Por Thyago Marão Villela

 

Um presidente sem coraçãozinho

Quando o filho preferido do mercado artístico, Romero Britto, voltou novamente ao Palácio do Planalto, em janeiro de 2020, ele o fez, como de praxe, mediante a apologia ao poder burguês. O seu novo feito, que procurava dar continuidade simbólica ao compromisso, já estabelecido há décadas, entre ele e a burguesia nacional dependente, era composto por dois retratos: um do presidente Jair e outro da primeira-dama, Michelle, que então o visitavam no seu ateliê, em Miami [1]. A entrega dos quadros foi celebrada e fotografada, e inscrevia as pinturas do casal presidencial no rol dos retratos dos políticos brasileiros já feitos por Britto, como João Doria, Dilma Rousseff e Sérgio Cabral.

Contudo, e se, à primeira vista, o ritual de exaltação das figuras de poder, encenado entre Britto e Bolsonaro, não parecia trazer nada de novo e era, com efeito, parte estruturante das estratégias de marketing de cada um dos envolvidos, não se pode dizer o mesmo sobre a obra que Britto havia pintado. Assim, principalmente porque posto ao lado do retrato de Michelle (o qual, embora apenas esboçado, obedecia rigorosamente os clichês estabelecidos há décadas por Britto), o retrato de Bolsonaro apresentava algo de insólito e desconcertante. Tal estranheza, gerada por uma modificação no modus operandi do pintor, atravessa a figura do mais recente candidato a Bonaparte.

Por um lado, Britto procurou manter o padrão visual que é sua marca registrada — com as listras, ao fundo, a divisão cromática rigorosa, a geometrização infantilizada, e os traços negros, que fragmentam a pintura para que ela se assemelhe a um vitral (ou a uma composição de stickers). Por outro, a figura de Bolsonaro difere sensivelmente do padrão estabelecido por Britto em relação aos demais retratos já pintados. Por alguma razão, Britto, o pintor de cupcakes, optou por não estampar as bochechas do presidente com um círculo colorido e um coração, e tampouco, dividir o rosto austero do retratado em diferentes áreas cromáticas, como o fez na maioria esmagadora dos outros retratos já realizados. Ademais, o tronco de Bolsonaro, embora geometrizado e marcado pelos contornos que separam os padrões de estamparia entre si, é tingido, basicamente, com as cores da bandeira nacional, em consonância com o fundo da pintura. Estamos diante, assim, de um quadro atípico de um pintor que, usualmente, fabrica protótipos; um quadro sui generis de um pintor cujo objetivo costumeiro é o da generalização (em embalagens de sabão em pó, xícaras etc.) das formas, padrões e cores pintadas. Um Romero Britto que apresenta uma considerável redução cromática e que, com efeito, nos apresenta um presidente sem coraçãozinho — em oposição, portanto, ao retrato da primeira-dama e, efetivamente, em contraste com absolutamente todos os outros retratos de políticos que trazem a sua marca.

Tendo em vista que a criatividade do pintor de cupcakes restringe-se àquela da lógica gerencial, ou que, por óbvio, inexiste qualquer horizonte crítico em sua produção visual, o que poderia ter produzido, então, esta “guinada”? Ela poderia ser, de fato, considerada como tal? O que pode dizer esta espécie de “peça defeituosa” produzida pela maquinaria imagético-ideológica posta em marcha por Britto, e que hoje, retrospectivamente, pode ser assinalada como uma espécie de ato falho em sua produção? Ou, posto em outros termos: qual seria a conformação social responsável por esta espécie de desajuste involuntário na linguagem, até então inabalável e de poder incontestável, estabelecida pelo pintor-marchand?

Quem se deixa retratar?

A escolha de Britto em não estampar o rosto de Bolsonaro com um coração ou círculo colorido, apesar de parecer absolutamente trivial, opera como um rasgo que possibilita, por sua vez, uma incursão crítica em seu projeto. Afinal, impõe a questão: o que tornaria alguns rostos passíveis de ser padronizados pelo rolo compressor dos clichês do pintor de cupcakes, em detrimento de outros? Com efeito, até o retrato de Bolsonaro aparecer, o projeto mercadológico de Britto sempre foi o da indistinção absoluta entre os objetos a serem pintados, os quais assumem, para o pintor-marchand, a mera qualidade de serem, todos, suportes para suas operações uniformizadoras [2]. Nessa lógica de espetacularização, em chave apaziguadora, pouco importa se o objeto é uma pera, um cachorro, a Madonna, ou até mesmo o Scorcese: tudo será submetido à linguagem visual, cheia de jargões pop, licenciada por Britto.

