Por Jan Cenek
Uma notícia foi pouco comentada. Entre 2011 e 2020, o Brasil empobreceu em termos absolutos e relativos. Como o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 2,2% e a população aumentou 8,7% na década, a renda média por habitante diminuiu [1]. O tombo é ainda maior se comparado à evolução do PIB global, que cresceu 30,5% no mesmo período. O encolhimento relativo da economia brasileira não é novidade, aconteceu também entre 1981 e 2010. Ou seja, mesmo na década retrasada, apesar dos analistas do mercado, que afirmavam incansavelmente que os “fundamentos da economia eram sólidos”, o Brasil encolheu em comparação com o mundo.
Importante destacar que, inclusive com o presidente que dizia “nunca antes na história desse país”, o Brasil encolheu em relação às outras economias, apesar da elevação dos preços das commodities exportadas, que criou certa ilusão de riqueza e deu alguma margem de atuação para o governo. Para ser justo, o “nunca antes na história desse país” faria algum sentido caso se referisse à elevação dos preços das commodities exportadas pelo Brasil. Este sim fato inédito. Mas a desindustrialização se manteve, e a concentração de renda não regrediu no período. A banda passou e “o que era doce acabou”, como na canção do Chico.
Chama a atenção a explicação uniforme da mídia empresarial para o fracasso econômico do país. A partir de 2009 o Brasil teria expandido os gastos e o crédito para combater a “crise financeira mundial”, a necessidade se converteu em conveniência do governo petista, que ampliou a intervenção estatal na economia e fez manobras contábeis, comprometendo a situação das contas públicas. Uma variação ainda mais simplória da cantilena neoliberal, repetida ad infinitum pelos liberolas [2], explica a derrocada do país única e exclusivamente pela corrupção dos governos petistas. É o discurso que ajudou a eleger o genocida que virou presidente. A fragilidade das explicações midiáticas sobre a crise brasileira, proferidas em geral pelos economistas dos bancos, depõe a favor da tese de que o país está encolhendo. A cantilena simplória dos liberolas idem. A questão não é só a fragilidade dos argumentos, porque a mídia empresarial e os liberolas sempre gargantearam ideias duvidosas, o problema é a inexistência, pelo menos com um mínimo de circulação, do necessário contraponto.
Antes que me atirem a primeira pedra, esclareço que não se trata de defender Lula e Dilma. Pelo amor de Marx! Questão importante, em tempos de encolhimento generalizado, é definir os governos petistas com um mínimo de rigor: foram, essencialmente, neoliberais. Ajudaram a pavimentar o caminho para o buraco em que o país se meteu. O neoliberalismo brasileiro está estruturado sobre três eixos: lei de responsabilidade fiscal, metas de inflação, geração de superávits primários. Enquanto puderam, os governos petistas rezaram o terço da santíssima trindade neoliberal. “Nunca na história do Brasil eles (empresários) ganharam tanto dinheiro quanto ganharam quando eu fui presidente da república”, disse, talvez com razão, Luiz Inácio Lula da Silva. Dilma começou a cair quando seu governo se mostrou incapaz de gerar superávits primários para alimentar o mercado da dívida pública.
Já disseram que a manipulação está na verdade omitida e não na mentira contada. Algumas perguntas que a mídia empresarial e os liberolas não fazem, mas que ajudam a iluminar a verdade omitida: Por que o Brasil foi o país que mais cresceu nas primeiras décadas do século XX? Por que a economia brasileira está encolhendo? Por que o encolhimento coincide com o neoliberalismo? Qual a relação entre o avanço neoliberal e o tombo econômico? Por que a ampliação das terceirizações não gerou empregos? Por que a reforma trabalhista não tirou o país do atoleiro? Por que a reforma da previdência não resolveu os problemas da nação? A única solução que a mídia empresarial e os liberolas dão para a crise é empurrar contrarreformas goela abaixo, como um bêbado que ingere quantidades crescentes de álcool. É como se a história tivesse acabado e não houvesse nem passado, nem presente, nem futuro, nem, sobretudo, alternativas. Restando, apenas e como única possibilidade, a radicalização do tripé neoliberal. As contrarreformas do tempo presente são, em geral, tentativas de radicalizar a lei de responsabilidade fiscal, de garantir as metas de inflação e a geração de superávits primários.
É compreensível que a mídia empresarial incorra em simplismos grosseiros para explicar o tombo econômico do Brasil, além da visão estreita e de curtíssimo prazo, lucram com o encolhimento do país. Nas crises a maioria perde, mas alguns ganham, entre estes estão os principais anunciantes da mídia empresarial. Relatório da Oxfam lançado em julho de 2020 informou que o patrimônio dos 42 bilionários brasileiros, somado, aumentou em US$ 34 bilhões, apesar da pandemia da covid-19 [3].
