Por João Bernardo
Acordando tarde para o que desde há muito se andava a fazer pelo mundo, um pequeno grupo de brasileiros decidiu destruir uma estátua — que, aliás, não destruiu.
Dessa iniciativa resultaram apenas duas coisas: algumas prisões e um grande debate na internet, em sites e sobretudo em redes sociais. Ao contrário da Velha Toupeira que Marx evocou, actuando silenciosa e subterraneamente, temos agora os Jovens Pavões, que acima de tudo procuram exibir-se e reduzem a acção a um espectáculo e o fim aos meios. À primeira vista, dir-se-ia que este é o comportamento típico de pessoas para quem a sociedade é apenas virtual, que confundem as relações de solidariedade com as redes sociais e para quem o êxito é aferido pelo número de visualizações e a base de apoio pelo número de likes.
Foram as empresas que desenvolveram este modelo e nele baseiam agora a prospecção de mercado. E as polícias, recorrendo a algoritmos do mesmo tipo, procedem à prospecção política, registando até ao ínfimo detalhe as preferências ideológicas e práticas anunciadas e exibidas por aqueles e aquelas que gostam de se classificar como militantes. No mundo de hoje, perante os jovens exibicionistas é à polícia que cabe o papel de velha toupeira.
Mas esta reflexão, embora não seja errada, é insuficiente, porque o problema existia já, e nos mesmos moldes, quando o computador era ainda uma coisa rara e a internet nem sequer um sonho era. A questão é muitíssimo mais profunda, enraíza-se nos problemas suscitados pela acção revolucionária e pela actividade clandestina. Sei do que falo, porque até ao 25 de Abril de 1974 militei em organizações clandestinas e eu próprio vivi na clandestinidade. As redes sociais ampliaram a questão, não a criaram.
Em 1972 Jean-Patrick Manchette publicou Nada, na prestigiosa colecção de romances policiais Série Noire, da editora Gallimard. O título é esse em francês, uma palavra espanhola, com o mesmo significado que a idêntica palavra portuguesa, que um grupo político adoptara como designação.
Pelos seus interesses, opções e convivências, Manchette estava próximo dos situacionistas, e nos seus romances policiais reflectiu sobre os mitos da extrema-esquerda e a dissolução das ilusões — ou das realidades fracassadas — do Maio de 68. Nada é o livro que todos os militantes deviam ler como um Aviso à Navegação, o mapa dos escolhos, o catecismo do que não se deve fazer. A procura da acção espectacular, a marginalidade tomada como contestação, a espontaneidade confundida com o amadorismo e a improvisação, quando os polícias não são amadores nem improvisam, tudo isto está em Nada, e no final uma derrota que nem sequer se eleva à tragédia, porque é uma abjecção escondida na ignorância geral. Lembro-me de quando li Nada pela primeira vez, no ano da publicação, e como vi nesse livro o espelho impiedoso de uma realidade que nos cercava por todos os lados. Depois, reli-o várias vezes, ao longo dos anos, e sempre constatando que a mesma realidade continua a cercar-nos, com outros nomes e outros adereços, mas a mesma.
Por isso, com estátua a arder ou sem estátua ardida é urgente a leitura de Nada. Ora, o francês deixou de ser uma língua universal, poucos são hoje capazes de o entender fora das fronteiras da francofonia. Para tornar o problema mais difícil, creio que o livro não está traduzido para português, embora alguém me tivesse dito que existe uma tradução em espanhol. Há, no entanto, uma solução, porque em 1974 Claude Chabrol realizou (dirigiu, dizem os brasileiros) uma versão cinematográfica de Nada. Em regra, engana-se completamente quem julga que conhece um livro vendo o filme, porque a sintaxe e o vocabulário da prosa são distintos dos do cinema. A história pode ser a mesma, mas o enredo é meramente acessório na ficção, onde o fundamental são os personagens, a forma como agem e reagem, e o ritmo da narração. O curioso neste caso é que Chabrol conseguiu verdadeiramente transpor o livro para o cinema, de modo a dar-nos o romance sem que o filme deixe, por isso, de ser um filme. Então, quem não souber francês e se não existir tradução em espanhol, procure no computador e veja o filme.
Se os problemas duradouros são os mais urgentes, é urgente ler e ver Nada.
Não sei se a reação aos textos do João Bernardo me causa mais preocupação ou divertimento.
Há umas semanas, um comentador revelou que foi expulso de um grupo de libertários de whatsapp após compartilhar ensaio de JB.
Há um ano, após publicar ensaio sobre os brasileiros e a pandemia, vi que um anarquista de são paulo, dessas subcelebridades de twitter, deu piti nessa rede social – inclusive com uso de palavras de baixo calão.
Parece que muitos camaradas brasileiros não sabem expor educadamente sua discordância; muitas vezes há um dedo em riste e um tom de voz elevado.
De todo modo, este texto causará muito ranger de dente por aí.
Já separei a pipoca pra ver o filme.
Existe, sim, uma tradução para o espanhol, publicada em 1981. Aliás, está barata em sebos. O original francês também andava baratinho até algumas semanas atrás, quando desapareceram de circulação, ao menos nos sebos que conheço. O filme do Chabrol, a meu ver, não faz jus ao livro, que me pareceu mais seco.
Precisa ler “Os Demônios” de Dostoievski e assistir “A Chinesa” de Godard. Godard chupa Dostoievski descaradamente, “A Chinesa” é quase uma adaptação de “Os Demônios”. Isso quer dizer alguma coisa? Assistam “A Chinesa” depois de assistir “Nada”: https://www.youtube.com/watch?v=Ts7HBWQXWfA
De Paolo e Vittorio Taviani tem o interessante ” San Michele aveva un gallo” que explora questões parecidas.
TESTEMUNHA OCULAR E AUDITIVA
Veterano combatente na guerra de classes, hoje revolucionário proletário aposentado, assinala: “Conheci um grupo designado por N.A.D.A. (Núcleos de Ação Direta Autônoma), nos anos 1980. Seus militantes não eram [pós]situacionistas, pelo que sei…”
https://book4you.org/dl/16679369/64156f Nada em espanhol