“Se a mercadoria tivesse uma alma […] esta seria a mais plena de empatia já encontrada no reino das almas, pois deveria procurar em cada um o comprador a cuja mão e a cuja morada se ajustar” [3]. Eis o mote secreto que sussurra por detrás de cada uma das fantasmagorias de Romero Britto, produzidas em escala de massa. Elas realizam, mediante a figuração de rostos sorridentes e de signos infantilizantes, a empatia inerente a todas as mercadorias — tal como descrito, jocosamente, por Walter Benjamin, em 1938. Assim, e como conteúdo latente da estamparia de Britto, que se transubstancia, indistintamente, em diversos objetos derivados — uma pirâmide monumental, uma escultura de maçã ou um quadro de presidente —, tem-se a monstruosidade do império do valor, que tudo nivela e torna intercambiável. Nesta gramática visual do diminutivo — gatinhos, solzinhos, pessoinhas — o que a nós se dirige é o próprio fetiche, que procura fazer brilhar aos olhos o espetáculo da nossa própria catástrofe.

Assim, no reino indiferenciado do valor, os retratos das celebridades feitos por Britto possuem um lugar especial. Não obstante as pequenas diferenças dos retratos entre si, as quais procuram enfatizar, estrategicamente, o caráter VIP ou personnalité de cada um dos retratados, tais obras operam a conservação “(…d)aquela magia da personalidade, que há muito consiste no brilho pútrido de seu caráter de mercadoria” [4]. Todo retrato assinado por Britto é o retrato da mercadoria a nos sorrir — é, assim, a mercadoria quem se deixa retratar e que desfila diante de nossos olhos.

Nesse projeto de fetichização das figuras de poder (ou da figuração fetichista do poder), a pintura de políticos profissionais ganha uma função suplementar. Se, por um lado, os retratos que Britto pinta dos políticos são, basicamente, idênticos aos outros retratos da burguesia global também pintada por ele; por outro lado, eles produzem uma determinada leitura sobre o poder. Assim, ao equiparar visualmente Trump, Obama, Hillary Clinton ou a rainha Elisabeth com Michael Jackson, Leonardo di Caprio e Neymar, Britto, além de posicioná-los como parte do panteão moderno das celebridades, formula visualmente uma docilidade do poder, que é mostrado sob o ângulo da fama, da alegria e da leveza (positivadas como características desejáveis). A possibilidade dessa equiparação entre figuras de poder e celebridades é, por sua vez, a possibilidade historicamente construída pelos regimes de espoliação neoliberais, os quais celebram, em definitivo e despudoradamente, o casamento entre o terror de Estado e o mercado. A linha de montagem chefiada por Britto prontamente respondeu ao estabelecimento desse projeto ideológico, de pacificação cosmética do rosto do poder. Em seus retratos de políticos, temos, assim, uma verdadeira horda de Leviatãs fofos e descolados — Leviatãsinhos.

Naïveté perversa

Foi a partir desse discurso visual apaziguador — o qual, de certa maneira, claudica no retrato de Bolsonaro — que Britto estabeleceu sua peculiar posição na formulação da estética global da mercadoria. Se, por um lado, ele usufrui, ao lado de seus contemporâneos, do estatuto desregulado da circulação em larga escala e associada ao capital monopolista das obras de arte, por outro lado, as fantasmagorias lowbrow que ele produz possuem um alcance que excede aquele atingido pelos enfants terribles da arte contemporânea highbrow, como Damien Hirst e os irmãos Jake e Dinos Chapman. Ademais, Britto não se restringe aos meios “artísticos”, como seus contemporâneos, os quais, apesar de produzirem obras que são frequentemente compradas pelos monopólios e funcionam como porto-seguro do valor, são raramente associados publicamente a tais monopólios. O que se verifica, no caso de Britto, é uma espécie de radicalização da combinação em voga entre museologia e marketing que ultrapassa a aparente ambiguidade aferível no posicionamento dos membros do star system da arte contemporânea frente às instituições, à política ou à economia — ambiguidade, cabe dizer, da qual tais estrelas cinicamente se valem para a especulação em torno de suas obras [5]. A vantagem da ingenuidade manifesta das peças de Britto diante do cinismo de um Jeff Koons ou de um Hirst é gritante: a estamparia de cupcakes e de gatinhos encontra, sem travas e em cada um, um comprador — seja no Carroussel du Louvre, no Wallmart ou no Palácio do Planalto brasileiro.

