Por Lucyan Butori

 

Qual o limite da exposição midiática? Essa é, sem dúvida, a pergunta que o telespectador faz a si mesmo enquanto assiste ao filme O Quarto Poder (Mad City, 1997), dirigido por Konstantinos Gavras, mais conhecido como Costa-Gavras. O filme abre com uma série de takes mostrando repórteres e cinegrafistas preparando microfones e câmeras e filmadoras e tripés como atiradores preparariam seus rifles para a guerra.

No filme acompanhamos Max Brackett e Sam Baily, interpretados por Dustin Hoffman e John Travolta, respectivamente. Sam Baily é um simplório guarda de um museu prestes a falir que, por causa dos cortes de gastos, é demitido. Ele, desesperado, decide pegar uma carabina e uma mochila cheia de explosivos e invadir o museu com o objetivo de assustar sua chefe e proprietária do museu para que assim ela o escute e o recontrate. Um plano ingênuo e absurdo. A Sra. Banks (Blythe Danner), proprietária do museu, tenta dissuadir Sam de seu plano ridículo, com ar de superioridade sobre o seu ex-funcionário. Sam, porém, se irrita e dispara sua carabina para um lado qualquer, para demonstrar que está carregada e que ele está falando sério. Afinal, a única coisa que ele realmente quer é ser escutado; que alguém preste atenção a seus problemas e sofrimentos; que deixe de ser invisível, mesmo que brevemente. A medida desesperada acaba degringolando em um desastre, obviamente: sem querer, o disparo acaba por acertar no outro guarda, seu amigo e colega de serviço. E durante a confusão uma turma de crianças e a professora acabam ficando presos dentro do museu. No momento desta confusão Max Brackett, um jornalista que antigamente tinha grande projeção, mas que devido a um incidente ao vivo acabou sendo “rebaixado” para uma empresa pequena de uma cidade do interior, percebe uma grande oportunidade de alavancar sua carreira e ser promovido para uma emissora nacional de Nova York: ele vê no desespero e despreparo de Sam Baily a oportunidade de um grande Breaking News. Sequestro de crianças num museu!!!

Rapidamente Max consegue controlar a situação conversando e acalmando Sam que, em momento algum tinha a intenção de sequestrar as crianças; e que naquele momento estava à beira do desespero pela rapidez e proporção com que as coisas pioraram para seu lado. A polícia cerca o prédio e inicia suas tradicionais ameaças. Além da polícia, uma legião de repórteres chega aos empurrões e se posiciona, apontando seus rifles e preparados para a guerra, ansiosos por seus próprios Breaking News que os farão subir na carreira. E também os curiosos transeuntes. Um elemento interessante é a representação dada aos altos executivos da emissora de Nova York, homens brancos com aparência jovial e vestidos todos iguais — ao contrário do executivo da emissora interiorana, Lou Potts (Robert Prosky), mais velho e que se veste de forma menos formal — e sem nenhum escrúpulo, pensando apenas na opinião pública, no apelo midiático e nos números de telespectadores. Movendo o filme para a nossa atual realidade, é notória a semelhança com os altos executivos das empresas de social media no capitalismo cibernético, que já despontavam àquela época, onde o engajamento é posto acima de qualquer coisa, inclusive da sociedade, ética, política, sanidade.

A partir deste ponto o filme passa a ser muito didático. Max Brackett percebe que um simples bandido sequestrador não tem tanto apelo midiático quanto o oposto. Se ele conseguir fazer com que a opinião pública acredite que Sam Baily é inocente, que não passa de um simples trabalhador honesto que foi enganado e injustiçado, conseguirá enorme apelo midiático de projeção nacional e sua carreira estará devidamente pavimentada até o topo novamente. A opinião pública de imediato se identifica com Sam Baily reconhecendo-o como um pobre coitado injustiçado após trabalhar duro para dar uma vida melhor à sua esposa e filhos. No entanto, outros jornalistas investem em outras versões, demonstrando que Sam é um criminoso psicótico e perigoso. É entrevistado um suposto amigo que afirma que Sam é lunático, amigo esse que o próprio Sam, assistindo a reportagem por uma televisão dentro do museu, diz não conhecer. Nota-se, portanto, que os “fatos” transmitidos pela televisão não são bem fatos, e que a realidade é simulada — isto é, fabricada. Em diversos momentos o jornalista Max tem a oportunidade de apoderar-se da carabina de Sam e o dominar, mas ele escolhe continuar com o show. No fim, é tudo um show. Vence quem exibir o show por mais tempo e com mais impacto. A pergunta que os jornalistas passam a fazer não é mais “isso é real?”, mas sim: “isso é noticiável?” Sequestro de crianças é um acontecimento altamente noticiável, mas não se trata mais de se perguntar se o acontecimento é um evento real, um fato que merece ser noticiado por si, como seria um desastre natural. Trata-se da criação de um evento encenado e roteirizado precisamente para ser noticiável. A realidade transmitida pela mídia torna-se um pseudoevento. Um aspecto estético interessante que o diretor do filme explora bastante e com maestria é as personagens frequentemente se verem através da imagem exibida pela televisão. Ou seja: o monitor de televisão está sempre englobando o evento e sendo englobado pelo próprio evento.