Um sintoma e um efeito do encolhimento do Brasil é o desaparecimento dos projetos para o país [4]. Tirando a mídia empresarial e os liberolas, alguém acredita que a submissão total ao mercado vai gerar desenvolvimento? Menciono o desaparecimento dos projetos para o país como constatação, não para defendê-los. Não se trata de propor um projeto para o Brasil, não existe nem socialismo em um só país nem libertação que não seja internacionalista. Não adianta substituir o neoliberalismo entreguista pelo desenvolvimentismo nacionalista, assim como a centralização estatizante não pode ser pensada como alternativa ao mercado capitalista, pelo menos na perspectiva da emancipação dos trabalhadores. As experiências desenvolvimentistas brasileiras [5] atestaram que o país não vai se desenvolver por dentro do capitalismo, com conciliações de classe e sem rupturas. Mas chama a atenção, atualmente, a ausência de projetos para o país, até o desenvolvimentismo nacionalista sumiu do mapa das ideias. Antes até a direita tinha um projeto, atualmente nem a esquerda sabe o que é isso. A burguesia brasileira se conformou com o papel de sócia menor do grande capital? Ou foi sempre assim, sendo as experiências desenvolvimentistas exceções que confirmam a regra? São questões para serem pensadas.
Como desgraça pouca é bobagem, não apenas a economia brasileira está encolhendo. Encolhe a política. Encolhe a fauna. Encolhe a flora. Encolhe a vida. Encolhe a democracia. Encolhe a ciência. Encolhe a pesquisa. Encolhe o conhecimento. Encolhe a moral. Encolhe a cultura. Encolhe o humor. Encolhe a literatura. Encolhe a música. Encolhe o futuro. Até o futebol brasileiro está encolhendo.
Mas é, sobretudo, na capacidade de crítica, de imaginação e de indignação que o Brasil está encolhendo. Cito apenas alguns: que falta fazem Machado de Assis, os anarquistas de 1917, os modernistas de 1922, Cora Coralina, Pixinguinha, Carlos Drummond de Andrade, Carolina Maria de Jesus, o Centro Popular de Cultura, Carlos Marighella, Clarice Lispector, Adoniran Barbosa, Zé Kéti e até um autoproclamado reacionário como Nelson Rodrigues. Sim, os reacionários já foram mais inteligentes, viraram meros liberolas.
Notas
[1] Enquanto Brasil cresce apenas 2,2% na década, mundo avança 30,5%.
[2] Liberola é um mamífero tipicamente brasileiro, diz que é liberal, mas na verdade é carola. Liberalismo no discurso. Carolismo na prática. O liberola defende, sobretudo, preconceitos atávicos, não hesita em abrir mão do livre mercado sempre que considera necessário para a manutenção do status quo.
[3] Bilionários da América Latina aumentaram fortuna em US$ 48,2 bilhões durante a pandemia.
[4] Por projeto para o país entendo, por exemplo, as teorizações desenvolvimentistas de um Celso Furtado, que, aliás, escreveu um livro chamado Um projeto para o Brasil.
[5] Considero que aconteceram experiências desenvolvimentistas nos governos Getúlio e Jango. Os governos Lula e Dilma foram, essencialmente, neoliberais.
Caro Jan,
Algumas coisas me chamaram a atenção na sua coluna.
1) Você escreve que “chama a atenção, atualmente, a ausência de projetos para o país, até o desenvolvimentismo nacionalista sumiu do mapa das ideias”. Ora, um dos pré-candidatos à Presidência da República, o Ciro Gomes, passou o último ano viajando pelo Brasil divulgando o livro “Projeto nacional: o dever da esperança”, que aliás ficou em primeiro lugar nas vendas da Amazon, e que é uma tentativa de recolocar o desenvolvimentismo na ordem do dia. Você também afirma que os únicos governos desenvolvimentistas no Brasil foram os do Vargas e o do João Goulart, mas o governo do Juscelino Kubitschek também foi desenvolvimentista e, na verdade, o João Goulart ficou pouco tempo no poder e não foi capaz de colocar em prática o Plano Trienal do Celso Furtado (o próprio termo “desenvolvimentismo”, se não estou enganado, se popularizou no governo do JK).
