profissionais de câmbio de moeda estrangeira (III, 405). As grandes feiras, como a famosa feira de Champagne, alcançaram tais dimensões que os cambistas e os banqueiros que supervisionavam a liquidação das contas começaram a lidar com transações que excediam seriamente as atividades das próprias feiras, tornando-se assim outra fonte de dinheiro fiduciário (III, 418). O dinheiro fiduciário criado por essas práticas da Forma III frustrou a capacidade das autoridades de controlar o dinheiro, como fizeram com as Formas I e II, através de antigas práticas de cunhagem e rebaixamento. As relações sociais pré-capitalistas expressas através das formas de dinheiro foram sublinhadas pela importância do saque para as associações comerciais internacionais, como a Liga Hanseática; assim, elas ampliaram uma antiga prática senhorial e não podiam ser entendidas como meramente comerciais. O rei da França realizou uma forma maciça de saque em 1307, quando suprimiu os monges-guerreiros banqueiros, os cavaleiros templários, e confiscou todos os seus bens. Nas cidades, a gestão da dívida pública atingiu um nível de sofisticação que mais tarde passaria para os grandes Estados absolutistas, e foi subscrita por novas formas fortemente regressivas de tributação dos pobres (III, 456, 461). O funcionamento da dívida pública “foi sempre acompanhado de convulsões sociais”. Assim, foram chamados à existência bancos públicos que eram, de fato, bancos centrais. “Os principais atributos do dinheiro no regime senhorial eram de ordem social e política, como veículo de relações sociais e sistemas de poder, e não de ordem econômica imediata, como ocorreria no capitalismo” (III, 472). As Formas I, II e III do dinheiro convergiram nos monarcas, que degradaram a Forma I metálica detida pelos pobres para fortalecer a Forma II usada com vassalos, o que por sua vez teve um impacto na capacidade de criar a Forma III do dinheiro fiduciário. Mas, mais uma vez, essas “operações de dinheiro e crédito não anteciparam de forma alguma o sistema capitalista. Pelo contrário, constituíram, tanto no plano econômico quanto no ideológico, o pleno funcionamento do regime senhorial” (III, 484). Mais uma vez, Bernardo polemiza contra muitos historiadores “apressados em assimilar o comércio ao capitalismo” (III, 490). A nobreza, “sem exceção”, teve de intervir constantemente nas atividades comerciais, com seus poderes de cunhagem local. Os monarcas de Anjou especulavam massivamente, entesourando alimentos para vender a preços elevados em tempos de escassez, revelando os mecanismos sub-reptícios do mundium no novo período impessoal. As atividades de crédito da Igreja, como as dos cavaleiros templários e do papado, são para Bernardo explicadas “como modalidades do mundium”, e não como hipocrisia contra restrições ideológicas sobre juros (III, 505). Ao final do período, a gestão da dívida pública também deixou de ser classificada como usura. A aristocracia religiosa fazia parte do regime senhorial tanto quanto a nobreza leiga e as elites urbanas. Até o século XIV, após a crise dos séculos IX e X, os monarcas lutaram para afirmar o seu controle sobre a cunhagem anteriormente descentralizada. Nas suas práticas fiscais e de crédito, as três formas de dinheiro convergiram. Os novos sistemas fiscais exigiam “uma conjugação de transformações sociais muito profundas”, uma conjugação que era possível “apenas quando o carácter impessoal da relação adquiriu hegemonia completa e quando os monarcas conseguiram gerir uma nova burocracia capaz de lidar com os mecanismos abstratos do dinheiro” (III, 563). “Só numa sociedade em que o dinheiro já permeava todas as relações era possível diferenciar o bannum pessoal de um soberano da autoridade da coroa” (III, 564). O período posterior foi assim caracterizado por uma realeza “ao mesmo tempo mágica e burocrática”. As grandes revoluções seriam ainda necessariamente para “liquidar o carácter sagrado do rei” e chegar ao “aparato impessoal e impessoal da autoridade estatal” [17].

A segunda versão da lei do regime senhorial (para o período do fim da grande crise até o século XIV) é, então, formulada por Bernardo como se segue: “uma troca, ao longo do tempo, de presentes constituídos por objetos econômicos de função desigual, com agentes de troca indiferenciados e um conteúdo indeterminado das obrigações”, ainda que permanecesse (como no período anterior) uma “troca de funções desiguais”. No novo período, os “circuitos do dinheiro foram substituídos tanto pela personalização dos agentes económicos como pelo carácter concreto dos objectos económicos”.

