Segunda parte do estudo introdutório que pretende auxiliar na compreensão de como e quando as diversas correntes do anarquismo interferiram na organização da sociedade e, em que contextos, construíram seus programas e princípios doutrinários. Por Alexandre Samis (*)

A continuidade da tradição antiautoritária

Após a sua expulsão, Bakunin vai ao Congresso de Saint-Imier e sistematiza em discurso a condenação de todo o poder político, mesmo aquele que se arroga “provisório e revolucionário”. Tal intervenção seria repetida no Congresso da Federação Italiana, em Bolonha, no ano de 1873, e em suas demais aparições públicas e textos de combate até sua morte em 1876.

Como era natural que acontecesse, devido aos intensos debates, ainda no mesmo ano da morte de Bakunin uma nova interpretação do anarquismo vinha se somar ao núcleo relativamente consolidado por ele na Internacional. Em Lausanne, em março, em reunião de internacionalistas e comunalistas, Elisée Reclus reconhecia a novidade do “anarquismo comunista”. Tal atitude seria endossada por Malatesta, Cafiero, A. Costa que, após o Congresso de Florença, no mesmo ano, aderiam às novas interpretações do anarquismo. Kropotkin, que aparecia nesse momento, juntamente com os trabalhadores do Jura, na Suíça, revelar-se-ia um entusiasta das alterações no pensamento libertário.

malatesta2phpA nova leitura do anarquismo implicava, em certo sentido, o rearranjo de determinados aspectos da organização da sociedade futura. Como afirmou Nettlau, a antiga concepção de Bakunin, na qual o indivíduo receberia benefícios de acordo com seu trabalho — diferente do comunismo, para o qual tudo deve ser socializado independente do produtor —, seria mantida para os produtos em escassez. O próprio Malatesta defenderia, em 1884, que o princípio comunista deveria necessariamente ser aplicado aos produtos em abundância, mas que, em certas circunstâncias, o coletivismo poderia ser uma alternativa intermediária. Ainda, segundo Nettlau, as diferenças entre uma e outra correntes não prejudicaram em nada as relações de seus filiados, tudo teria transcorrido com “espírito tranqüilo” e sem “fanatismos”. Assim, o coletivismo defendido por Guillaume, e o comunismo de Malatesta, ampliavam ainda mais a aplicação dos princípios anarquistas. “O comunismo possibilitava a realização ali completa onde a abundância permitia, e os arranjos coletivistas, de matizes diversos, ali onde a abundância não existia e, ainda, com o objetivo de criá-la.” [14]

Em conformidade com este processo, no ano de 1877, a Aliança internacional – legenda que incluía os antiautoritários que haviam sobrevivido ao desaparecimento da AIT – e Kropotkin iniciaram conversações no sentido de ativar a “Intimidade Revolucionária”, nome atribuído à nova articulação internacional de anarquistas, com bases fraternais muito semelhantes às propostas por Bakunin, a partir de 1864. Tudo indica que participaram do núcleo original Guillaume, Schwitzguébel, Brousse, Costa, Viñas, Morago, Malatesta, Cafiero, [15] posteriormente Reclus, além, é claro, do próprio Kropotkin. O jornal francês Le Révolté, criado em 1879, passava a ser o órgão do grupo, divulgando os textos de fundo e as opiniões dos principais componentes da “Intimidade Revolucionária”. No Congresso regional francês, em Havre, no ano de 1880, os membros do Le Révolté, definiriam-se, então, como “comunistas libertários” ou anarquistas.

Nos anos que se seguiram, o anarquismo, principalmente após o retorno dos exilados da Comuna, nos primeiros anos da década de 1880, experimentou conjunturas adversas ao seu funcionamento. Apesar do estado geral do movimento, os aderentes ao grupo “Intimidade Revolucionária”, Malatesta, Kropotkin e Reclus, destacaram-se internacionalmente por feitos militantes. Embora cada qual professasse a doutrina nem sempre da mesma forma, parecia claro, ao menos à maioria dos militantes, que a autoridade de seus atos e a coerência no que defendiam ligava-os à linhagem inaugurada por Bakunin e Proudhon na Internacional. À margem destes nomes, outros grupos em França, Itália, Espanha e Rússia pregavam ações individuais sob a forma de regicídios e atentados a bomba. Com o fim da A.I.T., mesmo após a inauguração da Segunda Internacional, em 1889, os grupos anarquistas careciam de espaços definidos de atuação social.

