Por Maria Mercedes Salgado
Em homenagem aos cerca de 140 presos políticos da Nicarágua, entre eles, os comandantes guerrilheiros Dora María Téllez, Hugo Torres e o ex vice-chanceler do governo da Revolução Popular Sandinista, Víctor Hugo Tinoco. Lideranças na luta pela derrubada da ditadura somozista em 1979, deram continuidade às suas trajetórias militantes pela democracia, pelos direitos humanos e pela justiça e amargam hoje cárcere e isolamento provocado pela ditadura de Daniel Ortega, antigo companheiro de luta da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), hoje presidente da Nicarágua tentando seu quarto mandato.
“Éramos jovens e carregávamos uma mochila cheia de ideais, entre eles, o ideal de justiça, o mais poderoso de todos. Sabíamos que podíamos morrer na luta, porém, outros retomariam nossas bandeiras. Isso dava um sentimento de transcendência, perenidade, eternidade, convicção de que nossas vidas não terminariam em vão. Se não fosse porque os ativistas que nos antecederam tornaram carne e sangue um pensamento, dispostos a se doar, eles não chegariam a ter essa força capaz de arrastar, atrás deles, milhares e milhões de homens e mulheres”. (Hugo Torres, Rumo Norte. História de um sobrevivente, 2003).
A FSLN e a Revolução Popular Sandinista (1979-1990)
Em 19 de julho de 1979, rios de jovens chegavam a Manágua, na Nicarágua, vestidos com uniformes militares, maltrapilhos, levantando seus fuzis em sinal de vitória, e contentes de ter participado em um evento daquela importância. Depositavam muitas esperanças no futuro. Eram ativistas do conflito armado que ficou conhecido na Nicarágua como a Guerra de Libertação, e resultou na morte de cerca de 35 mil nicaraguenses, deixando outras 110 mil pessoas feridas e 40 mil crianças órfãs.
A FSLN foi protagonista de uma das revoluções ocorridas na segunda metade do século XX, na América Latina, a Revolução Popular Sandinista. Derrubou uma das ditaduras mais longas e sangrentas do continente, a dinastia da família Somoza, que governou a Nicarágua durante 43 anos (1936-1979).
Movimento revolucionário de origem marxista-leninista, tinha conseguido recrutar, ao longo dos anos setenta, ativistas das mais diversas tradições, desde cristãos da Teologia da Libertação até setores da burguesia que faziam frente a Somoza, alguns abertamente antimarxistas, o que não era comum acontecer nos movimentos revolucionários da época. Parte das elites humilhadas por Somoza se uniu à FSLN, e nas negociações para constituir o futuro governo que substituiria o somozista, criaram a Junta de Governo de Reconstrução Nacional (JGRN) com dois representantes das elites e corporações de empresários e três da FSLN.
Sendo assim, a FSLN tentou rapidamente tomar o poder de fato, e depois de um ano, a maioria dos cargos chave do Executivo estavam nas mãos de sandinistas. A composição do Conselho de Estado, substituto do poder legislativo somozista, também tinha uma confortável maioria sandinista.
O sistema político sandinista durante a revolução foi caracterizado por uma fusão entre o Estado e o partido. A FSLN, como os partidos marxista-leninistas da época, se considerava “a vanguarda” do processo revolucionário. Tinha uma estrutura formada por um Diretório Nacional (DN) que tomava as decisões, um grupo de nove comandantes da Revolução surgidos da união das três tendências em que tinha se dividido a FSLN antes do triunfo da revolução; um número pequeno de militantes, e ao seu redor, um conjunto de organizações como sindicatos e associações vinculadas organicamente ao partido. Essa estrutura e a guerra da contrarrevolução empurram a FSLN a uma orientação vertical e centralista.
Com efeito, não foi possível reconstruir o país em paz. O governo republicano de Ronald Reagan resolveu financiar uma “guerra de baixa intensidade” com ações econômicas, políticas, diplomáticas e militares para tentar derrubar o governo sandinista, ao mesmo tempo que financiava os governos militares da região centro-americana contra as guerrilhas que ambicionavam derrubá-los.
A altíssima intensidade para a Nicarágua dessa “guerra de baixa intensidade” está refletida nos indicadores sobre as vítimas humanas e prejuízos econômicos. Foram 61.884 vítimas de guerra, isto é, 1,72% da população nicaraguense de 3,6 milhões de habitantes. O número de mortos se elevou a 30.865 que representa 0,86% da população.