Nesta nova situação de “enormes famílias artificiais e impessoais”, e na homogeneidade que ela gerou, os camponeses “perderam a iniciativa social, e o impulso à migração e à abertura de novas terras declinou e finalmente parou”. (III, 582). Isso levou a um período de contração econômica, e a classe senhorial foi forçada a maiores e maiores exigências. A fome voltou nas últimas décadas do século XIII com uma intensidade não vista há mais de cem anos. “O exercício mais severo do bannum forçou os camponeses a dispensar os tipos de alimentos que tradicionalmente consumiam” (III, 584). Com as populações enfraquecidas, o palco foi preparado para a Peste Negra [18].

Em um capítulo conclusivo, Bernardo apresenta a insurreição inglesa de 1381 e a rebelião hussita na Boêmia e Morávia iniciada em 1419 como, respectivamente, a última luta da segunda fase do regime senhorial e a abertura de um novo período.

A rebelião inglesa, apesar de seu amplo alcance, nunca rejeitou a autoridade do rei. Mostrou “o caráter dual das comunidades rurais, que eram ao mesmo tempo um marco de solidariedade camponesa e um elemento de controle senhorial” (III, 606). No movimento hussita pela primeira vez houve uma convergência entre os servos em revolta com os pobres urbanos (arraia-miúda), unificando assim as correntes de rebelião (os movimentos comunitários heréticos e o fermento urbano igualitário) que anteriormente tinham ocorrido em isolamento. E ao contrário dos insurgentes ingleses, os hussitas nunca se voltaram para nenhum rei.

O fato de este estudo massivo estar escrito em português (enquanto se aguarda a sua tradução para inglês, que esta resenha pretende acelerar) deveria ser realmente o menor dos obstáculos à sua difusão e (para usar o jargão contemporâneo) “recepção”. Pergunto-me em que medida existe algum leitor (como, decerto, não sou) capaz de conhecê-lo plenamente, no seu próprio terreno. Bernardo não só passou quase 20 anos inteiros pesquisando e escrevendo este trabalho, como, sendo um intelectual independente, sem ligação com qualquer universidade, esteve totalmente livre dos tipos de patrocínio institucional, pressões de carreira e modismos (principalmente, nas últimas duas décadas, da vulgata pós-modernista) que estragam tantas “monografias” acadêmicas. Talvez alguns medievalistas possam ser capazes de abrir buracos em diferentes aspectos da análise de Bernardo, mas particularmente porque seus fundamentos teóricos fluem de todo um corpo de sua escrita anterior que nada tem a ver com os séculos V a XV, o típico especialista e empirista acadêmico estará em grande desvantagem ao tentar impor-se ao livro de Bernardo como ele exige, ou seja, como um todo. Sua maior e radical importância, como eu, um “leitor geral”, a vejo, está na insistência do autor de que as relações sociais do regime senhorial permeiam e explicam fenômenos que até agora têm sido geralmente interpretados como agrários, tecnológicos, militares, “econômicos” (em uma anacrônica projeção retrospectiva do capitalismo), demográficos ou epidemiológicos (por exemplo, a Peste Negra), ou seja, causas que diminuem ou eliminam a centralidade do social e da atividade de classes em relações específicas. Poder-se-ia, sem grande exagero, parafrasear a perspectiva geral de Bernardo de que os fenômenos a serem explicados são as relações sociais, mediadas pela agricultura, tecnologia, guerra, atividade “econômica”, demografia e epidemias. Seja analisando os sucessos das invasões vikings, magiares ou muçulmanas dos séculos IX e X, seja a despersonalização do bannum e do mundium, seja as migrações para terras não cultivadas, seja as instituições bastante sofisticadas de câmbio, dívida pública, tributação, bancárias e securitárias do século XIV (que podem parecer protocapitalistas aos olhos menos críticos), ou, finalmente, os lugares onde a Peste Negra atingiu e não atingiu, Bernardo insiste sempre na reprodução da relação senhorial como central para qualquer explicação real. Quando se trata de questões de produtividade agrícola, inovação tecnológica, abertura de terras virgens, guerras ou epidemias, Bernardo rejeita sistematicamente qualquer explicação “ex machina” que retire o social de sua centralidade. O enfraquecimento da população europeia no século XIV, que a deixou vulnerável à Peste Negra (para tomar talvez o exemplo mais dramático), não foi o resultado do fato “bruto” do crescimento populacional, que preencheu toda a terra disponível e produziu uma escassez de alimentos, mas sim do complexo processo de extensão do mundium como solução para a crise dos séculos IX e X, e da posterior intensificação das exações senhoriais quando as migrações para terras virgens foram interrompidas. Bernardo, através desta análise, amplia grandemente o poder explicativo das relações sociais que regem a prática social em áreas onde causas mais mecânicas há muito ocupam lugar de destaque. De outros períodos históricos com os quais estou mais familiarizado, este método explicativo “relacional” tem o condão da verdade, e por mais bem-sucedidamente que Bernardo o utilize em várias dimensões dos séculos V a XV, seu livro certamente forçará muitos medievalistas a repensarem suas premissas na tentativa de manterem sua posição. Esta será já a sua poderosa contribuição teórica e histórica.

