Por João Bernardo

John le Carré foi o mais lúcido e o mais consistente dos discípulos de George Orwell. Tal como ele, considerou que a democracia capitalista da esfera americana era preferível ao capitalismo de Estado soviético e, sem nunca fazer a apologia do mundo ocidental, mostrou a grisaille do mundo de Leste, a falta de horizonte, os discursos vazios, a penúria material.

A crítica da democracia consistiu, para John le Carré, na análise do funcionamento dos mecanismos burocráticos. Nos romances de John le Carré há ruas, sobretudo à noite, ruas sombrias, portais, esquinas em que uns se encobrem e outros se escondem, mas este é o cenário. Onde o drama verdadeiramente ocorre é no interior de gabinetes ou de casas alugadas sob nomes falsos, em reuniões. O suspense resulta das discussões entre altos funcionários, não de tiros nem de armas especiais, mas de golpes e contragolpes entre secretários e directores-gerais. São os thrillers da burocracia.

E, como sempre sucede na estética, o principal conteúdo não é a história, mas a linguagem com que a história é narrada. Não conheço as traduções dos romances de John le Carré, mas uma coisa eu sei antecipadamente, é que, para romances e poemas, traduzir é uma actividade impossível. Não se pode traduzir, é necessário recriar, inventar de novo, para outra língua, os termos e as sonoridades com que Le Carré exprimiu a desolação no capitalismo de Estado soviético e o desencanto no capitalismo democrático ocidental. Antes de consciencializarmos o sentido das frases, já nos apercebemos dele pelas palavras escolhidas e pelo modo como nos soam. É por isso que John le Carré se conta entre os grandes criadores, artistas da prosa.

Não existem heróis nos seus romances, embora existam muitos homens e mulheres corajosos. Com medo, mas corajosos. Heróis não, porque deles não emana nenhuma aura. Cumprem a missão que têm, e antecipadamente sabem que, mesmo resultando, resultará noutra coisa, em algo desvirtuado por ministros e secretários, ou abafado por directores-gerais. A burocracia é um pântano, arredonda arestas que antes eram aguçadas, atenua cores que eram vivas, abafa os sons. E a desolação que os espiões de Le Carré encontram a Leste é o correspondente do desencanto com que, regressados ao Ocidente, terminam a sua missão.

Depois, quando Caiu o Muro — o que é uma expressão perversa, porque ele não caiu, mas foi cortado aos pedaços e vendido, cimento e graffiti, aos coleccionadores dessas coisas — quando a esfera soviética se desagregou e se converteu no que é hoje, John le Carré, o último dos orwellianos, deu a sua missão por cumprida. Já não havia que escolher entre um mundo e o outro, havia uma realidade única. E então os personagens de Le Carré começaram uma luta diferente, contra as multinacionais em África ou contra os empresários dos paraísos fiscais ou contra os magos dos fundos financeiros. Orwelliano ainda, no seu ataque aos mecanismos económicos do capitalismo e aos seus efeitos sociais. E os personagens não mudaram, porque a desolação era a mesma.

Chegamos assim ao que é primordial num bom romancista. Não se trata de inventar histórias, mas de criar personagens e deixá-los agir. São eles quem vai tecendo a história, que o escritor se limita a seguir e registar. Balzac entendeu esta missão e explicou-a. Depois dele, todos os grandes romancistas fizeram o mesmo, criaram personagens, observaram-nos e entregaram-nos a nós, leitores, para que os observemos também e lhes penetremos as mentes e partilhemos os seus anseios e, definitivamente, as suas desilusões. Um amigo perguntou-me qual o livro de John le Carré que eu preferia, e respondi que entre muitos muito bons há um que releio com mais frequência, The Night Manager, precisamente pela densidade dos personagens, o director do hotel e a équestrienne sobretudo, que me perduram vivos na memória, não como os personagens trágicos do teatro grego, mas como figuras de outro teatro, num palco de desalento e solidão.

Numa prateleira toda ela ocupada pelos romances de John le Carré, o último data de 2017, A Legacy of Spies, em que um velho personagem de outros livros, entretanto aposentado, retirado da actividade, escondido e tentando sobreviver às memórias desiludidas, é novamente convocado pela burocracia, que dele quer o quê? Desalentá-lo de novo. Da sua vida de espião, ele aprendeu, no entanto, a principal das artes secretas, a arte de fugir. Consegue fugir à burocracia, mas não foge ao desânimo nem à memória sem ilusões.

Foi este o epitáfio que John le Carré deixou para ele mesmo, e para aqueles de nós que o saibam ler.

A fotografia de destaque é de Rob Heron e a outra é de Johannes Roth.

3 COMENTÁRIOS

  1. Muito bom, João Bernardo. Nunca li nada dele. Vi apenas 3 filmes adaptados de sua obra. Tenho que ler. Recentemente peguei um Chester Himes e estou gostando bastante. Além disso, queria pedir/sugerir algo que não é relacionado diretamente à literatura, porém está no campo geral das artes. Já li vários textos seus aqui sobre arte aqui nesse site (sítio). Peço que você indique alguns livros básicos sobre arte em geral, história da arte e teoria da arte para quem quiser dar os primeiros passos e aprender sobre o tema. Saudações dum proletário!