Os danos materiais e danos à produção, devido à guerra, somaram mais de US$17 bilhões de dólares. O cálculo dessa quantia acompanhou a demanda judicial que o governo da Nicarágua abriu contra o governo dos Estados Unidos no Tribunal Internacional de Justiça de Haia por violação do direito internacional. A sentença do Tribunal favoreceu a Nicarágua, mas o governo dos Estados Unidos não reconheceu a decisão.
Para a Nicarágua, o custo de manter a defesa do território foi uma crescente deterioração da economia. Um indicador econômico importante é a crescente taxa de inflação: de 33% em 1984 passou a cerca de 1.200% em 1987. Outro dado é a diminuição das exportações; em 1984, eram 385 milhões de dólares; e em 1987, apenas 260 milhões. Como resultado da crise, o declínio na produção e outros fatores, estima-se que 50% da população economicamente ativa foi engrossar o setor informal da economia.
O período revolucionário desatou muitas energias solidárias e o governo da FSLN impulsionou o exercício da cidadania. Receberam registro legal 138 associações nicaraguenses e chegaram ao país 180 organizações internacionais que apoiavam a Revolução Popular Sandinista e se engajaram em projetos socioeconômicos para fazer frente ao bloqueio comercial dos Estados Unidos. A revolução marcou uma diferença abissal com o período da ditadura somozista quando as poucas organizações da sociedade civil tiveram que abrir caminho lutando pelos direitos cívicos básicos e a mudança de um regime autoritário para um regime democrático. Assim, o ativismo nasceu de cima, patrocinado pela FSLN no poder, e seguiu as diretrizes do partido.
Com o controle efetivo do poder, a FSLN se resistiu no início a convocar eleições. No entanto, em 1984, mudou de opinião e convocou os comícios, depois de reformar a lei de partidos de 1982, extremamente restritiva.
A FSLN lançou como candidato a presidente um dos nove membros do Diretório Nacional (DN), o comandante da Revolução Daniel Ortega, e para vice-presidente, o escritor Sergio Ramírez. Os resultados das eleições confirmaram a preferência desse partido que alcançou três quartos dos eleitores, tanto para o Executivo como para o Legislativo. Assim, os sandinistas institucionalizaram a revolução tomando emprestada uma boa parte do formato liberal-democrático e outorgando ao presidente da República amplos poderes, muito mais do que ao resto de membros do DN.
A crítica situação política, econômica e militar na Nicarágua e na América Central, notadamente em El Salvador e na Guatemala, só acabaram com a implementação dos acordos de Esquipulas II, firmados pelos cinco presidentes centro-americanos em agosto de 1987. Seu objetivo era que as forças sociais, regionais ou extrarregionais que lutavam na América Central deixassem as armas e tentassem por meios políticos obter o que buscavam através de mecanismos militares. Em troca, os governos se comprometiam a expandir seus espaços políticos internos para promover uma gestão democrática.
Assim, convocadas eleições antecipadas em fevereiro de 1990, Daniel Ortega e Sergio Ramírez concorreram à reeleição. Contra o prognóstico de a imensa maioria dos institutos de pesquisas de opinião, a União Nacional Opositora (UNO), coalisão de 13 partidos oposição, obteve 54% dos votos, 13 pontos à mais que a FSLN.
O resultado das eleições de 1990 foi inesperado para os ganhadores e perdedores. Entre os fatores que contribuíram para a derrota, há certamente fatores externos como a queda do socialismo na Europa oriental e a ascensão vertiginosa da hegemonia política e militar norte-americana a nível mundial. Entre os fatores internos mais importantes a guerra contrarrevolucionaria, a inviabilidade da economia nicaraguense e a deterioração da base política da FSLN.
Estudiosos da Revolução Popular Sandinista consideram que apesar dos sandinistas terem sido rechaçados nas eleições de 1990, suas contribuições para a história da democracia na Nicarágua são sintetizadas em quatro pontos: a derrubada da ditadura somozista de mais de quatro décadas; a implementação de importantes reformas sociais e econômicas como a reforma agrária, políticas públicas relativas à moradia, saúde e educação que produziram uma situação de maior justiça e igualdade; a criação de um marco institucional, a Constituição de 1987; e ter propiciado a organização social dos cidadãos comuns que visibilizaram seus direitos e espaços no âmbito político.