Notas

[1] Aqui está uma bibliografia resumida dos livros de Bernardo até hoje: Para uma Teoria do Modo de Produção Comunista (Porto, 1975); Marx Critico de Marx. Epistemologia, Classes Sociais e Tecnologia em ‘O Capital’ (Porto, 1977); O Inimigo Oculto. Ensaio sobre a Luta de Classes; Manifesto Anti-Ecológico (Porto, 1979); Capital, Sindicatos, Gestores (São Paulo, 1987); Crise da Economia Soviética (Coimbra, 1990); Economia dos Conflitos Sociais (São Paulo, 1991); Dialéctica da Prática e da Ideologia (São Paulo, 1991). [Nota editorial: esta nota foi produzida em 2002, e de lá para cá o autor publicou outros livros, como “Labirintos do Fascismo”, “Democracia Totalitária”, “Capitalismo Sindical” e sua leitura da “Comédia Humana” de Balzac.]

[2] Bernardo também prefere o termo “regime” ao termo marxista “modo de produção”, acreditando que o atual nível de pesquisa histórica faça com que o uso de tal termo para outros modos que não o capitalismo seja “prematuro” (I, 237) (todas as citações de páginas se referem aos três volumes como I, II ou III, seguido de um número de página).

[3] Em II, 62 e seguintes, Bernardo argumenta que as sondagens exploratórias em terras virgens estavam intimamente ligadas às tensões sociais.

[4] Estas incluem 1) a zona entre o Loire e o Reno; 2) Francônia, Turíngia, Alemania e Baviera; 3) Frísia e Saxônia; 4) Inglaterra anglo-saxônica; 5) a zona que constitui o nordeste da França contemporânea; 6) a zona a sul do Loire; 7) o centro e o norte da Itália; 8) Espanha 9) e 10) duas zonas inter-relacionadas que se estendem das montanhas cantábricas ao mar e ao vale do Douro. 1), 4) e 6) estão ainda divididas em dois períodos distintos, perfazendo um total de 13 variantes. Este uso de variantes em oposição a “tipos” (como os weberianos) é o núcleo do método de Bernardo. Mais tarde, por exemplo, ao discutir o aparecimento de trabalho assalariado ocasional no campo, diz Bernardo: “Somente a evolução histórica pode fazer distinções entre o que, em uma determinada época, aparece como uma situação única. Uma das características do modelo de história que infunde este livro é a consideração de cada fenômeno, não à luz de um fenômeno supostamente típico, mas sempre como uma articulação de variantes. E quando determinadas variantes se destacam em um determinado contexto e dão origem a algo diferente, isso não se deve às minúcias da análise historiográfica, mas aos ditames da história real. Se, séculos mais tarde, o capitalismo não tivesse vindo para tomar este aspecto da vida camponesa como uma das bases do seu desenvolvimento, não teríamos hoje nenhuma razão para separar as formas precursoras da introdução do salário das outras formas de trabalho doméstico e serviços feitos sob a forma de trabalho….”. (II, 345)

[5] Bernardo identifica nada menos que 22 tipos diferentes de transferências de riqueza, entre e dentro de diferentes classes, e também mostra como cada transferência efetuou o bannum, ou seja, o poder senhorial (resumido no gráfico da p. 430). É também na discussão do dinheiro em vol. I que ele integra material antropológico abrangente de todo o mundo, para explicar a economia dos presentes.

