Por Jefferson Peixoto

Há alguns meses fui procurado por uma estudante de jornalismo interessada em escrever uma matéria para o seu curso abordando a relação entre o trabalho e a saúde de professores no contexto da pandemia de Covid-19. A motivação, segundo ela, foi o texto em que divulgámos os resultados de nossa pesquisa sobre a relação entre o trabalho, a vida pessoal cotidiana e a saúde de professores [1]. Realizada em período pré-pandemia, a pesquisa revelou que, ao menos entre os professores entrevistados, o trabalho tendia a invadir a vida pessoal de modo nocivo. Se isso era verdade para o contexto pré-pandemia, passámos a pensar, assim como ela demonstrou em suas perguntas, que com o deslocamento integral do trabalho para dentro das casas dos professores, tal fato tendia a se agravar.

Naquele momento estávamos diante de algo totalmente novo. Resultados de estudos sobre o trabalho dos professores no contexto da pandemia ainda não eram conhecidos, o que não nos permitia falar com segurança do assunto sem correr o risco de olhar para o problema com lentes inapropriadas, já que acostumadas a enxergar o tema sob outras circunstâncias. Se por um lado aquela inexistência de dados empíricos era um problema, parecia que, por outro, a situação clamava, de fato, por reflexões sobre assunto, razão pela qual o desafio foi aceito.

No final das contas a matéria acabou não saindo, mas as perguntas permanecem válidas, pois instigam reflexões relevantes para o cenário atual. Aos poucos, pesquisas empíricas sobre o assunto estão sendo divulgadas [2,3] e parecem confirmar não só a atualidade e a relevância de tais perguntas para o debate, mas também seu conteúdo. O objetivo deste texto é compartilhar essas perguntas e respostas. Para adequá-las ao formato desta comunicação, algumas adaptações foram feitas. Entre elas, algumas perguntas mais técnicas e específicas foram excluídas e notas (com referências) foram inseridas. Além disso, as perguntas foram redimensionadas e uma nova questão — a última — foi incluída. No início da pandemia tal pergunta mal se delineava, mas agora está na ordem do dia. Afinal, muitos andam se perguntando qual é a hora de voltar às aulas presenciais. Que as perguntas e respostas contidas neste texto contribuam para essa importante reflexão e debate.

O que podemos dizer sobre a organização do trabalho em nossa sociedade e como isso se reflete no trabalho dos professores em tempos de pandemia?

Olhar para o tema da “organização do trabalho” em nossa sociedade requer, a meu ver, que o consideremos ao menos sob duas perspectivas complementares. Uma é a histórica, outra é a técnica, no sentido de especializada no assunto em questão. A primeira diz respeito ao campo da historiografia e ao saber/produção dos historiadores. A segunda remete ao campo ocupacional e, mais precisamente, ao saber/tradição dos profissionais de Segurança e Saúde Ocupacional – SST.

A) Perspectiva histórica

Conforme a história nos convoca a lembrar, estamos em um país construído sobre as bases da colonização e do escravismo, o que nos leva também ao tema do elitismo e, com destaque, ao papel do autoritarismo dentro disso tudo. Cada um desses pontos, por si só, poderia ser isolado e discutido em profundidade, nos dando diversos elementos para pensarmos os muitos resquícios que infelizmente até hoje temos de enfrentar; mas foquemos em um em especial, que é o mais pertinente ao assunto: o autoritarismo.

Enquanto, por um lado, a mão de obra escrava garantia a produção e o funcionamento da economia colonial, os ritos, os símbolos e as práticas reiterados no cotidiano marcavam a nítida e reforçada falta de igualdade entre as classes, forjando o “equilíbrio” social de então. Um “equilíbrio” construído para realçar as diferenças entre os grupos sociais e fazer com que uns servissem aos outros, de modo estrutural.

Por um lado, essa diferença já se dava na própria relação com a metrópole, relação essa que exigiu a construção de uma sociedade que, por colonial que era, estava inclinada para fora e não para si mesma [4]. Sendo colônia, seu principal dever era servir a metrópole. Quanto a isso, havia uma advertência contínua no ar, lembrando dessa subordinação a todo o tempo. Era o caso das “punições exemplares”, que se aplicavam aos que ousavam cogitar um rompimento com a metrópole, tal qual o caso mais conhecido, que foi o de Joaquim José da Silva Xavier, esquartejado em praça pública [5]. Como foi dito: a punição tinha de ser exemplar, ou seja: de tal modo a desencorajar revoltas.