malatestaphpPara maior complexidade dos fatos, a luta parlamentar, inversamente, ganhava adeptos, e os partidos socialistas, sob a bandeira da social-democracia, cresciam em algumas partes da Europa. Na contramão deste processo apareciam alguns sindicatos que rejeitavam a via parlamentar e, a exemplo do Congresso da Basiléia, de 1868-1869, pregavam a luta econômica como tática fundamental. Tal fenômeno, na França, ganhava corpo no final do século XIX, com a criação das Bolsas de Trabalho, estrutura fundamental para o entendimento do sindicalismo revolucionário, sistematizado no Congresso de Amiens, em 1906. Os anarquistas estavam presentes à gênese deste sindicalismo e, na figura de F. Pelloutier, encontraram a necessária continuação da concepção defendida por Bakunin e os antiautoritários em Basiléia. A despeito das mudanças operadas no panorama internacional, e mesmo nos contornos sociais da classe operária, parecia aos anarquistas que a “velha fórmula”, com o devido componente ideológico renovado, poderia ser uma arma eficiente contra o socialismo reformista e o capitalismo.

De fato, foi o sindicalismo revolucionário um importante catalisador das energias até então, após a Comuna, subutilizadas pelos libertários. Em certos países, como na Espanha, de tradição fortemente arraigada no coletivismo bakuninista, o sindicalismo revolucionário apresentou uma tal especificidade que este viria a ficar conhecido como anarco-sindicalismo. Em outras partes, como no Brasil, Portugal, e outros países latino-americanos, o mesmo fenômeno, tendo sempre à frente anarquistas, não deixou de marcar significativamente a história do movimento operário.

usahaymarketphpEntretanto, em meio à euforia da via sindical, que era apresentada por alguns entusiastas como panacéia para eliminar os entraves do capital, acontece o Congresso Anarquista de 1907, em Amsterdã, no qual Malatesta assevera a necessidade de reforçar a ideologia com ênfase secundária para a questão sindical. Neste Congresso, Pierre Monatte, posteriormente aderente à causa bolchevista, irá travar um importante duelo teórico com Malatesta. Foi também aí que ficou definida a existência de mais uma corrente de pensamento, o sindicalismo anarquista, dentro do universo libertário.

De 1907, a partir do Congresso de Amsterdã, até o início da Primeira Guerra Mundial, sete anos depois, parecia não haver alternativa mais adequada ao libertário que atuar direta ou indiretamente vinculado ao campo sindical. Mesmo Malatesta, com todos os seus alvitres em relação ao envolvimento excessivo com os sindicatos, não se furtou a colaborar com a União Sindical Italiana, de orientação sindicalista revolucionária. Mas, o conflito mundial viria alterar sensivelmente o quadro político e a correlação de forças nos meios operários. A Segunda Internacional encerraria suas atividades, malogradas as suas manobras políticas em relação à Guerra, em 1914, e uma nova força revolucionária viria a ter visibilidade com a Revolução Russa.

Revolução Russa e Anarquismo

A partir de 1917, o proletariado internacional não apenas ganhava mais uma alternativa para a luta contra o capital, como também, passava a ter uma “pátria”. O processo que parecia plural até 1921, ano do massacre de marinheiros e anarquistas em Kronstadt, pelo Exército Vermelho, marcaria a ascensão do bolchevismo, expressão do marxismo-leninismo, não apenas na Rússia.

A Guerra Civil na Rússia era o aspecto inusitado, e também uma resultante, do conflito do “Imperialismo burguês”. Em meio às transformações sociais em curso no país, acontecia, no mesmo território, uma luta de envergadura internacional para redefinição das fatias destinadas às nações virtualmente vencedoras da Grande Guerra. Os russos tentavam resolver problemas seculares em meio a uma conflagração mundial. Nesse contexto, o Exército Vermelho, os Russos Brancos, aliados das forças conservadoras, e as guerrilhas independentes, cada qual, travava seu combate encarniçado pelo estabelecimento de um projeto de país adequado aos seus interesses. Uma fenda profunda cindia a “grande pátria eslava”, e dela brotavam todas as contradições sublimadas pelos séculos de violência e opressão do regime czarista.