Contudo, o narcisismo das pequenas diferenças entre tais artistas deve ser enfrentado. Britto caminha, em trilha paralela, com Hirst e com Koons, na realização do projeto do capital monopolista de remodelação total da vida social. Assim, na árdua tarefa de produção da mercadoria-arte, este posto avançado da publicidade, os seus patrocinadores, por vezes, são os mesmos. Tanto Britto quanto Hirst, por exemplo, foram bancados pela marca sueca Absolut Vodka, ombro a ombro com outras centenas de artistas [6]. E, se Hirst é patrocinado pelo empresário e colecionador Charles Saatchi, um dos principais financiadores da campanha de Margareth Thatcher [7], Britto foi alçado ao posto de Embaixador das Artes da Flórida por Jeb Bush, em 2005, enquanto o então governador desmantelava brutalmente o sistema público de ensino de seu estado [8]. Deste modo, o alegado debate sobre “arte contemporânea”, que pretende estigmatizar os gatinhos pintados pela empresa de Britto, como pertencentes à esfera do “mau gosto” (ou do lowbrow), e cultuar os cachorrinhos esculpidos pela empresa de Koons, como produtos da “alta cultura”, faz corar de vergonha. Ambos são irmãos de armas do mesmo projeto, no qual o ecletismo, como correlato do regime desregulado do mercado, é a norma e o mantra para a conquista de nichos de especulação [9].

O consórcio entre os estados e a Britto central Inc

No Brasil, a difusão da estamparia e dos retratos dóceis feitos por Britto teve ascensão exponencial e animou o mundinho da lumpemburguesia local, fazendo, inclusive, escola, na medida em que inúmeros outros artistas passaram a reproduzir os clichês da Britto Central Inc., a linha de montagem que ele chefia [10]. Michel Temer, o presidente oriundo do impeachment contra Dilma, chegou a trocar o mobiliário e os Portinaris do Palácio da Alvorada por peças do pintor de cupcakes [11]. Com efeito, seus agrados às figuras de poder brasileiras já remontavam há décadas e, tal como internacionalmente, ele não fazia distinção de partidos. Desse modo, além de presentear Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva com suas obras, Britto retratou Dilma, Doria e Cabral — todos eles devidamente carimbados com um círculo colorido em uma das bochechas e com um coraçãozinho na outra.

No cenário local, o impacto das peças e dos retratos feitos pela Britto Central Inc. pode ser percebido rotineiramente, excedendo os seus usos palacianos. Qualquer visita a lojas dos centros das cidades, assim como a rodoviárias, aeroportos, shoppings e escolas revela a presença massiva dessa estamparia [12]. De fato, o artista mais licenciado do mundo encontrou em sua terra natal — da qual se vale, inclusive, para catapultar suas peças “tropicais” internacionalmente — um nicho de mercado constantemente aquecido e de braços abertos. A aparente afinidade eletiva, contudo, pode ser considerada, de certa maneira, como um projeto. Assim, Britto não apenas agracia a burguesia nacional dependente ao abastecê-la periodicamente de uma autoimagem narcisista ou de bugigangas — ele realiza, ativamente, o projeto político dessa classe no campo simbólico. Desse modo, e por meio de consórcios periódicos entre prefeituras e estados brasileiros com a Britto Central Inc., a linguagem infantilizada que Britto exporta ao mundo cumpre, enfim, o seu destino político no Brasil.

Tomemos o projeto de estetização das periferias, operado pelo estado do Rio de Janeiro no início do decênio de 2010 e intensificado como parte dos preparativos para os jogos mundiais de 2014 e 2016 [13]. O processo de estetização das comunidades periféricas, que foi conduzido ao modo de uma guerra civil [14] e que visava dinamizar o turismo ao reestruturar a paisagem do apartheid carioca, teve em Britto um importante aliado, que produziu um mural no Complexo do Alemão (em 2011), um mural no Jacarezinho (em 2014) e outro no Morro da Santa Marta (também em 2014). A associação entre o Estado nacional e a Britto Central Inc. rendeu diversos outros frutos, como um mural, patrocinado pela empresa brasileira Vidrotil, em uma escola pública da periferia de São Paulo [15].