  2. Proleta,

    Há vários anos alguém me escreveu a perguntar o que eu lhe aconselhava para conhecer pintura e história da pintura. Eu respondi que no Brasil é difícil, porque não existem bons museus, e mesmo assim não os há fora de três ou quatro cidades. Inhotim é a excepção única, mas é exclusivamente dedicado à arte contemporânea. Então, eu disse ao meu interlocutor que ele podia ver imagens de obras na internet e que as edições da Taschen e da Thames and Hudson, que não são caras, têm reproduções razoáveis e textos factualmente correctos. Uma reprodução é uma reprodução, nada substitui o original, e aliás basta a mudança de dimensão para a obra ficar alterada. Mas não havendo outra solução… Ao mesmo tempo, aconselhei-o a ler alguma história geral de arte, qualquer que fosse, desde que publicada por uma editora séria, mais uma vez a Thames and Hudson, por exemplo, para que as referências sejam factualmente correctas. Mas o essencial é ver, comparar, ver, estar sempre a ver.

    O meu interlocutor ficou perplexo, porque me respondeu que os professores geralmente indicam listas de bibliografia e eu fizera o contrário. Pois é. Para pintura, é ver. Para literatura, é ler romances. Para ver não basta ter dois olhos. Ver é uma arte que se aprende, e aprende-se precisamente vendo obras de arte. Oscar Wilde, num dos seus célebres paradoxos, disse que a natureza imita a arte. Ele não se referia à natureza na acepção química, física ou biológica, mas à natureza como paisagem. É que, quando se aprende a ver, nós próprios escolhemos com o olhar um enquadramento, uma perspectiva. O essencial é não pensar que existem objectos neutros, que não precisam de ser vistos. Tudo precisa de ser visto, porque ver é criar o objecto que vemos. Quero dizer que, da maneira como nós o vemos, o objecto ressalta, adquire relevo. Os grandes pintores ensinam-nos a ver as coisas de outra maneira, que nunca ninguém tinha visto antes deles. Por isso a arte é uma acumulação de riqueza, de novas visões. A arte não está só na arte, mas também nas ruas e campos que vemos com os olhos que viram a arte.

    Dou um único exemplo. Até ao século XIX as paisagens pintadas pelos artistas requeriam dramatismo, montanhas ou mesmo precipícios, rios amplos, ou estreitos mas caudalosos, em suma, contrastes flagrantes. Vem daí a palavra pitoresco, do italiano pittoresco, que significa digno de ser pintado, e que hoje se emprega para designar algo que chama a atenção. Mas no século XIX os pintores da chamada escola de Barbizon e depois os impressionistas, que continuaram e ampliaram a sua lição estética, interessaram-se precisamente por aquela paisagem que não chama a atenção, onde não há grandes relevos e nada existe de tumultuoso. Ensinaram-nos a ver aquilo que antes passara despercebido, e passámos então a ver outra natureza. É esta natureza que, para empregar as palavras de Oscar Wilde, imita a arte.

    E se para a pintura é ver, para a literatura é ler romances. É que os grandes ficcionistas conseguem fazer o leitor entrar nos cérebros alheios, o que nós não podemos fazer com pessoas de carne e osso, nem sequer com aquelas que de mais perto julgamos conhecer. Os grandes ficcionistas não inventam enredos, criam personagens e depois deixam os personagens viver, e são os personagens quem cria os enredos, que o ficcionista se limita a registar. Por isso o enredo é secundário, por vezes tão ténue que quase não existe, o que significa que não se conhece um livro vendo um filme baseado nesse livro. Um romance tem uma forma própria de narrativa, cujo ritmo é marcado pela sonoridade das palavras e pela sua sequência e os seus cortes. A narrativa de um filme baseia-se em imagens, aquilo que eram os sons das palavras são no filme a luz e as cores, e a sintaxe é de outro tipo, com outras sequências e outros cortes. Um romance é uma coisa e um filme é outra completamente diferente, e um romance genial só pode ser eficazmente transposto por um cineasta genial também. Mas então é outra coisa, adquire uma existência independente do romance.

    A única maneira é ver e ler.

  3. Belo artigo.

    O Democracy Now republicou uma entrevista de 2010 ao programa:
    https://youtu.be/d-Tq7xeSwRE

    Para quem não teve contato com a sua obra, recentemente houve algumas adaptações para o cinema:
    – O gerente noturno,
    – A garota do tambor,
    – O homem mais procurado,
    – O espião que sabia demais,
    – Nosso fiel traidor,
    – O jardineiro fiel

    Ha muitas outras adaptações, mas essas você poderá encontrar mais facilmente e quem sabe possa motivar a ler a sua obra.

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