Era justamente no próprio cotidiano da vida colonial (e não necessariamente no campo das regras) que essa divisão social era mais notada. De modo ilustrativo, a lógica aristocrática transplantada da metrópole operacionalizava seus efeitos também na colônia. Era preciso não apenas mostrar, mas também garantir que, desde cedo, todos se acostumassem com a ideia de que uns existiam para servir e outros para serem servidos, naturalizando-se tais relações de poder que eram também pré-condição para o funcionamento daquela sociedade. Essa é a mentalidade por trás de cada gesto de um senhor que, ao viajar, era carregado por escravos, como as retratadas por pintores que presenciaram as cenas, como Debret. Cenas assim, habituais naqueles tempos, diziam para todos que uns serviam e outros eram servidos. Uns mandavam e outros obedeciam. Demonstrava-se a todo tempo que uns se sentiam superiores e queriam ver os outros se sujeitarem; ou melhor, para se sentirem superiores, tinham de subjugar o outro, fazendo-o reconhecer a própria subjugação. Considerando que tais afirmações possam soar anacrônicas, basta lembrar do apreço dos colonizadores pelos privilégios, de que tratou Sérgio Buarque de Holanda em sua clássica obra [6], ou ainda, do desprezo pelo trabalho manual, entendido como destinado às mais baixas classes sociais [7].

Pela força das cenas e das repetições, fazia parte do rito forçar os escravos, base da economia de então, a sentirem-se inferiores, admitindo-se dominados, pois isso seria a garantia de que não se rebelariam contra a “ordem”. Contudo, como estamos falando aqui de relações humanas, é claro que tentativas de superação e mudanças aconteceram, daí o uso sistemático da força e do autoritarismo como marcas daquele momento histórico. O autoritarismo era a imposição da vontade, a de uns sobre os outros. Os pelourinhos e demais símbolos de tortura da época, feitos hoje marcos de visitação turística, apontam para isso e, pior: para um passado que infelizmente ainda é muito presente em nossa sociedade, já que remete não apenas a costumes, mas a recursos para a manutenção da ordem estabelecida.

Nos anos de Império diversas dessas características coloniais foram mantidas e, mesmo quando findou a escravidão, o pensamento de tipo aristocrático continuou a pressupor (ou melhor, a impor) a distinção entre uns e outros. Não só em termos de pensamento, mas também de práticas e condições materiais. Por exemplo, dado o modo como foi realizado, o fim da escravidão colocou milhares de ex-escravos na miséria, na mendicância e, consequentemente, na construção de um dos lados desse enorme fosso de desigualdades que se tornou nosso país [8]. Isso porque, ao invés de reintegrarem os recém libertos ao sistema, pagando-lhes salários, preferiram buscar imigrantes estrangeiros (sobretudo brancos europeus, como parte de um projeto de “branqueamento” da população) [9], sem se importarem com as consequências futuras desse descaso para o próprio equilíbrio social, fruto do abandono em massa que praticaram. Tal “medida oficial” planejada ainda em período imperial foi também o que deu o tom das tratativas sobre o assunto conduzidas pela então proclamada República, ao menos em sua primeira fase. Como consequência, gerou bolsões de pobreza, tensão e violência. Novos conflitos surgiram e, para enfrentá-los, mais violência e autoritarismo foram usados. A velha lógica continuou então em curso, adaptando-se aos novos tempos, mas mantendo sua essência.


Embora muitos neguem a persistência de características do nosso passado colonial e escravista, dizendo que isso foi há muito tempo e que já está tudo superado, é justamente o negacionismo que permite a manutenção desses resquícios, que opera sua não superação, pois aquilo que não se admite também não se combate. É como uma doença. O primeiro passo para a busca da cura é admitir sua existência, pois quem não admite a doença não tem nem razão para buscar a cura. Como estamos falando aqui de resquícios de um passado ainda não plenamente superado, temos de admitir que ele explica muito do que ainda existe hoje, inclusive no contexto laboral.

Em nossa memória coletiva, diversos traços do passado colonial ainda estão presentes, tal qual a mentalidade aristocrática, que implica em desigualdades no tratamento, bem como o autoritarismo que a sustenta. Sendo assim, não há como olhar para “os aspectos tradicionais da organização do trabalho em nossa sociedade” sem frisar que nosso passado nos assombra, fazendo com que o autoritarismo e a desigualdade de tratamento estejam presentes de modo estrutural na própria concepção dessa grande moldura que chamamos de organização do trabalho. Recebemos esses resquícios não apenas das relações que se davam no cotidiano das sociabilidades coloniais, mas também da própria razão de ser da colônia.