2) Por outro lado, quando você fala na “inexistência […] do necessário contraponto”, fico me perguntando: que contraponto seria esse? A meu ver, o encolhimento que realmente nos interessa, a nós anticapitalistas, o contraponto realmente ausente, são as greves, manifestações de rua e mobilizações tendentes à ruptura com a economia capitalista e o Estado capitalista. Não que os trabalhadores não estejam resistindo – este site noticia lutas diariamente – , mas estamos vivendo um cenário de grave refluxo nas lutas, potencializado fortemente pela pandemia (a propósito, acho que devemos aprender a lutar de novas formas durante a pandemia, evitando aglomerações: trata-se de um dever). Mas, enfim, só para se ter uma ideia, e restringindo a análise às greves, em 2019 – primeiro ano do governo Bolsonaro – o número de greves foi de 1.118 (foram 1.453 em 2018), 566 na esfera pública e 548 na privada (791 na esfera pública e 655 na privada em 2018), um total de 44.650 horas paradas (47.045 em 2018), 67% reunindo mais de 200 grevistas e 7% reunindo mais de 2 mil trabalhadores (54% reunindo até 200 grevistas e 7% mais de 2 mil em 2018) (dados do DIEESE). No primeiro semestre de 2020 foram 355 greves, 195 na esfera pública e 160 na privada, 11.167 horas paradas, 70% com até 200 grevistas e 2% com mais de 2 mil. Não há dados para o segundo semestre de 2020. Em 2013 – ano que marcou o ponto alto das mobilizações dos trabalhadores na década passada – foram 2.050 greves, 933 na esfera pública e 1.106 na esfera privada, 111.342 horas paradas no total, 45% com até 200 grevistas, 54,7% com mais de 200 grevistas, 21,7% com mais de 2 mil trabalhadores. O encolhimento é evidente. Enfim, apenas um dos indicadores da grave derrota e do sequestro da onda de contestação social que explodiu em 2013, pela direita, a extrema-direita e o fascismo (ver os balanços de greves do DIEESE no site https://www.dieese.org.br/). Resta saber como a classe trabalhadora vai reagir ao agravamento de suas condições de vida pela retirada/redução do auxílio emergencial e, pior ainda, num horizonte marcado pela flexibilização da venda de armamentos, numa preparação para o golpe de Estado e/ou a guerra civil, como alertado pelo ex-Ministro da Defesa e ex-Ministro Extraordinário da Segurança Pública Raul Jungmann (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/02/bolsonaro-quer-armar-populacao-para-guerra-civil-diz-ex-ministro-da-seguranca-e-da-defesa.shtml).
3) Então, em vez da retomada de um projeto nacional, o que precisamos é de retomar um projeto classista e antifascista, luta que será árdua, porque a esquerda tem aderido a uma outra versão do fascismo, ou a uma outra extremidade do espectro fascista, o identitarismo, concebendo-a ilusoriamente como um antifascismo; e tem sido ainda, por outro lado, incapaz de romper definitivamente – apenas marginalmente – com a institucionalidade capitalista, algo que só será capaz de fazer reconstruindo o internacionalismo, entendido como a união dos trabalhadores contra o capitalismo ultrapassando as fronteiras nacionais, quer dizer, lutando abertamente contra qualquer projeto nacional. Em outras palavras, ultrapassar as fronteiras nacionais (reconstrução do internacionalismo) e as fronteiras impostas pelas identidades (reconstrução do classismo), combatendo ao mesmo tempo a institucionalidade capitalista e o fascismo: é nesses termos que penso que as coisas devem ser colocadas.
Caro Nathanael,
Acho possível falar em desenvolvimentismo do governo JK. Mas me parece que Getúlio (negociou a implantação da indústria de base) e Jango (tentou fazer reformas de base) foram mais longe. JK ensaiou um desenvolvimentismo associado e submetido ao capital estrangeiro, penso na indústria automobilística. Getúlio e Jango tentaram transformar a estrutura produtiva do país para impulsionar o capitalismo brasileiro. Acabaram enxotados do poder. O que indica que a burguesia brasileira não tem apreço pelo desenvolvimentismo.
O livro do Ciro Gomes me passou batido, talvez por certa tendência a não levar os políticos profissionais a sério. Como não li, só me resta especular. É possível definir Ciro Gomes como desenvolvimentista? Acho complicado. Ele propõe a superação do tripé estruturante do neoliberalismo brasileiro (a lei de responsabilidade fiscal, as metas de inflação e os superávits primários)? Aceito o tripé estruturante do neoliberalismo brasileiros somado às contrarreformas realizadas nos últimos anos, fecham-se as portas para experiências desenvolvimentistas. A burguesia tem atuado para inscrever o neoliberalismo no regramento jurídico do país. Além disso, acho difícil pensar em desenvolvimentismo sem passar por medidas (reformistas) como reforma agrária, auditoria da dívida pública, taxação de grandes fortunas, ou seja, sem transformar a economia. Não acredito que Ciro Gomes proponha nada disso. Posso estar errado. Ou talvez ele até proponha alguma coisa, mas será que colocaria em prática? Acho difícil.
