Por Isadora de Andrade Guerreiro

No mês passado eu indiquei para ser publicado na minha coluna um microconto de Ítalo Calvino (“As cidades e os olhos – I”) que fala sobre a cidade imaginária Valdrada. Construída à beira de um lago, tudo o que acontece na cidade é refletido no espelho de suas águas. Nenhum ato é realizado na vida real sem que se transforme imediatamente em imagem, fazendo com que seus habitantes sejam impedidos de “abandonar-se ao acaso e ao esquecimento mesmo que por um único instante”. Calvino chama a atenção, ao final do conto, que se engana quem acha que a imagem refletida é igual ao ato real: na verdade, como espelho, a imagem é exatamente o inverso da realidade. Além disso, “às vezes o espelho aumenta o valor das coisas, às vezes anula”, ou seja, sua existência altera, por inversão, o próprio andamento da realidade, que passa a se dar não de acordo com sua própria necessidade, mas de acordo com a métrica do espelho.

Escrito em 1972, este conto pode facilmente ser relacionado com o conceito de espetáculo de Guy Debord [1]. Para além da imagem como forma estética específica, Debord chamava a atenção para a transformação das relações sociais em mercadorias, “empacotadas” em padrões e métricas vendáveis, definidas – e controladas – “ponto por ponto” (como diz Calvino), como imagens. Com a lógica digital, a internet e as redes sociais, estas questões certamente ganham dimensões ainda mais intensas, com profundas implicações para as lutas [2]. Quero aqui colocar um elemento a mais nessa relação das lutas com a mercantilização das relações sociais espetacularizadas por meios digitais: a capacidade de captura de fluxos financeiros a partir da possibilidade de quantificar o impacto daquilo que se faz pelo “social”.

Lutas e o “social” não deveriam ser a mesma coisa, mas o deslizamento está em toda parte – principalmente depois da expansão da cartilha lulista – e é necessária atenção redobrada para os lobos em pele de carneiro (os famosos “pelegos”). Pois a nova onda que as finanças estão surfando tem a ver com ganhos especulativos em torno de fluxos de rendimentos gerados por ações sociais – para além das ONGs da década de 1990. A novidade neste meio é que a quantificação do impacto destas ações gera um diferencial dentro da concorrência dos investimentos globais, atraindo atenção seja de capitais que precisam de selos de certificação (para seus outros investimentos nem tão “do bem” assim), seja de governos em busca de Parcerias Público-Privadas (PPP).

O meio digital, principalmente os aplicativos, tornaram essa possibilidade viável: eles propiciam, ao digitalizar (“empacotar”) as relações que o utilizam como meio, especificar, definir, quantificar, monitorar as consequências, controlar as formas de realização e, além disso, concentrar uma enorme dispersão de agentes – usuários, consumidores, provedores, trabalhadores, capitais, proprietários, intermediários financeiros, acionistas etc. – dando escala e visibilidade às ações locais. Tais controle e quantificação obedecem a uma métrica financeira que, de maneira inversa – como o espelho de Calvino – determinam também as relações sociais correlatas, que se amoldam a necessidades estranhas a sua finalidade imediata. Assim, a velocidade do motoboy, a quantidade de cestas básicas entregues, o valor do aluguel da moradia, a qualidade da leitura de uma criança sendo alfabetizada – nada disso tem a ver com a necessidade do consumidor ou do entregador, do assistido, do morador, da criança, mas sim com a taxa de juros média do mercado internacional.

O nome do novo espelho que inverte as relações vinculadas ao “social” é Social Impact Bond (SIB), ou Título de Impacto Social. Os SIBs podem ser de duas formas: Debêntures (títulos de dívida), emitidos por alguma organização/entidade/governo que precisa captar recursos para uma questão social e promete o retorno do montante com juros de acordo com o valor do impacto social obtido; ou Certificados de Recebíveis, que envolvem a geração de uma dívida com a população atendida/financiada, ou a promessa de um determinado fluxo de recursos futuros gerados por trabalho, ou aluguel, por exemplo. Na prática, são constituídos Fundos de Investimento que têm uma carteira diversificada – desde pequenas startups “do bem” que podem dar errado, até grandes empresas – que almejam um retorno médio e que concentram uma infinidade de iniciativas que geram, no seu conjunto, um fluxo de rendimentos aos investidores (baseado na escala dessas microações).

A quantificação do impacto é fundamental, bem como as suas consequentes certificações (padronizadas internacionalmente). O padrão mais comum de métrica associada à quantificação tem como base o atendimento às ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) da ONU (ou SDG, na sigla em inglês, Sustainable Development Goals), uma lista de 17 objetivos [3] que envolvem questões sociais, ambientais, econômicas e políticas. Entre as certificações, que são inúmeras, no Brasil tem chamado a atenção a Certificação BCorp (Benefit Corporation), que envolve atenção a uma série de questões relacionadas a governança interna, relações de trabalho, relações da empresa com a sua comunidade e suas ações no meio ambiente. Ser uma “Empresa B”, de acordo com essa certificação, significa ganhar vantagens competitivas por meio do gerenciamento de seu impacto social relativo ao do mercado.