No âmbito laboral, continuamos de certa forma a cultuar muito mais o que há lá fora, nos países que fomos treinados a enxergar como sendo distintos e melhores e, portanto, superiores e exteriores a nós, do que a olhar/valorizar nós mesmos e nosso potencial em primeiro plano, bem como nosso pertencimento planetário, por outro. Não à toa, países como o Brasil investem muito pouco em ciência e tecnologia, manifestação da aceitação de que outros é que devem produzir tecnologia, enquanto nós estaríamos do lado daqueles que apenas devem comprá-las para usar. Com isto, grandes cérebros se vão em busca de quem veja a C&T como prioridade. Enquanto isso nos contentamos em exportar commodities, prática curiosamente semelhante ao que se fazia durante todo o período colonial (ao menos em termos da proeminência do modelo agrário-exportador).

O problema disso é que traz implicações para as relações no mundo laboral, pois há uma mentalidade por traz dessa dinâmica que continua a condicionar relações de poder dentro dos ambientes de trabalho, ainda marcadamente autoritários. E relação de poder, como será explicitado a seguir, tem tudo a ver com a questão central desta pergunta, que é a organização do trabalho.

A mentalidade herdada dos tempos coloniais (e infelizmente ainda em voga) era uma mentalidade cruel e baseada no desprezo pelo outro, considerado inferior. Isso é o que pode justificar, em termos históricos e conceituais, grande parte do autoritarismo ainda presente nas relações e na organização do trabalho em nossa sociedade. Não é algo declarado, não é algo visível, é algo quase inconsciente, mas perigosamente estrutural, que está na base da formação de muitos, como resquício presente na memória coletiva, sobretudo em algumas classes sociais, justamente as classes de onde historicamente se originam aqueles que ocupam, no cenário laboral, os cargos de comando e direção, que são as classes mais abastadas. Entre os mais pobres, desde o período colonial, são os cargos de execução que lhes compete. Segundo essa lógica, alguns cargos possuem status, outros estigma.

Nesse sentido, o caso dos professores, por exemplo, é bem emblemático. Houve uma época em que a origem social dos professores era ligada a famílias mais abastadas que ocupavam posição de destaque na sociedade. Naquele tempo os professores eram mais respeitados do que hoje e gozavam de maior prestígio, não simplesmente por conta da profissão que exerciam, mas do próprio grupo social a que pertenciam [10]. Esses eram dois pólos (status social e prestígio da profissão) que se reforçavam mutuamente. Na medida em que um deles mudou, o outro se tornou mais frágil e o equilíbrio foi se perdendo. Isso porque aos poucos a origem social da docência foi mudando, sobretudo na educação básica das redes públicas. Hoje, além de enfrentarem um processo de profundo desprestígio (advindo tanto deste histórico da origem social quanto das próprias mudanças tecnológicas do mundo contemporâneo), os professores lidam com um desprestígio interno em sua organização do trabalho, expresso, por exemplo, na distância entre eles (que executam) e aqueles que planejam o funcionamento dos sistemas de ensino, bem como padecem com políticas de valorização da profissão que infelizmente não saíram do papel, conforme os baixos salários, as duras condições de trabalho e a própria desqualificação pública que se faz dos docentes demonstram.

B) Perspectiva técnica

Em termos técnicos, o assunto convoca também a mobilização de duas perspectivas distintas: a da administração da produção e da produtividade, por um lado, e a dos trabalhadores e demais recursos envolvidos com essa produção/produtividade, por outro.

Em linhas gerais (sentido simples), o primeiro plano desta perspectiva nos leva a olhar para a organização do trabalho como sendo o conjunto de determinações, comandos e orientações que direcionam o modo como o processo de trabalho deve ser realizado para que as empresas e instituições alcancem seus objetivos produtivos, isto é, para que entreguem o produto e/ou o serviço que se dedicam a oferecer. Nesse sentido, a organização do trabalho seria, grosso modo, a forma como o processo de trabalho foi concebido, fruto de um planejamento que visou estabelecer como os recursos (humanos e materiais) devem ser dispostos e empregados para que os objetivos da instituição sejam alcançados. Refletindo a hierarquia em ação, trata-se de dimensão mais genérica e gerencial que estabelece a dinâmica segundo a qual os meios de produção são dispostos e comandados para que a instituição atinja seus objetivos. Nessa dinâmica estão contidos tanto os procedimentos relacionados à concepção e ao planejamento como o próprio conteúdo do processo de trabalho, condensado em um “desenho” que prescreve como o trabalho deve ser realizado, em qual ritmo, em qual tempo, com qual carga etc.