Quando escrevi “contraponto” estava pensando no nível dos discursos e dos argumentos. A esquerda eleitoral não se contrapõe ao capital. Nada de denunciar o tripé do neoliberalismo brasileiro, nada de reforma agrária, nada de auditar a dívida pública, nada de taxar as grandes fortunas, nem sequer nos discursos. Mas concordo com você, contraponto de verdade só pode vir pela luta dos trabalhadores, com internacionalismo e classismo.
Sobre 2013, creio que é uma história aberta sendo jogada. Exemplo. É verdade que diminuíram as greves. Tem a ver com a pandemia, certamente, mas também tem a ver com a reforma trabalhista, que precarizou o trabalho e enfraqueceu os sindicatos. Ao capital só resta expropriar o que sobrou dos direitos trabalhistas. A burguesia avança inclusive contra o peleguismo sindical. Pode lucrar no curto prazo, mas e depois? A radicalização da luta de classes é uma tendência.
O gigante adormecido encolheu e, dizem certas más línguas, já se espreguiça.
No horizonte, perfila-se um regime neocolonial (tipo assim: militar-fascista) e uma quase inevitável balcanização, mediante conflitos separatistas (remember Iugoslávia) atualmente em gestação…
Ulisses, você esqueceu de um “detalhe” sobre o separatismo Iuguslavo: Por aquelas bandas existiam um forte protagonismo,na esteira do fim do “socialismo real”, além do componente étnico/religioso presente desde outros carnavais. Por aqui o único movimento é a audiência do BBB…duvido de separatismos,malgrado o desejo de alguns “sulistas”.
Se esqueci, não me lembro – valha a blague.
A Iugoslávia foi mencionada a título de exemplo, não como modelo. O “componente étnico&/religioso” tem, frequentemente, sido o carro-chefe de escribas mercenários, cuja argumentação(?) visa apenas a escamotear e escotomizar causas reais: a boa e velha luta de classes, além de geopolíticas imperialistas conflitantes (sem ‘esquecer’ o petróleo) e macrorreestruturações capitalistas (fim do ‘sorex’ e balcanização do império tardobolchevique russo).
No Brasil, há separatismos para todos os gostos e em todas as regiões. As metrópoles (capitais & adjacências) de Pindorama customizaram o apartheid, em formatos e cores pitorescos, como empreendimento paramilitar altamente rentável…
Caro Jan,
em primeiro lugar, parabenizo pelas discussões provocadas pela coluna, com a qual discordo em vários pontos importantes. Discordâncias que, espero, serão mais produtivas quando debatidas em aberto.
Em primeiro lugar, você chama de “explicação uniforme da mídia empresarial para o fracasso econômico do país” uma narrativa que é, também, a narrativa de muitos economistas à esquerda, como Laura Carvalho (cf. Valsa Brasileira): a expansão de gastos, que deveria ser uma medida pontual para combater os efeitos da crise global de 2008, mudou de forma, transformando-se na política de incentivos fiscais a certas indústrias que, num elemento que ficou ausente em sua explicação, metamorfoseou-se na “agenda FIESP”, pactuada entre o governo “Dilma I”, a própria FIESP e várias centrais sindicais. Não faz muito tempo, foi em 2011. Sindicatos seguraram a mão nas greves, empresários comprometeram-se a usar os incentivos fiscais para investir, e o governo federal seria como que o “garantidor” do pacto. Ora, os sindicatos realmente seguraram a mão nas greves e o governo tentou “garantir” o pacto, mas — outro aspecto ausente de sua análise — o nível de endividamento das empresas levou-as, naturalmente, a usar a folga orçamentária para pagar as dívidas, não para investir. Quando sindicatos começaram a largar o pacto e o governo negou-se a seguir garantindo as folgas orçamentárias para os empresários, foi aí que ganhou força a cantilena “antiestatista” que já era chocada em certos ninhos escondidos. O governo queria garantir recursos para dar conta dos incentivos fiscais e das políticas sociais ao mesmo tempo, mas os empresários não queriam mais o governo. Foi aí que surgiram as “manobras fiscais”, que sim, existiram. A questão não é apenas de “narrativa”, como se se tratasse de invenção; é de enquadramento dos fatos que realmente existiram.
