Por Alan Fernandes
Segundo o Aulete digital, um herói caracteriza-se sob a forma de um homem notável por sua coragem, feitos incríveis, generosidade e altruísmo. A lembrança do termo já é capaz de produzir em nossas cabeças vários exemplos, seja na história dos homens vivos ou nos contos. Zumbi dos Palmares, Thor, Robin Hood, Lênin, Tiradentes… É possível contestar cada um desses segundo suas contradições pessoais, mas não ignorar seu títulos.
Mas não são desses heróis que quero me ocupar. Sob a sombra dos heróis escondem-se os párias da sociedade, que em verdade são os protagonistas da história. Acontece o que pode se chamar de reificação desses sujeitos e legitimam-se figuras que se destacam e passam até a roubar-lhes o protagonismo.
Tal como propôs João Bernardo, escritor e militante português, em seu Economia dos Conflitos Sociais, gostaria de voltar a atenção para os heróis subterrâneos, aqueles encarregados da produção material da vida como a conhecemos.
“Pois não dizemos nós, qualquer de nós, que Eiffel ‘construiu’ a sua torre, quando ele não fez outra coisa senão conceber um desenho que, ou nem sequer traçou detalhadamente no papel ou, quando muito, apenas ajudaria a riscar? Não assenta a nossa linguagem corrente precisamente na anulação ideológica da prática material?” [1]
É desses heróis que não temos visto ou ouvido falar, e não seria diferente na pandemia.
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Nos últimos meses o embate entre o governo federal, na pessoa de Jair Bolsonaro (sem partido) com governadores e prefeitos — reconhecendo aqui o completo desprezo do primeiro pelas autoridades ministeriais — provocou uma sabotagem sistemática das medidas necessárias para conter a disseminação do novo coronavírus. Não satisfeito em afastar dois ministros, agora tensiona com o terceiro quando o assunto é pôr fim ao sofrimento de milhares de famílias. Para isso, tensionará também com quem quer que seja para dar ênfase ao lobby da cloroquina e sua ideologia de imunidade de rebanho. O palco atualmente se dá ante a intenção do governador de São Paulo, João Dória, em importar vacinas vindas da China com pesquisa em parceria com o Instituto Butantan. A Coronavac, que, segundo o ministro da Saúde Eduardo Pazuello, seria a “Vacina do Brasil”,havia sido aprovada para importação pela Anvisa e o ministério tencionava comprar 46 milhões de doses dessa vacina para inclusão no programa de imunização. No dia seguinte, no entanto, o Presidente da República recua na decisão e desautoriza seu ministro.
“Não compraremos vacina chinesa”, disse Bolsonaro. A frustração envolveu ninguém menos que o presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, que procurou acalmar os ânimos. Quem presta atenção nesse embate pode perceber quão militante o bolsonarismo é em negar as consequências da pandemia. Foi assim no começo, por que não seria agora? Mas quem olha com olhares não maniqueístas poderá perceber que combater o negacionismo não significa defender Dória e outros falsos moderados com unhas e dentes.
Vejamos: ainda em maio João Dória (PSDB-SP) nega a necessidade de aplicar um lockdown severo e se mostra otimista sobre o controle da doença nas unidades hospitalares. Segundo a Brasil Wire, tanto o governo quanto a Prefeitura de São Paulo estariam sendo assessorados por duas empresas americanas, Oliver Wyman e Boston Consulting Group. Aqui vai um “spoiler” do artigo Consultores Americanos por trás do flerte com a morte em SP — para quem não conhece as empresas ou mesmo a responsabilidade destas sobre o número de casos em Nova York — não deu certo. É dessas empresas que pouco entendem de infectologia, mas sim de gestão de negócios, que parte a assessoria estratégica da reabertura em estados como Nova York e que vai motivar o “Plano São Paulo”. Sem me alongar, porque o leitor preferirá muito mais consultar os dados no artigo mencionado, é possível perceber que, se há um discurso “economia x vidas”, Dória não estaria ao lado das “vidas”; estaria antes de tudo esquivando-se da verbalização desse negacionismo, mas o aplicando economicamente.
Ainda na semana do embate com o presidente da república, Alicia J. Kowaltowski e Paulo A. Nussenzveig fazem um apelo em uma edição da Folha de S. Paulo para que Dória desista do projeto de lei 627/2020 que corta 30% do orçamento da FAPESP. Dória afirmou no dia 21 de setembro que seu diferencial em relação à Bolsonaro é que “O que determina todas as ações do goverrno de São Paulo é a ciência e a medicina. Não é pressão política, nem eleitoral, nem econômica, nem pessoal, nem de amigos, nem de familiares: é a ciência e a saúde”. Suas ações, no entanto, mostram o contrário. E os estudos da Fapesp se mostraram cruciais para se entender como o Zika promove a microcefalia, por ter identificado o coronavírus no país e por ter possibilitado respiradores de baixo-custo. Essa é a ciência do “Plano São Paulo”.
Contra uma contemplação dos heróis, oponho a estes uma massa que desde cedo apoiou o isolamento social, quando não o fez materialmente. É o caso de operadores de telemarketing que em meados de março já denunciavam suas empresas que ainda exigiam trabalho presencial, dos trabalhadores que recorreram à EPIs e protestaram contra o fechamento de hospitais de campanha, e da grande massa dependente do Auxílio Emergencial, que sabe que hoje recuperar a economia é resguardar a vida de milhares de trabalhadores. São esses heróis que são reificados pela grande imprensa e órgãos de comunicação estatal e que, sob a sombra dos “heróis”, não têm engolido o papo de “economia x vidas”, têm procurado pautar os dois.
Notas
[1] BERNARDO, João. Economia dos Conflitos Sociais. 1. ed. São Paulo – SP: Cortez, 1991. pág 50.