Os anarquistas, diante desta situação, após terem participado da formação dos sovietes, em 1905, e na construção de algumas organizações nos centros urbanos, não possuíam força suficiente para uma oposição mais sistemática à vertente bolchevista do Partido Operário Social-Democrata da Rússia. Estes, em outubro de 1917, ao substituírem os membros do governo provisório, organizado em fevereiro do mesmo ano, ficaram também com alguns “quadros” militares do czarismo e grande parte do arsenal de guerra. Após perseguição sem tréguas a socialistas revolucionários, democratas burgueses e anarquistas, os bolchevistas cresceram na mesma proporção do aparelhamento político que fizeram de tudo e de todos.

makhnophpMas, a despeito da força bolchevista, uma guerrilha camponesa, na Ucrânia, tendo à frente os anarquistas Nestor Makhno e Piotr Archinov, entre outros, levantou-se com extraordinário vigor contra as iniqüidades promovidas por “brancos” e “vermelhos”. Valendo-se de uma tradição imemorial presente em algumas povoações próximas ao rio Don e, no melhor estilo de Stenka Razin, cossaco lendário pelas suas lutas contra a opressão, no século XVII, o exército insurrecional de Makhno foi capaz de impor fragorosas derrotas às forças inimigas. Os sucessos militares do cossaco de Gulai-Polie, sua aldeia natal, e as inúmeras lendas que passaram a envolver seu nome, entretanto, não foram suficientes para evitar a traição bolchevista. Após ver seu exército de camponeses destroçado e boa parte da resistência ao novo regime migrar para o exílio, Makhno foi obrigado a fugir para o ocidente da Europa. Sua trajetória, até chegar à França, onde trabalharia nas mais humildes profissões, foi uma saga à parte de tudo pelo que havia passado nos anos anteriores.

A polêmica em torno da “Plataforma de Organização”

No exílio francês, juntamente com o grupo de anarquistas Dielo Trouda, composto por militantes que, como ele, haviam participado da luta contra as forças da reação na Rússia, tornou-se um crítico mordaz dos anarquistas que não enveredaram pela luta armada, em tão propício momento para tal atitude. Com base em sua experiência guerrilheira, creditou parte de sua derrota à falta de apoio de setores do anarquismo que, quer por concepções equivocadas, quer por simples imobilismo, não souberam interpretar as oportunidades oferecidas pela vaga revolucionária que varria aquele país.

Como resultado de suas reflexões, partindo de sua ação armada na Ucrânia, Makhno e Archinov escreveriam um texto síntese de proposta organizacional, a Plataforma de Organização, em 1926. Nela estavam todos os elementos de uma vivência intensa e dedicada à revolução social, além, é claro, de uma concepção marcada pela imagem, reeditada na Revolução Espanhola, cerca de uma década após, do “Povo em Armas”. Todavia, não apenas propostas trazia a Plataforma: além de suscitar na França, dez anos depois do início da Revolução Russa, a construção de uma organização de bases rígidas, ela deslocava o eixo da discussão das táticas anarquistas para um campo repleto de celeumas e dissensões. Volin, que havia sido membro por algum tempo do exército makhnovista, e colaborava sistematicamente com o grupo de Makhno, chegaria mesmo a elaborar um outro programa, em grande medida discordante da Plataforma, evocando para legitimidade deste suas raízes russas. Sébastien Faure, figura importante do anarquismo, escreveria também um contradito que expressava sua leitura de organização e que ficaria conhecido como a Síntese.

paris28marzophpPara o veterano Malatesta, que havia assistido a passagem de muitos anarquistas às fileiras do bolchevismo, tal rigidez nas funções estabelecidas na Plataforma poderia ser um “sinal dos tempos”, o que já justificava uma resposta. Tendo como base a conjuntura da época, em particular da Europa Ocidental, marcada pelo avanço da Terceira Internacional e pela ascensão do fascismo na Itália, Malatesta fez uma crítica à Plataforma, de fato muito severa. Esta crítica tingia de cores fortes a iniciativa dos plataformistas russos, que ele, pelo menos inicialmente, considerou centralista. Como questão de fundo, Malatesta potencializou a memória recente de traições e atos desleais levados a efeito pelos bolchevistas, entendendo que a Plataforma defendia qualidades semelhantes às encontradas nas organizações inspiradas no marxismo-leninismo. Malatesta também tinha em mente a idéia de que um grupo específico de anarquistas, com fortes convicções ideológicas, deveria influenciar o movimento social, mas desconfiava de toda e qualquer centralização.