Em segundo lugar, Jan, você diz que “um sintoma e um efeito do encolhimento do Brasil é o desaparecimento dos projetos para o país”, e pergunta se “a submissão total ao mercado vai gerar desenvolvimento”. Além do óbvio livro de Ciro Gomes, é de se perguntar se a existência de um “plano” com o qual não concordamos é igual a não existir plano algum. Dizer que desapareceram os projetos para o país é cair numa falácia planificadora que esconde os vaivéns da política, pois é nas disputas palacianas e em seus resultados concretos que estes projetos se materializam. É nas reuniões do COPOM, é nas mudanças dos marcos legais, é nas canetadas presidenciais, é em tudo isso que se governa, e que se materializa um projeto. Pode não parecer que o governo governa, pois a imagem dele pintada na imprensa é de uma incompetência que beira a paralisia, mas o governo governa, sim, e é de suas ações que se pode depreender o “projeto realmente existente”. Pode-se questionar, por exemplo, se há projetos alternativos ao “realmente existente”, pode-se perguntar quem os propôs e com que objetivos, mas nunca se pode dizer, frente ao “realmente existente”, que projetos para o país desapareceram. Além, se olharmos em volta, certamente há por aí muitas teses acadêmicas e programas políticos que têm “um projeto para o Brasil”.
A segunda reflexão me leva quase naturalmente à terceira. Ídolos só existem à distância. De perto, são de madeira, barro, pedra, gesso. Vemos suas imperfeições, suas falhas de execução, suas trincas, seu desgaste. Pior: ao olhar só para os ídolos, perdemos a paisagem em volta. Veja os anarquistas de 1917: seus herdeiros ideológicos estão por aí, fazendo e desfazendo. Não há um Machado de Assis? Verdade, mas de que nos serve, hoje, seu cinismo niilista? Olhando em volta, não há um Ferréz, um Itamar Vieira Assunção, um Oswaldo de Camargo? Sigamos. Não há Centros Populares de Cultura? Há bibliotecas comunitárias, há saraus, basta olhar, mas o que faz deles diferentes em tempo e lugar dos velhos CPCs? Há alguma semelhança entre o nacionalismo dos velhos CPCs e certo “periferismo” a animar as bibliotecas comunitárias e saraus? Sigamos. Não há uma Carolina Maria de Jesus? E Conceição Evaristo, onde fica? Não há um Pixinguinha? Entramos num terreno que, particularmente, me agrada. Ora, Pixinguinha é gênio que não se discute, tanto quanto seu eterno rival Radamés Gnatalli e outros seus contemporâneos como Ernesto Nazareth, Cláudio Santoro, Guerra Peixe, Chiquinha Gonzaga, Eunice Katunda, Edino Krieger, Camargo Guarnieri, Anacleto de Medeiros e Hans-Joachim Koellreutter. Essa gente boa que soube enraizar-se simultaneamente no popular e no erudito sem abrir mão de nenhum deles, ou que fez um erudito tão diferente que ainda hoje soa moderno. Ainda hoje se descobrem coisas impressionantes no acervo de arranjos de Pixinguinha. Mas não estão aí vivinhos da Silva um Raul de Souza, um Willy Corrêa de Oliveira, um Hermeto Pascoal, um Arthur Verocai, um Nelson Ayres, um Julio Medaglia, para falar de uma geração mais antiga? E que dizer dos “mais novos” como Flo Menezes, Rubens Ricciardi, Lívio Tragtenberg, Tato Taborda? Eu poderia seguir encontrando paralelos entre qualquer dos outros “gênios da raça” citados no artigo e seus congêneres atuais em cada um de seus ramos de atuação, mas creio já ter demonstrado meu ponto, que leva à pergunta, esta sim mais ampla: que condições históricas e sociais diferenciam quem produz arte hoje daqueles gênios do passado? Por que as diferenças em abrangência temática, prolificidade, estilística, forma? Por outro lado: quais as condições históricas, econômicas e sociais causadoras da “nostalgia da grandeza que nunca houve”, tão evidente neste ensaio?
No seu comentário em resposta a Nathanael, Jan, parece haver uma pista. “Getúlio e Jango tentaram transformar a estrutura produtiva do país para impulsionar o capitalismo brasileiro”, é o que você diz, e logo em seguida afirma que “a burguesia brasileira não tem apreço pelo desenvolvimentismo”. Ora, como é possível “impulsionar o capitalismo” sem que haja ao menos uma burguesia a fazê-lo? O fato é que havia parcela(s) considerável(eis) da burguesia associada ao desenvolvimentismo dos tecnoburocratas, e havia outra(s) a quem este projeto não interessava. Esta oposição dentro da própria burguesia explica muita coisa. A burguesia que explora trabalhadores expropriando-lhes seu produto para vendê-lo no mercado externo, por exemplo, tem interesses bem diferentes daquela que o faz tendo em vista o mercado interno. A burguesia agrária tem interesses bem diferentes da burguesia industrial e da burguesia comercial. E por aí vai. Sem isso, sem esse destrinçar de interesses e conflitos internos, “a burguesia” não passa de inimigo imaginário, de moinho de vento. Neste jogo de interesses, poderá haver situações em que os interesses de certa fração da burguesia parecerâo coincidir com aqueles dos trabalhadores; basta olhar agora, por exemplo, para o “namoro” de setores da esquerda com burgueses “progressistas” ao estilo de Luiza Trajano. Não porque estes setores da esquerda os arrastam, mas porque dizem e fazem o que estes setores da esquerda parecem não ter coragem ou força para dizer ou fazer.