Aqui, a análise da relação da produção visual de Britto com a forma social que a pôde comportar, sem reservas ou precedentes, é decisiva, e nos oferece, inversamente, uma pista crucial sobre o ato falho cometido no retrato que o pintor de cupcakes fez de Bolsonaro. Assim, a impossibilidade de Britto em colocar-lhe um coraçãozinho na bochecha pode indicar não somente uma elaboração involuntária do pintor sobre os limites formais de sua própria marca, mas, também, sobre a erosão de uma estrutura social antes dominante.

Uma linguagem para a conciliação

Em 2008, no segundo ano de seu segundo mandato, o então presidente Luís Inácio Lula da Silva foi presenteado com um quadro de Britto que retratava a cidade de São Paulo. Este gesto do pintor de cupcakes, eternizado em uma foto, iniciou sua intensa aproximação com os políticos brasileiros, estamento que ele passou a pintar desde então, tal qual um artista da corte. Embora pontual, o presente de Britto a Lula é rico de significados. Posaram para a foto, naquele momento, um presidente de origem popular, cuja segunda vitória eleitoral era sustentada, ideologicamente, pela possibilidade da ascensão social via consumo, e um artista que, tal como o então presidente, era de origem popular, pernambucano e um exemplo paradigmático de alguém que, tal como Lula, “venceu na vida”. No campo das mitografias, Britto e Lula desempenhavam, então, um papel análogo.

Não obstante tais analogias, o encontro extraía sua força de laços ainda mais profundos. Em 2008, quando Britto iniciou publicamente o seu consórcio com os políticos nacionais, completava-se vinte anos do início da assim chamada “Nova República”, cuja estrutura social derivava das políticas de “descompressão” do regime, tais como as chamou Samuel Huntington em uma carta de orientação a Golbery do Couto e Silva [16]. Assim, em oposição à estrutura autoritária do período ditatorial, bradava-se o início de uma nova era, de paz social e democracia — as quais a eleição de Lula parecia, enfim, poder concretizar.

Neste sentido, a atualização do capitalismo brasileiro, feito na chave do culto da modernização dependente, realizou-se mediante uma política de conciliação na qual o Estado operava, ou alegava operar, como mediador dos conflitos sociais. Desse modo, diferentemente dos processos de construção da hegemonia neoliberal do decênio de 1990, a revolução passiva operada pelos governos lulistas centrou-se na estabilização do mercado e na construção de formas de articulação entre os imperativos do capital e as demandas sociais, as quais foram canalizadas por meio de políticas compensatórias [17]. Assim, era parte da estrutura simbólica de então uma espécie de linguagem da conciliação. Por isso, Emílio Odebrecht pôde afirmar que Lula “deu a muitos sem tirar de ninguém” [18], ou, então, Dilma, a desafortunada sucessora de Lula, pôde afirmar, ao mesmo tempo em que dizia governar para os trabalhadores, que os “bancos nunca lucraram tanto” quanto no seu governo.

Esperava-se que uma estrela brilhasse no céu. E ela brilhou — porém, acompanhada de um gatinho e de um cupcake.

O mercado, nosso velho amigo

A construção da linguagem conciliatória dos ciclos de governos petistas, centrada na gestão das massas via sua inserção no consumo, foi realizada por meio de um dispositivo retórico decisivo: a naturalização do mercado e, por conseguinte, da competição. Assim, Lula, em uma série de conferências promovidas pelo PT sobre economia socialista, ocorridas logo após a sua eleição, afirmou que os seres humanos são eminentemente competitivos e que uma maneira de retribuição justa pelo trabalho encontrar-se-ia no aumento da diferenciação salarial entre operários de uma mesma fábrica [19]. Restava ao homo oeconomicus ser domado pelo Estado.

Desse modo, o fetichismo retornou pela porta dos fundos e alçou o Estado, como agente modernizador, ao posto avançado de qualquer possível mudança política substancial. Nesse sentido, o mundo do fetichismo das mercadorias poderia ser, supostamente, regulado mediante políticas de contenção dos preços, fornecimento de créditos etc [20].

Assim, e em consonância com a instrumentalização e cooptação dos sindicatos e movimentos sociais, cujas direções abandonavam, paulatinamente, qualquer ideário combativo em troca de cargos no governo e de tímidas políticas compensatórias, também as redes críticas (inclusive artísticas) tiveram suas práticas absorvidas pelos circuitos institucionais locais [21].