O evento vê-se a si mesmo ganhando uma estranha natureza autoconsciente ou metalinguística. É presença contaminante da mídia que transforma o evento em pseudoevento, realidade em supra-realidade [1].

Além disso, nota-se também que os transeuntes curiosos estão frequentemente tentando chamar a atenção das câmeras, alterando assim o objeto enquadrado e a suposta “realidade” do sequestro que as câmeras estão tentando mostrar. Max deixa de ser jornalista e passa a ser um diretor de cena, dizendo o que Sam deve ou não fazer, o que dizer e como agir, como se portar diante das câmeras e como deve negociar com a polícia para obter a simpatia da opinião pública — por exemplo: Max diz para Sam liberar duas crianças, uma preta e outra branca para que não seja acusado de racismo, já que o guarda alvejado era preto e os supremacistas brancos haviam começado a capitalizar sobre o evento midiático homem branco atira em homem preto. Tudo é milimetricamente arquitetado, e o Max entra e sai do museu como se entrasse em sua própria casa, algo que seria absurdo em se tratando de uma situação real de sequestro. Mas o que seria uma situação real de sequestro? Não seriam todos os sequestros midiáticos? Neste momento o filme mostra que a realidade se tornou supra-realidade: o museu torna-se um set de filmagem onde Sam assume o papel de sequestrador com falas e ações roteirizadas, fabricando a realidade como um filme. A simulação torna-se a realidade a ser transmitida, e Sam passa a olhar para si mesmo e para o evento que protagoniza através do monitor de televisão dentro do museu, onde realidade e ficção, referente e simulacro, confundem-se.

No capitalismo cibernético a capitalização passa a ser não o evento em si, a realidade, mas o pseudoevento que está sendo transmitido, ou seja, as simulações da realidade. Assim passamos a ver a realidade através de telas que direcionam e condicionam nosso olhar sobre os fatos, e nos manipulam com o que nos mostram e o que deixam de mostrar, fabricando pseudoeventos e uma supra-realidade virtual. Seria a nossa realidade então um reality show? Acontecimentos ou pseudoacontecimentos são noticiados como grandes Breaking News tanto pela mídia tradicional quanto pelas digitais. E os pseudoeventos não contaminam apenas as notícias, mas também as redes: celebridades que surgem e desaparecem, polêmicas intermináveis, memes e vídeos “virais” são encenações roteirizadas e fabricadas. Os eventos perderam seu referencial na realidade, e assim as pessoas participam dos eventos não enquanto evento, mas para transmiti-lo enquanto pseudoevento. Por exemplo, em uma manifestação ou show de banda aqueles que participam enquanto espectadores estão lá para transmitir o evento para suas redes com fotos e vídeos, mostrando que estão participando do evento: só existem enquanto participantes e vetores de transmissão de pseudoevento. E os algoritmos garantem que pseudoeventos abundem nas redes para manter o engajamento.

Pergunto-me se o grupo terrorista Estado Islâmico teria conseguido a relevância midiática que conseguiu se seus atos hediondos não tivessem sido televisionados da forma sensacionalista e ardilosa que foi, manipulando a opinião pública para perpetrar guerras e ampliar a repressão de grupos minoritários e necessitados, como os refugiados. Os tiroteios e massacres em escolas também são atos midiáticos e/ou transformados em atos midiáticos. A mídia elege e depõe governantes através de pseudoeventos. O famigerado “golpe comunista” que a mídia propaga há, literalmente, mais de um século no Brasil e que nunca chega.

