Por Jan Cenek
Com a pandemia da Covid-19 lembrei do romance A peste, de Albert Camus. Mas quando tentei iniciar a releitura, procurei o livro e descobri que estava emprestado. Esperei mais de um ano para reler o romance, o que foi interessante. Muito já foi dito e escrito sobre A peste e a pandemia da Covid-19. Mesmo assim, gostaria de voltar ao tema.
Camus publicou A peste em 1947. A ação ocorre na cidade de Orã, no litoral da Argélia. Ratos morrem nas ruas, calçadas e quintais. Depois a peste chega às pessoas. A cidade é isolada. A população se organiza para enfrentar a epidemia.
Há semelhanças e diferenças entre A peste e a pandemia da Covid-19. À medida que crescem as vítimas, a surpresa vai se transformando em pânico e o medo em reflexão. A cidade de Orã foi isolada: quem estava fora não podia entrar, quem estava dentro não podia sair. Famílias, amigos e amantes foram separados. Cafés e teatros não fecharam. Os personagens principais do romance são um médico, um jornalista, um funcionário público, um capitalista, um padre e um sujeito que andava com os artistas da cidade. À medida do possível, todos se unem para lutar contra a peste, que dura menos que a pandemia da Covid-19, mas é mais letal. O narrador informa que Orã tinha uma população de duzentos mil habitantes. No pior momento da epidemia, morreram 700 pessoas numa mesma semana. A população brasileira é aproximadamente mil vezes maior que a de Orã, 21.141 brasileiros perderam a vida na semana mais letal da pandemia da Covid-19. Os números indicam que, proporcionalmente, a peste matou mais em Orã do que o coronavírus no Brasil.
O narrador ressalta que a invasão brutal da doença obrigou as pessoas a agir como se não tivessem sentimentos individuais. Curiosamente, o título do romance é A peste, mas poderia ser A solidariedade ou A esperança, porque é a história da aproximação e da união dos personagens para combater o mal, o que remete à experiência de Camus na resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial.
O pensamento camusiano avançou da noção de absurdo (romance O estrangeiro, de 1942; ensaio O mito de Sísifo, também de 1942) para ideia de revolta (romance A peste, de 1947; ensaio O homem revoltado, de 1951). Inicialmente, tratava-se de julgar se valia a pena viver uma vida finita e sem sentido. Posteriormente, a partir do sim dado à existência, apesar de finita e sem sentido, tratava-se de criar uma ética. Camus forja uma espécie de ética da revolta. Era preciso viver sem se habituar com a morte, que nunca deveria ser legitimada: nem em nome de Deus, nem da revolução, nem do homem futuro. É a ideia-chave presente no romance A peste.
Um dos pontos altos do romance é o embate do padre Paneloux com o médico Rieux sobre o sofrimento das crianças. Camus retoma Dostoievski, especialmente o capítulo A revolta, do romance Os irmãos Karamázovi. O sofrimento imposto a seres inocentes, como as crianças, escandaliza os homens. Colocados diante do escândalo, os personagens reagem de formas distintas. O padre justifica o sofrimento das crianças por considerá-lo o pão amargo sem o qual as almas pereceriam de fome espiritual. O médico se recusa a amar uma criação em que crianças são torturadas. Se o médico é o homem revoltado, o padre é o homem conformado: negação absoluta x afirmação absoluta. São temas presentes nos ensaios camusianos. A opinião do médico se aproxima do que Camus discutiu no belo ensaio A recusa da salvação, que compõe o livro O homem revoltado: se o mal é necessário à criação divina, então essa criação é inaceitável.
Mas ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, nem ama duas vezes a mesma pessoa, nem lê duas vezes o mesmo livro. Ao reler A peste senti certo estranhamento. A releitura durante a pandemia da Covid-19 fez o romance parecer demasiadamente otimista. O que não significa que não deva ser lido. O estranhamento surge porque Camus explora a solidariedade que brota nos corações dos companheiros de peste. A opção do romancista é legítima esteticamente e politicamente, mas contrasta com os acontecimentos duvidosos do tempo presente.
Enquanto os personagens se organizam para combater a peste, o grupo político que comanda o Estado brasileiro age para disseminar o coronavírus. Solidariedade no romance, vileza no tempo presente. Enquanto os personagens lamentam todas as mortes, o presidente do Brasil pergunta e daí? Compaixão no romance, perversidade no tempo presente.
A imprensa noticiou que, na cidade de São Paulo, houve casos de psicólogos, biólogos e educadores físicos que, enquadrados como profissionais da saúde, usaram diplomas antigos, burlaram a regra e anteciparam a vacina contra a Covid-19, apesar de não atuarem no combate à pandemia (ver aqui). A manobra não é ilegal. Mas nem tudo que é legal é ético. O erro estava no plano de vacinação, que não exigiu comprovação de atuação na área de saúde. Mas isso não torna a questão eticamente justificável. Alguns vacinados preferirem não se identificar indica que há dilemas éticos. Houve quem argumentou que o problema real é a falta de vacinas, o que é correto. Mas isso justifica se imunizar antes de quem tem mais necessidade? Houve quem alegou ser complicado colocar a responsabilidade sobre o indivíduo, o que também é correto. Mas não significa que práticas eticamente discutíveis devam ser toleradas.
A responsabilidade pelas mortes evitáveis durante a pandemia da Covid-19 é do capital, dos governos e das políticas genocidas, que privilegiam os lucros das empresas. Não dava para esperar nada diferente dos gestores do sistema. Mas as pessoas poderiam agir como se não tivessem apenas sentimentos individuais, como no romance de Camus. Nada – nem o medo, nem a pandemia, nem a falta de vacinas, nem a presença de um genocida na presidência do país – justifica se imunizar antes de quem tem mais necessidade. É neste ponto que A peste, de Camus, é demasiadamente otimista e se afasta dos acontecimentos duvidosos do tempo presente. No romance, psicólogos, biólogos e educadores físicos usariam os conhecimentos que têm para combater a epidemia, no tempo presente alguns usaram os diplomas para burlar a regra e furar a fila da vacina.
Há uma certeza compartilhada pelo dr. Riex, pelo padre Paneloux e pelos demais personagens do romance A peste: haveria, nos homens, mais coisas a admirar do que a desprezar. É uma ideia que a pandemia da Covid-19 colocou em xeque.