Não tardou para que, então, paisagens antes marcadas por revoltas contra o regime empresarial-militar fossem estetizadas com a estamparia de Britto. Assim, ao cenário das greves de São Caetano do Sul e das imensas assembleias que funcionaram como epicentro da desestabilização do regime militar, seguiu-se, em operação efetuada pela prefeitura de São Caetano, a pintura de murais com as obras de Aleksandro Reis, imitador de Britto, e que servia como forma de combate às pichações e à memória [22].

O pacto da conciliação, forjado ideologicamente como componente estruturante da farsa da “Nova República”, encontrava, nessas operações visuais, a sua linguagem. Os retratos dos políticos brasileiros feitos por Britto selavam o novo compromisso deste ciclo histórico. Observemos a padronagem que Britto insistentemente reproduz nos retratos de Dilma, Cabral e Doria.

                       

Em todos eles, um coração e um semicírculo estampam as bochechas dos retratados. Parte do rosto encontra-se levemente sombreado, o que é indicado pela coloração ligeiramente mais escura que a Britto Central opera na pintura. Ao fundo, o pintor de cupcakes estabeleceu uma série de áreas de estamparias diversas, marcadas pelo aplainamento das cores primárias ou secundárias e pela repetição. A passagem de uma área colorida para outra, nessa espécie desmaterializada de vitral, é realizada sem perturbações, estranhamento ou choque. Tal operação pinturesca é decisiva: trata-se, antes de tudo, da destituição de qualquer elemento crítico ou conflitivo, como os existentes nos procedimentos de montagem e colagem da arte moderna, da qual Britto se reivindica como herdeiro. Em um campo histórico geral, essa harmonização dos fragmentos, realizada com base na fetichização do moderno, conforma, precisamente, a linguagem conciliatória da modernização dependente. Desse modo, aqui também é a perspectiva do Estado e da burguesia nacional dependente que aparece. Tal qual no mural pintado por Britto na escola estadual, na qual várias personagens se abrigam em baixo de um guarda-chuva, o que sussurra por detrás dos retratos dos chefes é justamente: Brasil, um país de todos.

De certo modo, o que se atualiza na série de produtos fabricados pela Britto Central aparece como uma espécie de síntese involuntária e paródica de um determinado modo produtivo da arte nacional moderna, síntese cuja reivindicação insistente em uma modernidade (dependente) só se equipara à sua ambiguidade dramática — ou patética. Evidentemente, Britto dá por encerrada a possibilidade de tal reivindicação crítica, historicamente constituída, e reposiciona a reivindicação de pertencer à linhagem moderna em sua forma mais básica, e hoje dominante: a forma-mercadoria, encenada de modo publicitário. Se, contudo, tal estratégia segue operante e lucrativa, é possível que o retrato de Bolsonaro traga, em face de suas diferenças ante as obras anteriores de Britto, uma novidade: a novidade de sua obsolescência histórica como forma de representação do poder. Assim, estamos diante de uma tentativa derradeira (e possivelmente inconsciente) do CEO da Britto Central de formular a docilidade da dominação no exato instante em que tais fórmulas ideológicas erodem e revelam, à revelia dessas intenções, o rosto monstruoso que se esconde atrás do Estado, reconfigurado no modo de guerra civil explícita desde a posse de Bolsonaro e dos militares que, uma vez mais, ascendem ao poder.

A erosão da forma e a declaração de guerra

O rosto de Bolsonaro pintado por Britto opera como uma espécie de corte na composição do quadro. Além de não possuir adornos, esse rosto não possui sombras e contrasta, efetivamente, com as tentativas do pintor de cupcakes de manter o seu padrão visual de estampas, ao fundo. A tal procedimento se segue outro, explicitamente perverso: a transformação, operada por Britto da esquerda para a direita, do terno em farda. O fato do retrato de Britto se basear na fotografia oficial de Bolsonaro com a faixa presidencial torna a escolha ainda mais simbólica e aterradora: objetivamente, ela inverte aquela realizada pelos ditadores militares desde 1964, de apresentarem-se oficialmente como civis trajando ternos, buscando igualar-se em imagem aos presidentes democraticamente eleitos.