Tudo isso, Jan, somando cada pequena coisa, me causou certo incômodo. Tanto no ensaio quanto nos comentários vocẽ passou a impressão de ser adepto da lógica de absolutos, do “oito ou oitenta”. Posso estar exagerando. Pode ser que a “nostalgia da grandeza que nunca houve” e essa aparente falta de cuidado ao tratar dos interesses das muitas frações da burguesia brasileira quanto ao desenvolvimentismo decorram da falta de espaço. Podem ser artifício retórico para reforçar um argumento num texto curto. Pode ser simplesmente um instrumento polêmico. Mas é esta a impressão que fica, infelizmente. Sem ter cuidado com a observação das sutilezas, meandros, curvas, desvios e convergências, pode-se chegar a becos sem saída. Tenhamos atenção a eles.
Caro Manolo,
Valeu pelo texto. No geral, concordo com o que escreveu. Vou pontuar algumas ideias como contribuição ao debate.
As simplificações são perigosas. Refiro-me às minhas simplificações. Estou disposto a tolerá-las até o ponto em que não prejudiquem o debate. Sim, houve e há setores da burguesia brasileira interessados no desenvolvimentismo, só que são cada vez menores e menos influentes. O que sugere que o capital é cada dia menos nacional. Talvez por isso desapareceram os “projetos para o Brasil”. Como escrevi, “por projeto para o país entendo, por exemplo, as teorizações desenvolvimentistas de um Celso Furtado, que, aliás, escreveu um livro chamado Um projeto para o Brasil.” Desconheço teorizações atuais com o mesmo nível de consistência e de influência. Sim, há um “projeto realmente existente” que se desenvolve com razoável sucesso, penso, por exemplo, na tentativa de mudar a legislação por meio de normas infralegais. Mas aqui não estamos discutindo com os gestores do capital, estamos discutindo entre pessoas que estão no campo oposto. Como você escreveu, “pode-se questionar, por exemplo, se há projetos alternativos ao realmente existente”, é uma das questões colocadas pela coluna.
Num ponto creio que discordamos, se tem gente à esquerda repetindo a “explicação uniforme da mídia empresarial para o fracasso econômico do país”, na minha opinião só reforça o título da coluna: O Brasil encolhe. Sou formado na tradição marxista. Penso a crise como queda das taxas de lucro. Explicar tal queda é questão relevante. Subiu a composição orgânica do capital? Diminuiu a mais-valia? Subiu o valor do capital variável? Se as empresas não investem é porque não conseguem taxas de lucro aceitáveis. Por quê? Está é a questão importante. Na minha opinião, a chave para entender a crise deve ser buscada na estrutura econômica da sociedade capitalista e “não na política de incentivos fiscais” do governo. A “explicação uniforme da mídia empresarial para o fracasso econômico do país” estaciona na aparência do fenômeno. Se fosse só uma fragilidade explicativa, menos mal, o problema é que a “narrativa” conscientemente ou não coloca o neoliberalismo como limite, além de esconder a lei de responsabilidade fiscal, a necessidade de gerar superávits primários, as metas de inflação. Esquecem de dizer, por exemplo, que a desindustrialização é um fenômeno que se arrasta há uns 40 anos, e que atravessou, inclusive, os governos petistas. Por quê? A explicação só pode ser buscada na estrutura econômica da sociedade capitalista.