A FSLN governando de baixo (1990-2006)
No discurso em que reconheceu o triunfo de Violeta Chamorro, Daniel Ortega pronunciou algumas palavras que se tornariam famosas na Nicarágua: “Nós não nascemos no topo, nascemos embaixo e vamos governar de baixo. Agora que existe um poder popular, estamos em condições muito melhores para, em pouco tempo, voltar a governar este país de cima”.
Depois de a FSLN perder as eleições em 1990 e passar à oposição, as três administrações que seguiram aderiram a programas econômicos neoliberais. A administração Chamorro tinha o objetivo de realizar uma tripla transição: de uma revolução a uma democracia mínima; de um poder estatizante com a aspiração de fazer profundas mudanças sociais e econômicas a um estado liberal; e de uma sociedade altamente polarizada a uma sociedade unida. Conseguiu em parte seus objetivos, os dois primeiros com maior sucesso.
De 1990 a 2006, a política nicaraguense se caracterizou por uma polarização entre sandinistas e antissandinistas. Nas principais agrupações políticas surgiram duas tendências. A primeira reconhecia a FSLN como uma força política significativa que não poderia ser eliminada, sob pena de criar um ciclo de violência e instabilidade. A segunda compreendia o triunfo eleitoral como uma espécie de licença para utilizar os poderes do Estado contra seus antagonistas e extirpá-los do país.
Duas tendências também surgiram do lado dos sandinistas. A primeira, conhecida como “renovadora” estava representada pelos membros da FSLN que ocupavam cargos institucionais e de representação e que defendia a tese de que o partido devia dialogar com outras forças políticas para consolidar o incipiente Estado de Direito. Na liderança, o ex-vice-presidente Sergio Ramírez e a ex-ministra de Saúde Dora María Téllez, ambos líderes do grupo parlamentar da FSLN. A opção para eles era a criação de uma força política pluriclassista que procurasse um amplo consenso social.
A segunda tendência liderada por Daniel Ortega, que se autodenominou Esquerda Democrática (ID), detinha o controle do aparato partidário e das bases sandinistas organizadas. Propunha desenvolver uma oposição ferrenha ao novo governo em defesa dos pobres, mantendo a vocação revolucionária e de vanguarda da FSLN, e fortalecer a autoridade do líder do partido. Em 1995, Daniel Ortega e seus seguidores purgaram do partido os setores reformistas e pragmáticos. A divisão foi consumada e os punidos fundaram o Movimento Renovador Sandinista (MRS).
O discurso da defesa dos pobres não se coaduna com as inconsistências da atuação da FSLN na década de 1990. Por um lado, se somava às campanhas de protestos nas ruas apoiando a mobilização massiva e desempenhava uma atividade opositora frontal contra as políticas e iniciativas da presidenta da República na Assembleia Nacional. De outro, esfriava os protestos através das negociações com o Executivo em troca de quotas de poder e da capacidade de mudar normas. Essa estratégia de “cerco e negociação”, levada adiante principalmente por Daniel Ortega, funcionou com Violeta Chamorro que não tinha maioria na Assembleia Nacional.
Isso mudou durante a administração de Arnoldo Alemán (1996-2001) do Partido Liberal Constitucionalista (PLC), pós-somozista, caracterizada por um desempenho clientelista, corrupto e caudilhista. Ortega e Alemán selaram um acordo (conhecido como “O Pacto”) em janeiro de 2000 de não agressão e convergência de interesses. Ambos os caudilhos precisavam sair impunes das graves acusações que tinham, o primeiro de abuso sexual à filha adotiva, o segundo de corrupção. Os elementos fundamentais d’O Pacto foram o controle bipartidário das três instituições-chave do Estado (Controladoria Geral da República, Corte Suprema de Justiça e Conselho Supremo Eleitoral); a redução do espaço de representação política fortalecendo os dois grandes partidos, a FSLN e o PLC, e uma reforma da Lei Eleitoral que mudou os critérios para ganhar a Presidência da República. Assim, os votos necessários diminuíram de 45% a 40% sem precisar de um segundo turno, e a 35% no caso que a diferença entre o primeiro e segundo colocado fosse de 5%, percentagens que se ajustavam ao eleitorado cativo de Ortega como mostravam os resultados das últimas eleições em que ele foi candidato (1990 e 1996).
