Por Invisíveis

Assim que as primeiras doses de vacina começaram a ser distribuídas no Brasil, as filas geradas a partir do estabelecimento de prioridades começaram a ser furadas de norte a sul. Sem o menor pudor, vários políticos e empresários começaram a postar em suas redes sociais uma foto do grande momento. Além disso, profissionais denunciaram tentativas de suborno, desvios de vacinas e condutas inapropriadas de Secretarias de Saúde municipais. Mas nada pior do que a atitude da direção do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que vacinou até professores, pós-graduandos e uma costureira voluntária que trabalhavam em casa, bem longe da linha de frente. Depois dos questionamentos do Ministério Público e várias desculpas sem sentido, o HC da USP disse que vai devolver em torno de 4 mil doses ainda não aplicadas. Na página do Facebook do HC da USP chovem denúncias, informando que vários funcionários na linha de frente, até mesmo dentro do próprio HC, ou que trabalham em outras unidades de saúde de São Paulo, não têm previsão de recebimento da vacina.

Os trabalhadores da Fundação Pró-Sangue — um banco de sangue vinculado diretamente ao hospital da USP — estão indignados porque não foram incluídos no plano de vacinação, enquanto o próprio diretor da Fundação, Prof. Doutor Vanderson Rocha, foi vacinado e publicou a notícia em suas redes sociais acompanhada de um texto hipócrita. Além de não receberem a vacina, esses trabalhadores denunciam a precarização do plano de saúde e as péssimas condições de trabalho: “Nós estamos aí há varios anos sem dissídio salarial, agora eles vão precarizar o nosso convênio médico jogando a gente para o IAMSPE [Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual], isso excluindo várias pessoas que têm tratamentos sérios… Existe ainda um número baixo de funcionários, estagiárias que trabalham esgotadamente e que ganham pouco também, eles não estão fazendo concurso público, nós não temos nem uma sala decente… Sem falar nas bancadas horrorosas em que a gente trabalha, problema que nos faz desenvolver LERs (lesões por esforço repititivo)”.

Em Goiânia, os profissionais da saúde do HC da Universidade Federal de Goiás (UFG) fizeram um ato no dia 22 de janeiro, em frente ao hospital, para reivindicar vacina para todos, uma vez que a quantidade de doses é insuficiente para vacinar os profissionais da linha de frente no estado. Além disso, reivindicam transparência e um calendário para evitar que a vacinação seja baseada em privilégios, como vem acontecendo no Brasil inteiro até mesmo dentro de instituições públicas.

Em meio à disputa desesperada por uma dose de vacina, falta de transparência e incerteza na distribuição de novas doses, o Ministério da Saúde optou por incluir várias categorias profissionais nos grupos prioritários. Dessa forma, a estimativa do total de pessoas no grupo prioritário passou a ser de aproximadamente 75 milhões. Para a nova inclusão de categorias profissionais não existe qualquer justificativa no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19. Chama a atenção a inclusão dos trabalhadores do transporte de cargas às vésperas de uma possível greve dos caminhoneiros, marcada para o dia 1º de fevereiro. Mesmo que essa não seja a principal pauta da greve e a mobilização continue, a Confederação Nacional do Transporte comemora a inclusão do grupo como prioritário para vacinação e diz que essa foi uma reivindicação da categoria.

O Ministério da Saúde não tem calendário de vacinação e uma previsão suficiente de doses para cobrir até mesmo o grupo prioritário em um curto período de tempo. Foram retiradas do plano de previsão de compra doses de outras vacinas que não sejam as já liberadas pela ANVISA: Coronavac (Butantan) e Oxford-AstraZeneca (Fiocruz). Se o plano for trabalhar apenas com essas vacinas, a estimativa mais otimista é que, entre importadas e produzidas no Brasil, se somem aproximadamente 260 milhões de doses até o final do ano. Mesmo essa quantidade está ameaçada, já que precisa ser regularizada a importação de insumos vindos da China, o que gerou o atraso da produção da Fiocruz. Essa quantidade de vacinas contempla apenas 130 milhões de pessoas, pouco mais da metade da população brasileira. Ficam de fora ainda desses grupos prioritários definidos pelo Ministerio da Saúde, trabalhadores considerados de altíssimo risco como profissionais da beleza, preparadores físicos e parteiras. Uma pesquisa feita pela UFRJ disponível e atualizada on-line[1], indicou essas profissões como sendo de maior risco em comparação às colocadas como prioritárias pelo Ministério da Saúde.

Nesse contexto, a disputa por um bote enquanto o navio afunda cria um clima de conflito entre categorias profissionais pelo direito à vacina, que pode inclusive virar uma guerra judicial. Ainda pior, as elites pulam na frente da fila garantindo para si as doses enquanto, na maioria, idosos pobres e negros morrem sem direito a oxigênio nem uma chance de tratamento no hospital. Para tentar aplacar os ânimos, Bolsonaro e Dória pingam doses insuficientes de vacina por semana com pompas publicitárias, na tentativa de enganar a população. Não serão 6 milhões na semana passada, 2 milhões nessa, que resolverão o problema. Precisamos com urgência de aproximadamente 400 milhões de doses. E essas doses precisam ser distribuídas a partir de um plano que contemple a necessidade de estados e municípios.

Isso acontece porque o genocídio planejado e executado pelo governo Bolsonaro, com o aval de toda a elite política e econômica, inclui a recusa de comprar vacinas em doses suficientes para todos. A pauta da classe trabalhadora não deve ser a disputa por um lugar na fila, o que implicaria em aceitar que o governo não pode providenciar a vacinação eficaz. Mas sim, devemos lutar pela vacinação para TODOS. Todas as vidas são importantes e, embora seja necessária a priorização de alguns grupos em um momento imediato, como os idosos e os trabalhadores da saúde, todos os trabalhadores devem ter acesso à vacina o mais rapidamente possível. O governo Bolsonaro, que vem recusando ofertas para compra de vacinas, como fez com a da Pfizer ano passado, deve disponibilizar até o máximo no meio do ano vacinas para toda a população brasileira.

As vacinas têm um efeito de médio e longo prazo. Por isso, é fundamental no curto prazo que o Estado volte imediatamente a pagar o Auxílio Emergencial a todos os que foram cortados desde o ano passado e que sejam retomados os programas de proteção de salário e de emprego para os trabalhadores enquanto houver pandemia. São medidas fundamentais para tornar possível que as medidas de controle de circulação de pessoas tenham qualquer efetividade entre os trabalhadores informais e os que têm maior precariedade de emprego e para que possamos reduzir a mortalidade nos próximos meses. Sem isso, nossos colegas de classe mais precários continuarão se envolvendo por necessidade na agitação patronal dos movimentos contra o lockdown e as restrições, como já aconteceu em Manaus, Búzios e algumas cidades menores do interior de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Notas

[1] LIMA, Y. O., COSTA, D. M., SOUZA, J. M. Risco de Contágio por Ocupação no Brasil. Impacto COVID-19, Rio de Janeiro, 26 de Mar. de 2020. Disponível em: https://impactocovid.com.br. Acesso em: 27 de Jan. de 2021.

A ilustração de destaque é da autoria de Jean-Michel Basquiat (1960-1988).

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