Se, por um lado, Britto, como um bom vendedor, adere aos símbolos patrióticos que a extrema-direita empossada no Brasil mobiliza para a formalização da autoimagem narcísica que o presidente e seu séquito têm de si, por outro lado, tal operação também aponta para a erosão da farsa relativa ao triunfo da “Nova República” e a ela, de certo modo, põe um fim simbólico. Estamos diante de um quadro que, ainda que se esforce por amenizar a nova onda de genocídio em curso — que teve lugar com a fusão entre o reacionarismo “fascistizante” da burguesia nacional dependente e a desilusão popular que se seguiu ao colapso político do PT — [23], fracassa vergonhosamente nesta operação. Isso porque ele é produzido num contexto em que os modos de representação do poder já mudaram. Britto, assim, perde para Steve Bannon, o arquiteto da campanha de Trump e de Bolsonaro — cujas táticas de representação do poder passam, antes, pela difusão de imagens toscas do “homem médio”, e não pela sua infantilização geometrizada. Os “atos falhos” do retrato feito por Britto, que revelam a incapacidade de insistir no padrão pinturesco consagrado da conciliação, devem-se, assim, à ruptura objetiva, que se processa em âmbito histórico, na economia política imagética.

Com efeito, existe algo na prática recente da Britto Central que parece revelar que seus operadores já se deram conta dos novos modos de produção imagética que os ultrapassam. Não à toa, o próprio Britto, em sua pessoa física, tem se esforçado por aparecer em lives na internet (uma delas, inclusive, promovida pelo governo) e em dar à sua prática pinturesca um caráter participativo, como quando fez Bolsonaro, em Miami, colorir parte do retrato da primeira-dama, como se ele fosse uma criança de cinco anos de idade.

Assim, a reprodução expandida do “homem médio” no poder deu lugar a novas formas discursivas, que privilegiam a promoção de uma suposta atividade da claque (na difusão e produção imagética e fílmica) e uma suposta “estética da espontaneidade”, própria dos youtubers. Diante dessa nova retórica visual, a cisão entre produção e consumo, privilegiada anteriormente por Britto, assim como as tentativas de alçar o poder ao nível das celebridades, perde espaço. Está em jogo atualmente, e inversamente, a reelaboração fascistizante da figura do líder que, na atual configuração, pretende, antes, aproximar o chefe dos subordinados. Nesse sentido, a instabilidade crônica da qual se vale o novo regime, sucessor daquele da “Nova República”, demanda formas de representação do poder cuja dinamicidade não pode ser alcançada pela maquinaria ideológica de Britto.

Com o abandono, por parte dos dominantes, das estratégias de fabricação de consensos políticos, mediados por uma linguagem conciliatória da qual Britto foi o grande artesão, restringiu-se, também, o espaço dos cupcakes e dos gatinhos. É a hora e a vez de uma nova linguagem beligerante, que aparece intuída na transformação que Britto operou no retrato mais recente que pintou de um presidente — um presidente sem coraçãozinho.