O pacto de repartição de quotas de poder político e econômico, do retrocesso institucional e democrático vinha se cozinhando desde 1997. Líderes sandinistas que deixaram a FSLN nessa ocasião destacam que uma das consequências do pacto foi a desmobilização popular. A segunda, a formação dos “empresários sandinistas”, altos dirigentes e quadros da FSLN, caracterizados pela sua voracidade para apropriar-se do que a revolução entregou às cooperativas, camponeses e operários agrícolas.
Durante a administração de Enrique Bolaños (2002-2006), Ortega negociou da forma mais conveniente para ele com as duas facções do liberalismo que se enfrentaram, a de Bolaños e a de Alemán. A divisão entre os seguidores dos dois se estendeu aos liberais que ocupavam a cúpula das instituições do Estado, passando a ser a FSLN o partido que controlava o resto das instituições públicas e a Assembleia Nacional. Assim, membros afins da FSLN controlaram a presidência do Conselho Supremo Eleitoral e a Corte Suprema de Justiça.
A FSLN sob a direção de Ortega conseguiu um triunfo duplo. Dividir o antissandinismo em duas opções partidárias, o PLC e a Aliança Liberal Nicaraguense (ALN), e entrar no jogo eleitoral ganhando com maioria simples. A estratégia de Ortega terminou dando excelentes resultados políticos, porém, o custo para o partido foi a sua desinstitucionalização. Nesse período as regras internas da FSLN mudaram, concentrando-se na figura do Secretário Geral e de seu entorno cada vez mais personalizado onde as relações de parentesco foram ganhando relevância; a burocracia e a elite partidária como deputados, prefeitos e altos funcionários das instituições públicas viraram um amontoado de pessoas submissas que obedecem ao líder sob risco de perder suas carreiras partidárias.
O retorno do pós-sandinismo (2007-2018)
A FSLN se apresentou às eleições de 2006 com uma campanha desenhada por Rosario Murillo, esposa de Ortega. O candidato a vice era o banqueiro liberal Jaime Morales Carazo, ex-somozista, veterano chefe da “contra” mercenária. Com os recursos provenientes dos grupos econômicos próximos da FSLN e dos governos locais sandinistas, a campanha evitou os antigos símbolos do sandinismo, a bandeira rubro-negra e as siglas da FSLN. Ortega e Morales concorreram com uma propaganda de fundo cor de rosa e azul celeste, uma fórmula chamada “Grande Aliança Nicarágua Triunfa”, e o slogan “amor, reconciliação e perdão”.
Uma vez que chegou à presidência com 38% dos votos válidos (contra 28,3% do PLC e 27% da ALN), Ortega abandonou o discurso conciliador da campanha e começou a governar de forma discricionária, independentemente de sua posição minoritária nas eleições. Desenhou um gabinete de baixo perfil para não ter concorrentes com projeção política, nenhum dos quadros relevantes dos anos oitenta que ainda pertenciam à FSLN foi nomeado para um cargo importante. Outorgou a sua esposa, Rosario Murillo, funções de primeiro-ministro no Conselho de Comunicação e Cidadania, com a finalidade de promover a democracia direta e a formação cidadã, desenhar projetos e programas de governo e administrar a comunicação do poder Executivo. Sob a direção desse Conselho foram criados os Conselhos de Poder Cidadão (CPC) e os Gabinetes de Poder Cidadão (GPC) em cada bairro e comunidade. Com o pretexto de ampliar a democracia direta, esse Conselho não é outra coisa que uma instancia de vigilância e controle social organizado territorialmente.
Nas instituições públicas foram formados os Comitês de Liderança Sandinista, seções da FSLN e da Juventude Sandinista com o objetivo de assegurar a participação dos funcionários públicos nas atividades do partido e do governo como manifestações, concentrações e atos políticos.
O governo Ortega também reorganizou as forças de coerção e repressão na sua volta ao poder. A Polícia Nacional, o Ministério da Justiça e a Direção de Migração e Estrangeiros, e mais tarde, os grupos paramilitares passaram a integrar o corpo repressivo.
Em 2007, Ortega iniciou a cooptação da Polícia Nacional que se cristalizou com a aprovação de uma nova lei de 2014. O Ministério da Justiça deixou a função de supervisão e controle da Polícia Nacional que passou a ser atribuição direta do presidente da República, podendo prorrogar os mandatos dos diretores alinhados as suas políticas, se assim o dispuser. Ainda apareceram, entre 2007 e 2008, os chamados grupos de choque ou “turbas” que o governo reunia e pagava para reprimir. Tratava-se de jovens membros de gangues reinseridos na sociedade pela polícia e militantes fanáticos da Juventude Sandinista que, fazendo uso de capuzes, pistolas e paus, atacam os manifestantes opositores, jornalistas da imprensa alternativa e cinegrafistas, roubando celulares e equipamentos.