Para garantir o funcionamento dessa dinâmica (e ocupados com ela) há todo um corpo técnico (no sentido de especializado) que, a depender da envergadura e natureza da instituição, reúne administradores, engenheiros (sobretudo os de produção), coordenadores de recursos humanos, enfim, todos aqueles que se ocupam de planejar o trabalho (geralmente de outros) por estarem investidos de uma autoridade hierárquica para tal. Em outras palavras, essa é a demanda que tais especialistas devem atender dentro da organização, representando assim a perspectiva do comando.

De modo igualmente importante, caberia ao pessoal da área da segurança e saúde ocupacional estar inserido neste processo, tendo em vista que as preocupações com segurança e saúde no trabalho devem estar presentes na própria concepção do trabalho, isto é, no modo como ele será organizado. Ainda assim, infelizmente é preciso reconhecer que, em nossa tradição, profissionais como médicos, engenheiros e técnicos em segurança do trabalho poucas vezes são envolvidos na concepção do processo, sendo habitualmente convocados apenas posteriormente (na maioria das vezes por força das normas) para atuar no atendimento de ocorrências e/ou casos em que desfechos desfavoráveis já aconteceram — ou estão prestes a acontecer —, o que torna muito restritas as possibilidades de desempenharem seu principal papel, que é preventivo. Sem serem envolvidos no processo de concepção, dificilmente esses profissionais conseguirão agir de fato preventivamente sobre o trabalho, visto que buscar fazer ajustes em processos de trabalho já organizados previamente sem levar em conta as questões de segurança e saúde costuma ser pouco praticável, resultando em muitos desfechos que clamam por reparo e mitigação e pouco espaço e/ou margem para evitar que tais desfechos indesejados ocorram, já que barreiras preventivas, por exemplo, não foram inseridas na própria fase de concepção. Em outras palavras: seu papel é preventivo, mas na maioria das vezes só lhes resta espaço para atuarem de modo reparativo. Como se diz popularmente: ficam com a ingrata tarefa de “apagar incêndios”.

Aqui entra, portanto, o segundo aspecto dessa equação: o da segurança e saúde no trabalho como saber técnico especializado em prevenção e focado em quem realiza o trabalho, isto é, no trabalhador [11]. Em termos de organização do trabalho, tal perspectiva tem muito a ensinar. Seguindo a tradição da saúde pública e, dentro dela, a da saúde ocupacional, há um referencial teórico em específico que fornece um modelo interpretativo muito útil para se pensar a relação entre a organização do trabalho e a saúde do trabalhador. Trata-se da psicodinâmica do trabalho [12]. Tal modelo é relevante no sentido de explicar como e por que algumas formas de trabalho podem se tornar adoecedoras. Considerando que os trabalhadores são fundamentais para o processo produtivo, pensar em sua saúde não é apenas um dever humanitário, é um ato também de sustentabilidade para os “negócios”, tenham eles fins lucrativos ou não, pois sempre envolverão pessoas, expectativas e fontes de financiamento, merecendo cada um destes elementos atenção e respeito.

Para a supramencionada psicodinâmica do trabalho, que é uma vertente teórica defendida pelo pesquisador francês Cristophe Dejours e sua equipe de trabalho, há uma distinção básica entre organização e condições de trabalho. As condições de trabalho diriam respeito a questões materiais presentes nos diversos ambientes de trabalho, como componentes físicos, químicos e biológicos e teriam repercussões, sobretudo sobre o físico dos indivíduos. Já a organização do trabalho teria a ver muito mais com as questões imateriais que moldam e permeiam as relações e os caminhos pelos quais o trabalho é realizado, como por exemplo: hierarquia, controle, estilo gerencial, ritmo e carga de trabalho. Esta, por sua vez, teria repercussões sobre a saúde psíquica dos trabalhadores [13].