Não fica também difícil imaginar que, como último membro da Fraternidade Internacional, idealizada por Bakunin, egresso das lutas na Primeira Internacional, e formulador, com tantos outros como Kropotkin, Reclus e Cafiero, do comunismo libertário, Malatesta mantivesse uma distância crítica de qualquer via que acreditasse não ser federativa. Para ele, os ecos da luta armada na qual estivera envolvido Makhno, haviam se perdido nas brumas do tempo e eram inaudíveis aos militantes anarquistas daquele momento. Assim, insistir em uma organização com estrutura militarizada era, no mais, um anacronismo perigoso que, fora do contexto específico, poderia servir como uma via de acesso da cultura política centralista aos meios libertários.

As preocupações de Malatesta, parcialmente expressas no artigo ao jornal Il Risveglio, de outubro de 1927, muito provavelmente por sua importância política nos meios libertários, não funcionou apenas como uma reflexão a respeito de uma proposta de organização. As críticas à Plataforma de Organização ganharam dimensão de polêmica nos veículos de propaganda e opinião do anarquismo. Tal fato repercutiu de tal forma no ambiente revolucionário que mereceu de Makhno uma resposta a Malatesta e uma seqüência infindável de opiniões e esclarecimentos. Como tudo em que se envolvia o velho agente italiano da Internacional, virou polêmica clássica e afeta até hoje os debates sobre organização onde quer que estejam os anarquistas.

(*) Historiador e militante da Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ).

Ilustrações: Flavio Costantini

Notas:

[14] Ibidem, p. 118.

[15] Cafiero e Malatesta teriam aderido ao grupo ainda quando de suas detenções por crime de “sedição” na Itália.

1 COMENTÁRIO

  1. Queria saudar o Alexandre Samis.

    Penso também que este escrito tem algumas imprecisões num ponto preciso, das polémica entre Malatesta e o grupo Dielo Truda.
    O ponto importante para mim, é que esta polémica não deixa de ser fraterna (mesmo se os émulos de um e outro lado extremaram – posteriormente – os termos do debate).
    A questão central da responsabilidade colectiva versus responsabilidade individual é que dividia verdadeiradmente Malatesta e os Plateformistas. Malatesta não queria aceitar que um grupo anarquista tivesse responsabilidade colectiva, ou seja, que o grupo assumisse uma quota-parte de responsabilidade sobre o desempenho, o comportamento, o cumprimento do mandato atribuído a cada um dos membros. Achava que cada pessoa tinha uma quota parte de responsabilidade e que esta não se podia transferir, de modo nenhum, para o grupo.
    Mackno respondeu às críticas de um modo esclarecedor, dando a entender quea responsabilidade individual e colectiva não eram antinómicas.
    Quanto à questão do federalismo, o Alexandre sabe que não se pode afirmar que os Plateformistas eram «contra»: apenas os plateformistas (no passado e actualmente) preferem uma federação não agrupada por grupos afinitários. Isso, a federação de grupos afinitários, é típico de uma visão sintetista, da organização, como a FAI por exemplo, em que não existe uma unidade – diferente de centralização- de táctica e estratégia.
    Os plateformistas são a favor de uma organização federalista e praticam-na em todas as federações plateformistas das quais tenho conhecimento. Não têm um conceito sintetista do que seja o federalismo.
    Como elemento de reflexão acessório, mas não dispiciendo, gostava de vincar as circunstâncias difíceis em que Malatesta se correspondia com os restantes anarquistas. Ele estava confinado em prisão domiciliária. Sua companheira tinha que dar a conhecer esta correspondência às autoridades fascistas italianas, para a correspondência poder seguir. Não havia portanto uma atmosfera que favorecesse o debate livre de ideias. Mesmo sendo todos os participantes nos debates, homens e mulheres de grandes qualidades morais, espíritos livres, para lá de todas as prisões e repressões, o facto é que as circunstâncias não ajudavam a esclarecer os equívocos.
    É preciso compreender as circunstâncias que rodeavam a polémica: por isso eu digo que a polémica foi empolada por sucessores de uma e outra «escola»; que, verdadeiramente, a diferença entre Malatesta e Mackno, não era enorme; havia desacordo nalguns pontos. Mas, se as circunstâncias tivessem sido mais propícias, eles teriam colaborado e teriam acabado por participar na construção duma federação internacional dos comunistas libertários.

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