Notas

[1] “Romero Britto faz quadro em homenagem a Jair Bolsonaro”. Folha de S.Paulo, São Paulo, 23. jan. 2020. Disponível em: <https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2020/01/romero-britto-faz-quadro-em-homenagem-a-jair-bolsonaro.shtml>.
[2] Com efeito, a fatura mobilizada por Britto mudou substancialmente a partir de 1989, quando ele foi selecionado para ser garoto-propaganda da Absolut Vodka. Até então, desde o início de sua carreira em 1981, os seus quadros privilegiavam a explicitação das pinceladas e os procedimentos de colagem, feitos, frequentemente, em jornais. Ver, para tais mudanças, Renata Damus, Arte, mercado e legitimação: a obra de Romero Britto. Dissertação de mestrado em Teoria Literária e Estudos Comparados, defendida na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2014, p. 37.
[3] Walter Benjamin, “O Flaneur” [1938], trad. José Carlos Martins Barbosa, in Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 52.
[4] Walter Benjamin, A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica [1936], trad. Francisco Dea Ambrosis Pinheiro Machado. Porto Alegre: Zouk, 2012, p. 77.
[5] Ver Otília Arantes, “A virada cultural do sistema das artes”, Margem Esquerda: ensaios marxistas, n. 6. São Paulo: Boitempo, 2005, pp. 62-75.
[6] Renata Damus, op. cit., p. 13. A estratégia comercial da Absolut Vodka, em consonância com as novas estratégias de mercado desenvolvidas durante a ascensão do neoliberalismo, procurava imprimir na marca uma espécie de atributo cool, hoje amplamente reconhecido, ao qual Britto deu corpo, em 1989, com a elaboração de uma espécie de “Picasso para os yuppies”. Para mais informações acerca do desenvolvimento dessas estratégias de marketing e do elo umbilical delas com o estreitamento dos gastos públicos em cultura nos governos Reagan e Thatcher, consultar Naomi Klein, Sem Logo: a tirania das marcas em um planeta vendido, trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro, Record, 2003; e Chin-Tao Wu, Privatização da cultura, trad. Danilo Santos de Miranda. São Paulo, Boitempo, 2006.
[7] Otília Arantes, op. cit.
[8] Ver Naomi Klein, The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism. Nova York: Metropolitan Books, 2007, p. 294.
[9] Conforme disse o galerista Charles Saatchi: “Não existem regras para investimentos. Tubarões podem ser bons. Esterco de artista pode ser bom. Óleo sobre tela pode ser bom. Lá fora há um esquadrão pronto para cuidar de qualquer coisa que um artista decida que é arte”. Apud Renata Damus, op. cit., p. 76.
[10] Ibidem.
[11] Maria Fernanda Seixas, “Temer e a “Romerobrittização” do modernismo nos palácios de Brasília”. Metrópoles, 15. jan. 2017. Disponível em: <https://www.metropoles.com/casa-nossa/temer-e-a-romerobrittizacao-do-modernismo-nos-palacios-de-brasilia?amp>.
[12] Ver, para um levantamento das obras públicas e dos licenciamentos feitos pela Britto Central Inc., Renata Damus, op. cit., p. 33.
[13] Ver Bianca Freire Medeiros; Palloma Valle Menezes, “As viagens da favela e a vida social dos suvenires”, Sociedade e Estado, vol. 31, n. 3. Brasília, 2016.
[14] “O então vice-governador e coordenador de Infraestrutura, Luiz Fernando Pezão, durante o lançamento do programa Tudo de Cor para o Rio de Janeiro, em 29 de novembro de 2012, reforçou a importância da parceria no contexto de ‘pacificação’ das favelas cariocas: ‘Entramos aqui para não sair mais e não saímos. Mas, se o poder público tem de entrar nessas comunidades, tem de entrar também a iniciativa privada, trazer bancos, lojas de material de construção, serviços. Quando o empresário acredita, a guerra está ganha. Por isso, quero agradecer muito a confiança da Coral em realizar esta parceria com o estado. É disso que a gente precisa’”. Cf. Bianca Freire Medeiros; Palloma Valle Menezes, op. cit., p. 659.
[15] Renata Damus, op. cit., p. 34.
[16] Samuel Huntington, “Carta ao General Golbery do Couto e Silva”, de 28. fev. 1974, disponível em: <http://arquivosdaditadura.com.br/documento/galeria/receita-samuel-huntington#pagina-17>.
[17] Alvaro Bianchi; Ruy Braga, “Brazil: The Lula Government and Financial Globalization”, Social Forces, n. 83, vol. 4, 2005.
[18] Apud Luiz Renato Martins, “A guerra civil declarada”, disponível em: <https://aterraeredonda.com.br/a-guerra-civil-declarada/>.
[19] Alvaro Bianchi; Ruy Braga, op. cit., p. 1752.
[20] Ibidem, p. 1752-1753.
[21] Ibidem. Para a absorção institucional, posta em marcha pelo Estado (por meio de políticas públicas), de práticas artísticas coletivas durante o ciclo petista, ver Gustavo Motta, Discursos de contrainformação: coletivos de artistas e curadores-autores no Brasil (2000-2015). Tese de doutorado em Artes Visuais, defendida na Universidade de São Paulo. 2018.
[22] Mariana Janjacomo, ‘Romero Britto do ABC’ tem acervo a céu aberto em São Caetano do Sul. Folha de São Paulo, São Paulo, 10. jun. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/sobretudo/morar/2018/06/1971312-romero-britto-do-abc-tem-acervo-a-ceu-aberto-em-sao-caetano-do-sul.shtml>.
[23] Luiz Renato Martins, “A guerra civil declarada”, op. cit.