Para tal visão que é muito importante para entendermos, por exemplo, a relação saúde-trabalho dos professores, o que define o limiar entre a doença e a saúde é o sofrimento, ou melhor, o tipo de sofrimento em questão. Sendo visto como algo inerente ao ser humano, a psicodinâmica do trabalho reconhece que o sofrimento faz parte da vida, mas que buscar superá-lo também faz. Assim, Dejours distingue dois tipos de sofrimento: o patogênico e o criativo. Em seus estudos, ele percebeu que, no contexto laboral, quando questões inerentes à organização do trabalho causavam sofrimento aos trabalhadores, eles passavam a tentar construir meios para transformar aquele sofrimento de modo criativo. Quando conseguiam, aquela mobilização criativa gerava prazer e equilíbrio para a situação em questão. Quando, ao contrário, não conseguiam êxito nessa tentativa, o sofrimento se acentuava a ponto de se tornar patogênico. Isso nos leva a pensar também em outro modelo explicativo, que ficou conhecido pelo título de “modelo demanda-controle”, proposto por Robert Karasek [14]. Segundo esse modelo, quanto mais controle o trabalhador tem sobre as demandas de trabalho que recebe, mais o processo tende a ser executado de modo saudável. Por outro lado, quanto mais demanda o trabalhador recebe sem ter sobre elas controle, mais adoecedor o trabalho tende a ser.

Falar das relações entre organização do trabalho e saúde é, portanto, falar de equilíbrios e desequilíbrios. Tanto na visão de Dejours quanto na de Karasek, a questão do equilíbrio e do controle que o trabalhador pode ou não ter sobre seu próprio trabalho é fundamental para se pensar o processo saúde-doença. No entanto, ao falarmos sobre trabalho e organização do trabalho em uma sociedade como a brasileira, que mesmo depois de tantos anos desde a colonização e a escravidão ainda sofre com resquícios e questões mal resolvidas decorrentes de tais experiências (como é o caso do autoritarismo estrutural), significa dizer que estamos falando de uma sociedade que tem uma série de elementos potencialmente adoecedores fundamentando as relações e a organização do trabalho. E não são termos adicionais, são estruturais.

Em outras palavras, os aspectos tradicionais da organização do trabalho na sociedade brasileira remetem a um passado de autoritarismo e violências estruturais diversas (como discriminação, opressão, desigualdade, machismo e racismo) que precisa ser enfrentado e superado, tanto em termos de saúde ocupacional, como também em termos de “visão de negócio”. A integração e tentativa de compatibilização desses dois aspectos (saúde ocupacional e visão de negócio) já seria, por si só, um sinal de avanço neste enfrentamento, pois demonstraria a superação de uma barreira histórica, que é aquela que opõe de um lado aqueles que planejam (status elevado) daqueles que executam (status baixo). Isto é importante inclusive porque o trabalhador, como aquele que executa o trabalho (e podemos incluir os profissionais de segurança e saúde ocupacional nesta lista), conhece muito bem e muito de perto o que dá certo e o que não dá certo no processo produtivo; o que funciona para preservação da saúde e o que não funciona, sendo detentor de um saber de grande potencial contributivo para o planejamento do trabalho.

Conforme descrito, organização do trabalho tem a ver com estrutura de comando, com a hierarquia. Remete à dinâmica de quem manda, como manda, como o trabalho é distribuído e como o ritmo e a carga de trabalho são dispostos entre os trabalhadores. Sendo assim, ela possui um alto poder de repercussão sobre os indivíduos, pois é o que estabelece como corpos e mentes devem se portar e atuar no trabalho, bem como em que ritmo e condições deverão executá-lo. A organização do trabalho pode, portanto, construir ambientes de trabalho leves, produtivos, saudáveis e sustentáveis ou contextos opressivos e adoecedores. E aqui entra novamente a questão dos professores, pois para eles essas questões não são diferentes. Como infelizmente ainda convivemos com diversos resquícios negativos do nosso passado e nossas raízes remetem a constructos marcantes como colonização, escravidão, elitismo, desigualdades, autoritarismo e diversas outras formas de violência estrutural, tudo isso persiste em se refletir sobre os ambientes de trabalho e em sua organização de modo geral, ainda que muitos prefiram negar. Cabe destacar que os aspectos indesejáveis do nosso passado persistem não simplesmente porque fizeram parte do passado, mas porque não foram passados a limpo de modo a serem superados. Houve até algumas conquistas e melhorias, mas não transformação dos pontos centrais. Por isso a organização do trabalho continua reproduzindo modelos marcadamente adoecedores, dentre os quais os principais talvez seriam o autoritarismo, as desigualdades e a não incorporação da lógica de prevenção na própria concepção dos projetos de trabalho.