As manifestações e protestos chamados “jornadas de junho” que aconteceram em 2013 e se estenderam até meados de 2014 foram marcados fortemente pela manipulação midiática posteriormente. O evento dos protestos começou com o Movimento Passe Livre — MPL (criado em Porto Alegre em meados de 2005) que luta por transporte público gratuito para todos e que reúne socialistas e socialistas libertários. Os protestos chamaram a atenção de outras organizações de esquerda e esquerda revolucionária que começaram a somar e tomar as ruas. Os empresários de transporte e a mídia que eles financiam, os políticos de direita e os liberais, fizeram o que sempre fazem: soltaram os cães fardados para reprimir, violentar e, quando as câmeras virarem convenientemente para o outro lado, matar. Em algum momento as elites tremeram com medo de uma revolução, e a repressão aumentou em brutalidade. E então a mídia hegemônica se reconfigurou: passou a ficar “do lado” dos protestos. Começaram a empurrar goela abaixo pautas de direita, criando personagens que lideravam falsos movimentos dentro dos protestos, com siglas distorcidas que nada diziam, utilizando-se de truísmos e ultraliberalismo nos gritos — aproveitando-se da baixa politização da classe média naquele momento em que tomava as ruas. E então a briga legítima contra os cães fardados passou a ser pano de fundo enquanto falsos movimentos brigavam na frente das câmeras de certas emissoras. E surgiram mascarados que só quebravam vidraças quando as câmeras estavam focando neles. Os transeuntes tiravam selfies no protesto. A classe média encheu as redes sociais com fotografias e vídeos cheios de truísmos e frases de efeito vazias. Até mesmo a polícia passou a performar diante das câmeras. O protesto tornou-se um pseudoevento midiático, um show. A mídia tradicional brasileira percebeu que a fabricação de pseudoeventos ganharia as ruas e a comoção nacional. E, assim, em 2015 as manifestações voltaram totalmente baseadas em pseudoeventos midiáticos e permaneceram até 2016, quando, por fim, depuseram a presidente Dilma Rousseff. Desta forma, um evento que começou com protestos de esquerda contra o aumento das passagens de ônibus no início de 2013 tornou-se um pseudoevento de extrema-direita que terminou em um golpe parlamentar. A infiltração e captura de eventos para subjugá-los em pseudoeventos é estrutural na mídia que opera dentro do capitalismo cibernético. A fabricação de pseudoeventos e a criação de um novo senso comum (“nem de esquerda nem de direita”, “anti-corrupção”, “sem partido“ e outros truísmos típicos da direita) pela mídia tradicional, fortemente amparada nas mídias digitais financiadas por empresas e think tanks ultraliberais e favorecidos por algoritmos desenhados para beneficiar a difusão de ideias de extrema-direita, destruíram a maior movimentação social brasileira dos últimos tempos. Ali, em 2013-4, a burguesia brasileira tremeu de medo como nunca antes havia tremido, e contra-atacou com tudo.

O filme evidencia que as reportagens de grande impacto midiático são fabricadas, que a mídia e seus jornalistas têm total consciência de que estão jogando com a opinião pública, criando a narrativa que melhor lhes convém no momento. É evidente também a ausência de ética nas personagens, que simplesmente não se importam com os efeitos nocivos de suas ações. Max, que estava sendo movido por egoísmo e meios maquiavélicos, toma consciência de que a emissora e a mídia simplesmente não se importam com as vidas e se desespera, por fim, ao deparar com o vazio da máquina ao compreender que sua carreira estava arruinada por ainda manter empatia.

Nota

[1] FERREIRA, Wilson Roberto Vieira. Será a Realidade um Filme Mal Produzido? (Parte 3) – Filmes “Mad City” e “Wag the Dog”. Cinema Secreto: Cinegnose, 02 dez. 2011. Disponível aqui.

Referências

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.
BOORSTIN, Daniel. The Image: A Guide to Pseudo-Events in America. New York: Vintage Books, 1992.
ECO, Umberto. Travels in Hyperreality. Boston: Mariner Books, 1990.

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