Alguns pontos deixei como provocação, acho válidas porque possibilitam que o debate caminhe para onde não costuma ir. Se for o bom debate, como aqui, creio que vale a pena. Machado de Assis, por exemplo, você pergunta “de que nos serve, hoje, seu cinismo niilista?” Não sei se “cinismo niilista” é a melhor definição, mas acho que Machado continua sendo o maior romancista brasileiro e um dos grandes do mundo. Você escreveu sobre meu “oito ou oitenta”, pegou bem. Se for no sentido de defender com paixão o que amo, se não é excludente e destrutivo, não vejo problemas. No caso do Machado de Assis, fecho com o Carlos Fuentes (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0110200003.htm), foi um “milagre”: “quero apenas registrar meu espanto ante o fato de que, na língua do romance moderno fundado em La Mancha por Miguel de Cervantes, só tenha havido frutos chochos, vales inférteis. “La Regenta” e “Fortunata y Jacinta” devolvem a vitalidade ao romance espanhol, mas a América Espanhola ainda terá de esperar, assim como a Espanha esperara por Clarín e Galdós, por Borges e Asturias, Carpentier e Onetti. Em compensação – e esse é o milagre – o Brasil dá sua nacionalidade, sua imaginação, sua língua ao mais importante – para não dizer o único – romancista ibero-americano do século passado: Joaquim Maria Machado de Assis. O que sabia Machado que não sabiam os romancistas hispano-americanos? Por que o milagre de Machado? O milagre se sustenta num paradoxo: Machado segue, no Brasil, a lição de Cervantes, a tradição de La Mancha, que, por mais homenagens que cívica e escolarmente se tenham rendido ao “Quixote”, fora esquecida pelos romancistas hispano-americanos, do México à Argentina. ”
Ainda sobre as provocações que ajudam no debate, pesquisando a palavra Pixinguinha no buscador do Passa Palavra, há duas ocorrências: um sarau ocorrido em 2012 nos bons tempos do ECLA e esta coluna. Não consigo imaginar uma revolução sem Pixinguinha. Para usar uma expressão da moda, precisamos falar de Pixinguinha. A menção ao compositor ajudou a aparecerem outros como Radamés Gnatalli, Ernesto Nazareth, Cláudio Santoro, Guerra Peixe, Chiquinha Gonzaga, Eunice Katunda, Edino Krieger, Camargo Guarnieri, Anacleto de Medeiros e Hans-Joachim Koellreutter. Se não estou errando nas pesquisas, são nomes que praticamente não aparecem no Passa Palavra. E não é problema do coletivo Passa Palavra, muito pelo contrário, na minha opinião este é um dos melhores espaços para debate, formação, troca de ideias e divulgação das lutas da classe trabalhadora, o problema é da esquerda brasileira que anda distante do que a humanidade produziu de melhor. Neste sentido, o Brasil encolhe.
Você citou Itamar Vieira, se for quem estou pensando (fiquei em dúvida pelo Assunção) e salvo erro meu com o buscador, é a primeira referência ao Itamar no Passa Palavra. Quando li Torto Arado tive a sensação de estar diante de um clássico logo nas primeiras páginas. Foi antes do romance virar best seller. Seria legal se aparecessem textos sobre Torto Arado. Ou, quem sabe, também textos do próprio Itamar. Acho que ele toparia escrever. Poderia falar, por exemplo, sobre a reforma agrária, que é um tema meio esquecido. Se a coluna contribuiu para aparecer Torto Arado no debate, valeu.
Por fim, achei que daria a polêmica a menção ao “reacionário” Nelson Rodrigues, não foi o que aconteceu.
Caro Jan,
A queda tendêncial da taxa de lucro não necessariamente diminui a massa de mais valia, em regra, a massa de mais valia tende a crescer simultaneamente a queda da taxa de lucros. É uma aparente contradição. Em uma empresa ou economia com taxas pequenas de lucro acumula-se aceleradamente muito mais que em empresas com taxas de lucro maiores. A diferença é que empresas, ramos, economia com taxas de lucro pequenas são empresas grandes, com um capital total mais robusto e que domina mercados em larga escala, já empresa de com taxas de lucro maiores são empresas pequena que ocupam mercados menores. Em uma crise as empresa com taxas de lucro menores tende a se sair melhor que empresas com taxas de lucros maiores, inclusive, os capitalistas maiores, aqueles da taxa em queda, podem, e o fazem, para monopolizar os mercados, abaixar a taxa de lucro pra derrubar os concorrentes de capital total menor, ou seja, derrubar a concorrência que tem uma taxa maior de lucro, levando-o a falência.
A queda da taxa de lucro enquanto tendência não diminui a mais valia, pelo contrário, a massa de mais valia, a massa de lucro, o lucro propiamente dito, simultaneamente a queda da taxa de lucro tende a se estabilizar ou aumentar conforme o avanço e aperfeiçoamento da produção e da mais valia relativa(tecnologia e intensidade produtiva).
A taxa de lucro só tende a cair porque os capitalistas deslocam essa mais valia acumulada na aplicação da parte constante do capital, contratando cada vez menos trabalhadores (capital variável), a queda da taxa de lucro é resultado da comparação do aumento do capital constante em relação ao capital variável, nesse sentido tendencialmente a taxa de lucro sempre cairá e a mais valia em proporção a composição orgânica do capital capital total tbm cairá termos relativo e tbm absoluta se somarmos a mais valia a capital total, mas mesmo assim, a taxa de mais valia se mantém constante e inclusive aumentando conforme o grau de exploração do trabalho. ” A tendência progressiva da taxa geral de lucro à queda, é, portanto, apenas uma expressão, peculiar ao modo de produção capitalista, do desenvolvimento progressivo da força social do trabalho”.