No caso dos professores, publicações do próprio campo educacional, por exemplo, apontam para a enorme distância que existe entre os que planejam e os que executam [15] a educação. A atual situação de pandemia tem evidenciado isso de modo contundente. Enquanto professores de escolas públicas (maior contingente de professores do país) sabem e denunciam que a maioria de seus alunos não tem as devidas condições estruturais de acompanhar as aulas remotas [16], conforme o modelo em que elas estão sendo impostas pelos órgãos de comando, mais se faz silêncio do outro lado. Como que fingindo não saber do problema, ou presa a um mantra de indiferença qualquer, a voz de comando continua a ser dada: as aulas devem prosseguir! De modo remoto, via computador; celular e até TV! “Mas e os alunos que não têm os recursos?”, perguntam os professores. “Continuem dando aulas!”; “amanhã tem reunião pedagógica”; “respondam às mensagens dos alunos e familiares nos chats, web e WhatsApp”: é o que respondem as autoridades em questão, por meio de falas e/ou silêncios.

Como se vê, é o mesmo roteiro em curso: comandos unilaterais, de cima para baixo, sem ouvir os professores e a própria sociedade. Pior: sem ouvir justamente a parcela mais afetada. E o que elas dizem é bem claro: o problema não é a escola ou a aula, sua presença ou ausência em si, é a desigualdade social. Isso não se resolve com aula, seja presencial ou remota, pois não se resume a ela. Resolve-se é com mudança de rumo, de modelo de desenvolvimento. No caso, a mudança de rumos que precisamos é a da atitude de indiferença e da imposição de ordens de cima para baixo (típica do nosso passado autoritário) para a de escuta, sensibilidade, atenção às demandas sociais e correção de rumos. Se crise é oportunidade, por que não seria a de rever o assunto e buscar superar essas desigualdades tratando a educação como importante mecanismo para tal? Talvez só nosso passado explique por que a resposta a esta pergunta tem sido não…


A publicação foi ilustrada com obras de William Henry Johnson (1901-1970).

Notas

[1] SILVA, J. P. da; FISCHER, F. M. Invasão multiforme da vida pelo trabalho entre professores de educação básica e repercussões sobre a saúde. Revista de Saúde Pública. 54:3, 2020.
[2] GESTRADO/CNTE. Trabalho docente em tempos de pandemia: relatório técnico. Disponível em: https://gestrado.net.br/pesquisas/trabalho-docente-em-tempos-de-pandemia-cnte-contee-2020/. Acesso em 13/09/2020.
[3] UFPR/GETS/REMIR. Relatório Técnico-científico da pesquisa: trabalho remoto/home office no contexto da Covid-19: Trabalho docente, setores público e privado e questões de gênero parte II. Relatório Técnico, 2020.
[4] PRADO Jr, C. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000.
[5] MAXWELL, K. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil-Portugal – 1750-1808. São Paulo: Paz e Terra, 1985.
[6] HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. 27ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
[7] BRASIL. Centenário da educação profissional e tecnológica no Brasil, 2009. https://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/centenario/historico_educacao_profisional.pdf
[8] GONÇALVES, L. A. Negros e educação no Brasil. In: LOPES, E. et al. (org.) 500 Anos de educação no Brasil. 3ª. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
[9] KREUTZ, L. A educação dos imigrantes no Brasil. In: LOPES, E. et al. (org.). 500 Anos de educação no Brasil. 3ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica,2003.
[10] GUSMÃO, E. M. O professor não é mais aquele… Revista Nossa História. Rio de Janeiro: Editora Vera Cruz. Ano 3, nº 28, 2006.
[11] MENDES, R; DIAS, E. C. Da medicina do trabalho à saúde do trabalhador. Revista de Saúde Pública. 25(5): 341-349, 1991.
[12] DEJOURS, C; ABDOUCHELI, E; JAYET, C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 2015.
[13] DEJOURS, C. Por um novo conceito de saúde. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional. 14(54):7-11, 1986.
[14] KARASEK, R. A.; BRISSON, C.; KAWAKAMI, N.; HOUTMAN, I.; BONGERS, P.; AMICK, B. The Job Content Questionnaire (JCQ): an instrument for internationally comparative assessments of psychosocial job characteristics. J. Occup Health Psychol. 3:322-355, 1998.
[15] ALMEIDA, J. G. Como se faz escola aberta: experiência de abertura de uma escola na periferia de São Paulo. São Paulo: Paulus, 2005.
[16] https://educacao.uol.com.br/noticias/2020/05/29/sp-metade-dos-alunos-acessam-aulas-on-line-professores-relatam-sobrecarga.htm

Este artigo foi dividido em quatro partes:

A segunda parte pode ser lida aqui.

A terceira parte pode ser lida aqui.

A quarta parte pode ser lida aqui.

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