2 COMENTÁRIOS

  1. O autor chama a atenção para um relevante, mas pouco debatido tema, a estética: O pacto da conciliação, forjado ideologicamente como componente estruturante da farsa da “Nova República”, encontrava, nessas operações visuais, a sua linguagem.

    João Bernardo afirma que : “Todo o movimento político que se situe acima das classes e pretenda conciliá-las tem de recorrer a símbolos. No seu célebre quadro sobre a revolução parisiense de 1830, La Liberté guidant le peuple, logo atrás de um primeiro plano de cadáveres, emancipados deste vale de lágrimas e das suas divisões sociais, e que por isso aparecem rotos, seminus, quase desprovidos de representações vestimentárias já inúteis, Delacroix figurou um burguês e um proletário, irmanados pela força da multidão que os impele, e da qual nos apercebemos como isso mesmo, uma massa humana gesticulante, confundida no mesmo tom sombrio, envolta nas nuvens dos incêndios e da pólvora. Contra este fundo homogéneo de um movimento colectivo, mais acentuado se torna o contraste entre a blusa branca do operário, aberta no peito, as suas calças de trabalho, a boina, e a casaca e o colete negros do burguês, a gravata que lhe cinge a camisa no pescoço, o chapéu alto, que não sei como não cai no meio de tanta agitação. O que
    une aqueles dois homens, que tudo separa na vida? Nada de real, um símbolo apenas, a liberdade, que cada um entende à sua maneira, e que amanhã, se não hoje mesmo, os oporá em vez de os juntar. Para fundir as classes num mito comum não bastaram ao pintor os recursos exclusivamente formais, o turbilhão de movimentos e luz que envolve os personagens numa espiral e confere ao quadro uma indubitável unidade. A consciência das clivagens sociais era já demasiado profunda para que pudesse encontrar resposta no campo das formas apenas. Foi necessária a introdução de um elemento narrativo, explicitamente ideológico, dando corpo à abstracção. É uma operação que decorre na esfera da magia, inventar uma personagem, ao mesmo tempo ideal e com traços humanos, e encarregá-la, mediante a sua mera invocação, de resolver uma contradição insolúvel. Ei-la então, essa Liberdade, com o corpo projectado para adiante e banhada já por uma nova claridade, um amanhã que a ilumina, mas que mal atinge ainda a criança armada de duas pistolas, a nova geração que caminha a seu lado. A Liberdade incita o povo ao ataque e ergue-se acima dos mortos, que para ela não constituem obstáculo, enquanto o burguês e o proletário se protegem com a pilha de cadáveres e, como que recuando um pouco naquele minuto decisivo, parecem mais impulsionados pela multidão informe do que
    capazes de a conduzir. Na cabeça o barrete frígio, sinal de emancipação, na mão a bandeira, as cores representando a nova dinastia, o peito nu, tão nu como o corpo do combatente morto que a prolonga esteticamente no ângulo estruturante do quadro, um já fora das classes sociais, a outra sempre acima delas, esta fantasmal liberdade demonstra, pelo seu próprio aparecimento, que sem o artista, e a sua arte, nada poderia ocultar os antagonismos sociais e ultrapassá-los. Os símbolos da conciliação de classes são obrigatoriamente estéticos.” (João Bernardo, Labirintos do Fascismo,Na encruzilhada da ordem e da revolta – segunda versão remodelada e muito ampliada, p. 1108 e seguintes).

    E os identitarismos de todos os tipos – embora aparentem o avesso da conciliação, ao fundamentarem-se, basicamente, na estética (do gênero, da raça, da cultura, etc), revelada explicitamente no markenting das pequenas ou grandes empresas, como, implicitamente, na moda ou culturalismos mil – que não buscam a abolição do fim da exploração do homem pelo homem (“homem” ser genérico…), mas reivindicam que a exploração se realize a partir do negro pelo próprio negro, da mulher pela própria mulher, etc, são a cabal “sublimação”da amálgama de conciliação de classes legada pela estética fascista e com materializações perversas na classe trabalhadora. Assim, parafraseando ao autor, “O pacto da conciliação” na aparência de um “distrato” identitário e multiculturalista, “forjado ideologicamente como componente estruturante da farsa” não da “Nova República”, mas dos “empoderamentos” encontram, nessas operações visuais, a sua linguagem…

  2. Eu acho que o Romero não usou as cores e corações no quadro do Bolsonaro de forma a destacar o batom que ele colocou na boca do presidente.

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