Dessa forma, com a preparação do arcabouço legal de vigilância e controle da população, a cooptação da Polícia Nacional e a formação de grupos de choque, Ortega atacou as Organizações da Sociedade Civil (OSC). Desde o início do mandato a política foi de repressão e asfixia das OSC, mídia e jornalistas independentes, políticos da oposição e cidadãos que aderiam a protestos. Ora o faziam utilizando a via administrativa e acusando-as de lavagem de dinheiro, ora desprestigiando-as na mídia oficial, da qual a família Ortega/Murillo se apoderou.
Os protestos sociais de 2007 a 2018 estão relacionados com disputas eleitorais, territoriais e por direitos. Os primeiros incluem questionamentos dos resultados das eleições pelos partidos e organizações de oposição desde as eleições municipais de 2008; reclamação dos militantes da FSLN junto à direção do partido para respeitar a seleção de candidatos das bases; demanda de restituição dos cargos de prefeitos eleitos da FSLN defenestrados pela cúpula do partido; cassação da legenda do partido Movimento Renovador Sandinista (MRS) em 2008, no qual se agruparam os antigos companheiros de Ortega. A esses protestos se juntou a abstenção da população nas eleições presidenciais que alcançou mais de 50% do eleitorado em 2016.
Os protagonistas das disputas territoriais são camponeses e comunidades indígenas despojados ou ameaçados de serem despojados de suas terras, recursos naturais e renda, seja pelas concessões a empresas estrangeiras de mineração, seja pela construção do Canal Interoceânico. Para um governo que sempre pregou a defesa da soberania nacional, fazer uma concessão de uma parte do território nacional a uma obscura empresa chinesa pelo período de 100 anos para a construção de um Canal Interoceânico, sem debate nacional nem transparência, é no mínimo escandaloso. Tem destaque o movimento camponês que se organizou no Conselho Nacional para a Defesa da Terra, o Lago e a Soberania (2013-2018) pela amplitude geográfica e número de mobilizações.
No tema dos direitos à vida, à seguridade social e ao meio ambiente, movimentos feministas travaram uma luta árdua contra a violência e abuso sexual das mulheres, e contra a nova lei do aborto que proíbe e pune quem pratica o aborto terapêutico, aprovado com o apoio da bancada da FSLN em 2006. De um líder de um movimento revolucionário que prometia igualdade entre os sexos, poucos dos adeptos originais do sandinismo teriam imaginado ver Ortega e a FSLN em aliança com a Igreja Católica e as igrejas evangélicas na posição de grandes defensores públicos da lei nicaraguense de aborto, uma das mais restritivas do mundo.
Da mesma forma, apoiadores da Revolução Popular Sandinista observaram com surpresa a repressão do governo ao movimento #OcupaINSS, associação de idosos que ocupou as instalações do Instituto Nicaraguense da Seguridade Social demandando reaver as suas aposentadorias reduzidas, retiradas dos aposentados pelo governo de Violeta Chamorro. Não só as “turbas” sandinistas e a polícia reprimiram fisicamente os idosos e não permitiram o apoio com água e alimentos, como aproveitaram para roubar pertences, incluindo automóveis, dos jovens que apoiavam o movimento.
Organizações de defensores dos direitos humanos como o Centro Nicaraguense dos Direitos Humanos (CENIDH) vêm denunciando as arbitrariedades do governo da FSLN. Esse Centro já tinha acolhido em 1998 a denúncia da filha adotiva de Ortega, Zoilamerica Narváez, de abuso sexual desde os 11 anos. A mãe de Zoilamérica, Rosario Murillo, esposa de Ortega, foi a maior defensora do marido e perseguiu a filha até ela se exilar na Costa Rica.
De 2007 a 2018, ativistas das OSC e das organizações e partidos políticos, camponeses, estudantes, mulheres, ambientalistas foram reprimidos pela polícia e grupos de choque. Isso resultou em prisões, pessoas feridas, mas, sem letalidade nas cidades. Não foi assim no campo, onde vinham ocorrendo assassinatos de camponeses pelo Exército denunciados pelos familiares, ainda não esclarecidos pela polícia, e ao que tudo indica se trata de assassinatos políticos.