Eu não entendo como a queda tendêncial da taxa de lucro pode provocar as crises, a não ser de forma indireta, a busca pelos lucros podem ocasionar a superprodução. Vc poderia explicar como isso se dá? E qual tradição marxista que interpreta a queda tendêncial como motivadora da crise?
Caro Gogol,
Valeu pelo texto. A dinâmica das taxas de lucro é questão complexa, inclusive porque é difícil conseguir dados confiáveis. De qualquer forma, deixo aqui algumas ideias para o debate.
Os marxistas explicam as crises do capital por dois caminhos: superprodução de mercadorias, queda das taxas de lucro. Entendo que, a partir de Marx, as duas explicações são possíveis. Mas a segunda é mais consistente, está nos textos em que Marx aprofundou a análise sobre o modo capitalista de produção. É a queda das taxas de lucro que provoca a superprodução de mercadorias, porque a economia para e faltam compradores. O fenômeno pode até aparecer como superprodução de mercadorias, posto que não há compradores, mais isso só ocorre porque as taxas de lucro estão queda.
Não escrevi que a crise é provocada pela queda tendencial da taxa de lucro, coloquei como pergunta. Escrevi que “penso a crise como queda das taxas de lucro. Explicar tal queda é questão relevante. Subiu a composição orgânica do capital? Diminuiu a mais-valia? Subiu o valor do capital variável?”
A sua questão é pertinente, a queda tendencial das taxas de lucro pode provocar crises?
A taxa de lucro, para Marx, é dada pela relação: mais-valia/capital constante + salários.
A queda tendencial das taxas de lucro tem a ver com o aumento do valor do capital constante, que está no denominador da equação. Aqui é necessário ser cuidadoso. Não conheço dados seguros sobre a evolução da composição orgânica do capital (capital constante/capital variável). Seria ou serão os capitalistas capazes de poupar capital? Ou seja, se o valor do capital constante não crescer mais rápido que o valor do capital variável, a queda tendencial das taxas de lucro pode não se efetivar. Para não alongar, a substituição de trabalho vivo (capital variável) por trabalho morto (capital constante) é visível na realidade, mas pode não ocorrer na equação, o que complica as coisas. Há quem afirme que a composição orgânica do capital não confirmou a previsão marxista, ver, por exemplo, Bresser Pereira (Lucro, acumulação e crise). Marx enumerou uma série de contratendências à queda tendencial das taxas de lucro. Acho, com ele, que as contratendências não prevalecem sobre a tendência. É possível que o crescimento da composição orgânica do capital ajude a explicar o atoleiro em que se meteu o modo capitalista de produção. Mas é uma questão complexa e difícil.
Uma relação importante para compreender as crises é a taxa de exploração, ou taxa de mais-valia: mais-valia/capital variável.
Aqui estamos na luta de classes, se os trabalhadores conseguem aumentos salariais, diminui a taxa de exploração e caem os lucros. Esse movimento tem a ver com as crises cíclicas. O ciclo se inverte quando a crise destrói capitais permitindo uma nova expansão. Aí aumenta o investimento, diminui o exército industrial de reserva e aumentam os salários. Até o ponto em que a queda das taxas de lucro inverte o ciclo novamente, e diminui o investimento, aumenta o exército industrial de reserva e diminuem os salários. É aqui que a crise aparecerá, no nível fenomênico, como superprodução de mercadorias, mas na essência está a queda das taxas de lucro.
Até agora não entrou na história a queda tendencial das taxas de lucro relacionada ao crescimento da composição orgânica do capital. Uma suspeita. Por que as crises cíclicas estão ocorrendo em intervalos menores? Pode ser porque estão ocorrendo numa conjuntura de elevação da composição orgânica do capital, o que aumenta a periodicidade e a intensidade das crises. Se a suspeita tiver fundamento, a queda tendencial das taxas de lucro está potencializando as crises cíclicas. Voltando à equação da taxa de lucros (mais-valia/capital constante + salários), é como se os dois componentes do denominador estivessem crescendo ao mesmo tempo, pelo menos nos ciclos ascendentes. É uma possibilidade, não sei se é uma solução.
É possível explicar a ocorrência das crises com mais intensidade e em intervalos menores por outros caminhos. Por exemplo, as crises são períodos de destruição de capital, o que rebaixa a base do processo de acumulação e permite novos ciclos expansivos, entretanto, como os governos têm atuado no sentido de evitar a quebradeira generalizada, não ocorreu a destruição de capital que possibilitaria um ciclo robusto de expansão. Se não me engano, o economista Andrew Kliman vai por esse caminho. É outra possibilidade.
Vale destacar que as duas possibilidades que citei não são excludentes, podem ocorrer ao mesmo tempo.