No caso das políticas públicas, esse sistema é um passo além da anterior privatização de direitos sociais – que podiam ser realizados de forma terceirizada pelo serviço de OSCIPs (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público). O Impacto Social não está preocupado em apenas atender imediatamente uma necessidade e ser pago por isso, mas em gerar métricas de desempenho que flutuam no tempo e geram “valor” (fictício, claro) a irrigar uma rede dispersa de investidores, que podem não ter nada a ver com a relação inicial que o gerou. No caso dos direitos sociais, a “falta” (de moradia, de educação, de saúde, de relações trabalhistas decentes etc.) é o campo privilegiado de expansão desses negócios, que não querem mais apenas ser pagos pelo Estado por um serviço determinado, mas sim permanecer numa relação permanente de captura de fundos públicos, no tempo, seguindo métricas flutuantes de desempenho em competição. Essa relação específica tem se dado por meio de PPPs e de CIS (Contrato de Impacto Social), nos quais jamais fica claro quanto o Estado está pagando por um serviço (educação, saúde) ou bem (como a moradia, por exemplo), pois esse pagamento se dá de maneira variável, ao longo dos anos futuros, e de acordo com expectativas financeiras. É uma forma de controle e captura de trabalho futuro, como todo capital portador de juros.

O que isso tudo tem a ver com as lutas? A lógica do Impacto Social tem articulado tanto novas formas de trabalho por aplicativo, quanto ações locais nos territórios – inclusive, as “Empresas B” se denominam um “movimento”, que demanda engajamento, bem definido e controlado. Elas se dizem provedoras de ferramentas para o engajamento – tecnologia e “facilidades” financeiras – que, na prática, capturam o fluxo de recursos, o quantificam e, de forma inversa, amoldam as ações que o geraram. As infinitas startups envolvidas nos diversos setores têm agentes locais de captação de trabalhadores, imóveis, escolas, pequenos negócios, qualquer coisa que gere um fluxo qualquer de recursos – independente da formalidade ou da qualidade, ponto fundamental, já que a quantificação é a única coisa que importa. Assim, lideranças locais são trazidas para dentro desses negócios.

Já temos entre nós muitos desses exemplos, que atravessam processos de lutas e muitas vezes são confundidos com elas. No caso dos entregadores de aplicativo, surgem plataformas “do bem” [4] (AppJusto, Autono-me), que prometem “entregar Impacto Social” aos trabalhadores que se engajem na sua tecnologia – utilizando para isso sua própria auto-organização. Na educação, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo tem um CIS em andamento. Na moradia, há aplicativos de reformas de casas precárias (Plataforma Nova Vivenda) e de aluguel popular (Alpop). Nesse campo, o governo federal também está lançando um programa de aluguel por Parceria Público-Privada que certamente encontrará as startups correlacionadas. O MST entrou no mercado de capitais com um CRA (Certificado de Recebíveis do Agronegócio), ligado a um Fundo (Finapop), emitido por uma das maiores securitizadoras do país, ligada ao Impacto Social, a Gaia Impacto (a mesma ligada à Plataforma Nova Vivenda). Cada uma dessas experiências tem especificidades, mas é importante ver o que as une dentro não apenas de uma mesma lógica, mas de um mesmo mecanismo de extração de rendimentos para a esfera financeira por meio do Impacto Social. Podem, inclusive, estar dentro de um mesmo Fundo, ou ser de um mesmo dono final [5].

Trata-se de um mercado competitivo e, portanto, as diversas forças locais nos territórios urbanos são instadas a “se posicionar”, formar grupos fechados que controlam uma série de serviços, sendo amoldados à forma da centralização dos fluxos dispersos. Dentro de relações com muito pouca formalidade, o uso de violência privada e discricionária é regra, mas suas nuances variam de território para território, sendo necessário, portanto, intermediários locais para conectar e gerir os originadores de rendimentos/fluxos. Surgem sujeitos e sujeições bem reais na intermediação do capital fictício. Sujeitos que regulam a informalidade e articulam, centralizando, uma série de agentes e organizações – do público ao privado, do formal ao informal, do legal ao ilegal. A gestão dessas nuances importa mais do que seu estatuto.

Segundo Marx, a tendência de transformação das relações de produção segue os setores de tecnologia mais avançada – onde a mais-valia relativa impera. O que estamos observando, no entanto, é que tais setores mais dinâmicos do capitalismo, que exigem maior produtividade, estão se apoiando cada vez mais na produção de valor por meio das relações mais precárias de trabalho – e de moradia, saúde, educação etc., também produtos de trabalhos precarizados. O capital financeiro tem conseguido fazer esses enlaces, produzindo e gerindo a precariedade e sua violência imediata de maneira produtiva. Parece estar nela o setor mais dinâmico do capitalismo atualmente, na medida em que os meios digitais conseguem capturá-la e centralizá-la [6].