A escalada repressiva do pós-sandinismo aos protestos sociais (2018-2021)
A estudante Madeleine Caracas, 22, ativista, feminista, exilada, resume os motivos dos protestos sociais iniciados pelos estudantes em 18 de abril de 2018: “Acredito que o ocorrido foi um acúmulo, motivado pela falta de participação cidadã e a arbitrariedade do governo de Daniel Ortega desde que voltou ao poder em 2007. O descontentamento social se agravou nestes onze anos, com o fechamento dos espaços de participação e a quebra institucional, somada à falta de oportunidades, principalmente para os jovens. Tudo isso foi o terreno fértil para o que aconteceu em abril, que tinha que acontecer em algum momento”.
Em abril de 2018, estudantes iniciaram manifestações de rua demandando o fim do incêndio da reserva florestal #IndioMaiz, a mais importante da América Central. Uma semana mais tarde, as mobilizações #SOSINSS eram contra as reformas à previdência social, que prejudicavam aposentados, pensionistas e empresários. A violência com que foram reprimidas gerou uma escalada de protestos que se estendeu a várias cidades do país e os manifestantes passaram a demandar a saída de Ortega e Murillo do governo, comparando-o ao governo do último Somoza.
A repressão do governo da FSLN provocou uma crise de direitos humanos cujas consequências se estendem até hoje. Os relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) dão conta que foram assassinadas 328 pessoas, entre elas, adolescentes e crianças; cerca de duas mil resultaram feridas; os presos políticos chegaram a 770 e mais de 100 mil abandonaram o país em busca de segurança. O relatório final do Grupo Interdisciplinario de Expertos Independentes (GIEI), criado pela CIDH para investigar os crimes e sugerir soluções, concluiu que o Estado nicaraguense cometeu delitos de lesa humanidade pelos quais as autoridades poderão ser julgadas e condenadas.
Acordos firmados entre o governo Ortega e a oposição, tendo como mediadores a OEA e o Vaticano, nunca foram cumpridos por Ortega. Nas manifestações públicas, a população demandava a antecipação das eleições de 2021 como forma de enfrentar a crise nicaraguense, porém, Ortega nunca aceitou. Existia a expectativa de que se fossem celebradas eleições limpas, livres, justas, competitivas e supervisionadas em novembro de 2021, no entanto, Ortega não realizou as reformas eleitorais com as que se comprometeu e acabou enterrando o pleito eleitoral entre junho e julho desse ano sequestrando uma trintena de pré-candidatos à presidência, lideranças políticas de diferentes agrupações e partidos e cassando a legenda dos dois únicos partidos de oposição.
Resumindo as palavras da comandante Dora María Téllez que assim expressava as causas da regressão da Frente Sandinista numa entrevista à revista Envío em 2013: O primeiro processo que levou à regressão da Frente Sandinista foi a concentração de poder, primeiro na figura de Ortega, agora na de sua família. O segundo é a pragmatização da política, sempre tem que negociar, mas sobre questões substantivas que afetam as pessoas. Nas mãos da família Ortega-Murillo, a Frente Sandinista ficou órfã do programa político. A concentração de poder nos Ortega e a hiperpragmatização da política significou liquidar a tradição de liderança coletiva que a Frente Sandinista tinha e a orientação política de ser uma força com a aspiração de transformar a realidade. O terceiro processo é o dinheiro. Com o pacto também começou a multiplicação dos cargos de chefia, a distribuição de cargos e vantagens. Um quarto processo é que Daniel Ortega e seu grupo chegaram à conclusão de que na Nicarágua a política, para ter sucesso, tinha que ser como a política que sempre foi feita. E como sempre foi feita? Com pactos, com clientelismo, com regalias, com corrupção e com impunidade.
Maria Mercedes Salgado é ex-diplomata do governo da Revolução Popular Sandinista no Brasil e doutoranda de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
As imagens que ilustram este artigo são, na ordem em que estão inseridas, de Cesar Perez, Maynor Valenzuela, Carlos Herrera, Rafael Trobat e Stringer.
E agora ganharam pela quarta vez consecutiva!
OK, as ruas estavam cheias de milícias sandinistas armadas circulando em motos e caminhonetes, e jornalistas foram agredidos e presos, mas parece que o histórico e generoso casal está mesmo com tudo. Foram poucos votos, seções eleitorais vazias, mas não chegou a ser um ensaio sobre a lucidez.