[6] As quatro características do sistema na primeira fase são 1) a reciprocidade dos deveres, 2) a realização destes movimentos recíprocos não foi simultânea (e.g. o carácter esporádico da esmola nos momentos de crise) 3) o carácter destes deveres foi sempre pessoal, ou seja, não puderam ser desempenhados por nenhum outro senão um herdeiro, e 4) o carácter dos deveres foi sempre concreto.

[7] Talvez mais interessantes no final do império romano fossem as Bacaudae, que realizaram ações de guerrilha e integraram nas suas fileiras bandidos e refugiados.

[8] Bernardo recorre a Ibn Khaldun e à figura pouco conhecida do século XVIII, Joseph de Guignes, para analisar o impacto das invasões nômades nas sociedades sedentárias. “Nem os escandinavos, nem os muçulmanos, nem os magiares teriam tido êxitos tão notáveis se não tivessem beneficiado sistematicamente de alianças” com facções de aristocratas e camponeses (II, p. 95).

[9] “A incorporação na esfera do bannum das terras não cultivadas foi o primeiro passo na conversão aos servos de todas as famílias rurais que os usavam.” (I, 349). Mais enfaticamente: “O controle alcançado pela aristocracia sobre as áreas não cultivadas foi um dos fatores que lhe permitiu dominar todo o processo. Se é possível encontrar um único eixo de continuidade durante os dois grandes períodos do regime senhorial, não só unificando uma linha evolutiva comum, mas também servindo de articulação na grande crise dos séculos IX e X e permitindo à aristocracia recuperar o fermento camponês e restabelecer a sua autoridade em novas formas, este eixo é o exercício do bannum sobre áreas não cultivadas e seus usos. Excessivamente preocupados com a agricultura, o avanço de suas técnicas e o melhoramento da terra, tantos historiadores nunca superaram um curioso erro de perspectiva, quando de fato o destino deste regime foi decidido nas áreas anteriormente abertas”. (II, 528).

[10] Bernardo vê as raízes pagãs de muitas heresias como mais uma indicação de que elas surgiram da resistência à propagação do sistema senhorial.

[11] Bernardo vê o movimento florentino de 1378 do “Povo de Deus” (dentro de um fermento maior, mais geralmente conhecido como a rebelião Ciompi) como talvez o primeiro movimento de todo o período em que os trabalhadores agiram autonomamente, e não foram manipulados por uma facção de elite. (II, p. 451).

[12] Bernardo aponta (II, 487) que a elite florentina reduziu seriamente os impostos sobre o campesinato durante o movimento do verão de 1378, tentando ganhar sua lealdade contra o movimento popular urbano.

[13] Aqui mais uma vez (III, 84-85, nota 205) Bernardo polemiza contra antigas ortodoxias marxistas de figuras como Maurice Dobb, que interpreta fenômenos como o capitalismo crescendo dentro do sistema senhorial, em vez de ver essa dispersão de dinheiro como uma “premissa” para o desenvolvimento posterior do capitalismo.

[14] “Deste modo, os interesses familiares poderiam ser transformados na teia de relações que estruturou o comunitarismo rural e, ao tornar a população de um território coeso, foi a base da senhoria impessoal. Graças à Forma I do dinheiro, as coletividades rurais apareceram como o estrato inferior de vastas famílias artificiais encabeçadas por senhores impessoais. Foi assim que o estado moderno começou a tomar forma”. (III, 86).

[15] “Pretender avaliar os mecanismos de crédito operativo dos séculos XI a XIV pelos padrões capitalistas é um anacronismo….” (III, 147)

[16] A rejeição de Bernardo do termo “feudalismo”, em que as exceções à velha definição de vassalagem acabam por ser “muito mais generalizadas do que a regra”, está em III, 223 e seguintes.

[17] Para a rica e densa discussão de Bernardo sobre a transformação destes elementos em absolutismo após o fim do seu período, cf. III, 564-567.

[18] Uma vez mais, Bernardo ataca “historiadores que invocam razões demográficas” para explicar a praga, e que “permitem aos historiadores precisamente esconder os antagonismos entre classes por trás de aparentes atos da natureza” (III, 586).

Tradução do Passa Palavra.

As ilustrações deste artigo reproduzem iluminuras de Les Très Riches Heures du Duc de Berry (c. 1414-1416), excepto a última, do Saltério de Luttrell (c. 1320-1340).

1 COMENTÁRIO

  1. Loren Goldner resenhando JB é -até prova em contrário (rs)- um non plus ultra.

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