Por Paulo Schwartzman
Em tempos de pandemia de covid-19, um fator que tem mexido com a cabeça e com os corpos de muitas pessoas é a passagem do tempo. Não que o tempo não passasse antes do momento pandêmico atual, mas sim que a maneira como percebíamos sua passagem era deveras diferente.
Ora, desde o advento do relógio de pulso (ou “relógio de punho”, como preconizam alguns especialistas na área da cronobiologia, por todos, cito o professor da USP Luiz Silveira Menna Barreto — “Menna”) as nossas vidas são reguladas pela falsa sensação de precisão conferida por esse dispositivo. Digo falsa sensação não por razões de atrasos ocorridos no mecanismo do relógio em si, mas tão somente pelo fato de que nós estamos submetidos a diversos ciclos e ritmos (exemplo de ciclo: claro-escuro; exemplos de ritmos: circaceptanos, circanuais e circadianos), esses que não seguem a mesma lógica de exatidão difundida pelo relógio mecânico ou digital.
Note-se que não quero aqui tirar os créditos que o controle do tempo por meio de um instrumento atrelado à ideia de certeza e previsibilidade possui, mas tão somente apontar que, mais do que uma invenção neutra, o relógio como parâmetro de vida é um projeto que, desde os primórdios, atendeu aos interesses de um projeto de sociedade, neste caso, o projeto capitalista. Com efeito, isso já era narrado há tempos, sendo esclarecedora a análise feita por E. P. Thompson em seu livro Costumes em Comum.
Ou seja, o tempo e sua dominação servem a uma função específica dentro da ótica capitalista e, para que essa lógica não seja rompida, o ideal é espraiar a “dinâmica do relógio” para além de seus razoáveis limites. É nesse sentido que introduzo minha crítica à expressão relógio biológico, e não digo que é minha porque fui o primeiro a criá-la, longe disso, mas tão somente porque fui convencido de suas razões. Nesse diapasão que aponto a posição do supracitado professor “Menna”, na senda de que o uso da palavra relógio para se referir a ciclos biológicos seria um reducionismo inconveniente, uma metáfora que mais serve para turvar a compreensão dos ciclos internos do que propriamente para ajudar a compreendê-los.
Não obstante o professor seguir apontando diversas nuances que invalidam a alcunha de relógio biológico, o apelido realmente “pegou”, na medida em que até mesmo entre os cronobiólogos (cientistas que estudam a relação dos fenômenos de passagem do tempo cotejando-o com os ciclos do organismo) o termo relógio biológico acaba sendo muito utilizado. A pergunta que fica é: por quê? A resposta a esta questão não é clara, mas pode passar inclusive por uma submissão mercadológica do ramo de estudo a fim de se “adequar” à lógica capitalista vigente — e não seria algo de espantar, na medida em que o sistema capitalista decota qualquer tipo de conhecimento que não atenda ao que os ditames de mercado pedem.
Nesse sentido, a própria ideia de um relógio biológico indica, de maneira ínsita, a noção de estabilidade, submetida essa a um padrão de precisão (ou standard, para os americanófilos). Tal ideia se presta a maquiar a real lógica a que o corpo humano está submetido, a oscilação.
Como exemplo do narrado no parágrafo acima temos a própria temperatura corporal. Se perguntarmos às pessoas na rua qual a temperatura normal de uma pessoa é muito provável que encontremos as respostas tendendo para o patamar de 36,5 ºC. A resposta, como bem ensina o professor Menna, não poderia estar mais incorreta, na medida em que a temperatura corporal de uma pessoa segue um ciclo circadiano em que há uma variação que pode chegar a até mais de 1ºC, usualmente batendo o pico de temperatura (próximo aos 37ºC) ao anoitecer, e o valor mínimo (próximo de 36ºC) no meio da madrugada.
Outro exemplo interessante sobre como o nosso corpo difere de um relógio, seguindo uma lógica própria, é a Curva de Resposta Dependente de Fase, que nada mais significa do que a diferença na assimilação de um estímulo externo por nosso corpo a depender do momento em que este é introduzido dentro de um ciclo analisado. Explico. Um estímulo de luz pode tanto interferir ou não na sonolência de uma pessoa, tudo a depender do momento do ciclo de vigília/sono em que este estímulo ocorre — se próximo do momento de acordar, muito provavelmente o estímulo gerará o encurtamento da fase de sono; ao passo que um estímulo luminoso durante a manhã pouco ou nada interfere no ciclo de vigília/sono.
Toda a explicação acima exarada serve para tentar instigar o leitor a questionar: a quem serve essa ideia, que nos é vendida com tanta facilidade, de que tenhamos um “relógio biológico”? Podemos realmente nos dar ao luxo de um reducionismo mecanicista do corpo humano, esse que tem características próprias e únicas, muito dificilmente comparáveis a um mero medidor de tempo? Será que não há alguém lucrando com tal posição científica?
Este artigo está ilustrado com reproduções de obras de Robert Delaunay (1885-1941).
OK quanto a “relógio biológico” ser uma expressão complicada (especialmente para os trabalhadores), mas queria assuntar outra coisa a partir disso.
Viver não é preciso, mas lembro de uns anos atrás ter lido aqui – ou no CMI – alguém dizer que a pontualidade é “fascista”. Assim.
Imprecisão equivale a relaxamento e liberdade??? Não haveria uma tremenda confusão aqui?
Mesmo em relação ao controle sobre o tempo de trabalho: enquanto a hora de começar pode ser controle, a hora de parar pode ser liberdade. A produção por metas ou por peças não se faz de modo alheio ao tempo de calendário e relógio, mas nessas modalidades de exploração/produtividade o “relógio biológico” tende a ser ignorado.
Talvez uma discussão sobre o tempo em abstrato não nos leve a lugar nenhum, ou – pior – nos leve a lugares ainda piores, porque o relógio e o calendário hoje são também mecanismos certeiros de defesa da extorsão sem freios, ao menos para aquelas categorias que ainda têm direito a uma jornada de trabalho, a dias de descanso e a férias remuneradas.
a pontualidade é fascista, a disciplina é capitalista, a organização é totalitária. A única coisa boa são as análises que eu faço enquanto as pessoas me escutam.
eu imagino que o autor do texto estava inspirado em algum tipo de debate ou discussão a respeito do trabalho remoto, estou correto? Eu lembro do Marx descrevendo no O Capital todos os problemas de saúde das crianças que trabalhavam nas fábricas inglesas, que foram compilados nos informes médicos feitos a pedido do parlamento. Também os problemas dos adultos, e a reflexão a respeito do encurtamento da expectativa de vida, o rápido esgotamento da força de trabalho destes proletários. Qual será nosso futuro nos atuais termos do trabalho? Qual será nossa forma de mutilação ao chegar a uma idade não tão avançada? Quando fui ao oftalmologista ele estranhou que na minha idade então, menos de 30 anos, eu desenvolvesse uma miopia, ainda que leve. Eu não estranhei tanto, depois de 2 anos e meio trabalhando no computador, e voltando a ele para curtir o ócio depois do trabalho. Foi depois, quando estive um tempo em uma empresa transnacional, que percebi que eu era na verdade parte de um perfil cool, moderno. As paredes da empresa, os elevadores do edifício, estavam cheios de gigantografias e cartazes com imagens de jovens, homens e mulheres bonitas, descoladas. Todos usavam óculos.