Por um lado, isso significa que as lutas de diversos setores podem estar conectadas – do território ao trabalho, dos direitos à auto-organização. Por outro, também significa que a dinâmica interna das lutas estará também sendo pressionada, amoldada, cooptada, conformada, comparada, por fim, sua métrica – sim, ela passa a existir – será aquela dos agentes incidentes nesses setores mais avançados. Os sindicatos tinham esse papel antigamente: os “pelegos” eram aqueles que faziam avançar as forças do capital produtivo em detrimento dos trabalhadores. Agora, é a própria dinâmica competitiva do capital fictício que toma conta da lógica das lutas – com a inserção direta de agentes ligados ao terceiro setor, ao crime, ao mercado informal etc., cuja indiferenciação com a militância fica cada vez mais nebulosa. No caso aqui exposto, os agentes ligados à rede do Impacto Social fazem o papel do “pelego” de carneiro para os lobos, agora, financeiros.

Talvez seja importante começarmos a pensar, portanto, no significado da financeirização da própria luta, pois, como diz Calvino, não podemos mais nos dar ao luxo de “abandonar-se ao acaso e ao esquecimento mesmo que por um único instante”, quando nossos atos, mesmo sem intenção, estão sendo medidos e capturados “ponto por ponto” – e invertidos pelo espelho da finança.

Notas

[1] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997 [1967].

[2] Não foi por acaso que eu pensei neste conto no momento em que se discutia a ação na estátua do Borba Gato, em São Paulo. Mas esse artigo não é sobre esse tema.

[3] São eles: 1. Erradicação da pobreza; 2. Fome Zero e agricultura sustentável; 3. Saúde e bem estar; 4. Educação de qualidade; 5. Igualdade de gênero; 6. Água potável e saneamento; 7. Energia limpa e acessível; 8. Trabalho decente e crescimento econômico; 9. Indústria, inovação e infraestrutura; 10. Redução das desigualdades; 11. Cidades e comunidades sustentáveis; 12. Consumo e produção responsáveis; 13. Ação contra a mudança global do clima; 14. Vida na água; 15. Vida terrestre; 16. Paz, justiça e instituições eficazes; 17. Parcerias e meios de implementação.

[4] Eu já coloquei em texto anterior algumas questões sobre a relação entre entregadores de aplicativo e possibilidades de cooperativismo, ressaltando problemas de usar plataformas e tecnologias já prontas por empresas.

[5] Exemplo: a Naspers, gigante sul-africana que controla majoritariamente as ações da IFood por meio da subsidiária holandesa Prosus, é também controladora, junto com a norueguesa Schibsted, da plataforma de vendas OLX, que se juntou com o Grupo ZAP e se transformou na maior plataforma de imóveis do Brasil. Assim, entregadores e moradia passam a estar controladas pelo mesmo dono, com fluxos de rendimentos padronizados internacionalmente – sem relação, portanto, com as necessidades de reprodução da força de trabalho brasileira.

[6] Esse aspecto de enlace das finanças entre precarização e produtividade pode ser um elemento a mais a ser considerado na discussão empreendida aqui no Passa Palavra há poucos meses.

3 COMENTÁRIOS

  1. Muito bom…
    De ponta a ponta, passando pelos milicianos, pelo MST… Da startup pensada pelo MTST como forma de organizar (explorar politicamente) a informalidade, divulgada na revista do Leftbank (https://conteudo.leftbank.com.br/conheca-leftbank), ao Itaú e sua estratégia de captação de clientes (para endividamento) via CUFA (https://www.itau.com.br/relacoes-com-investidores/show.aspx?idMateria=GH+G9+eUsS3K3Tea+ni+Iw==&linguagem=pt).
    O debate profundo sobre esse tema faz parte daquele conjunto de “verdade(s) que ninguém quer ver”. Talvez por isso os estusiasmados comentadores do site não tenham se entusiasmado o suficiente para publicar seus sempre longos comentários em resposta. Fiquei esperando aqui para ver se vingava algum arranca rabo e nada! Afinal, é mais gostosinho mergulhar no debate sobre quem são os estúpidos medianos e quem são os estúpidos monumentais.

  2. Liv,
    Muito interessantes e contundentes os links que você mandou.

    Poderia nos contar mais sobre a relação entre o MTST e o Leftbank? Foi apenas uma reportagem ou há mais relações? Realmente, o MTST também entrou no ramo dos aplicativos organizadores da informalidade, como parte dos intermediários que falo no texto e que flutuam na indistinção. Mais do que isso, parece que tem apostado nos aplicativos para gerenciar a “luta”, com controle de cadastro e outras coisas. Importante olhar esse processo com mais atenção, entendendo suas implicações políticas.

    A CUFA também me parece um caso muito emblemático, pois inclusive a pandemia a fez crescer enormemente, em parcerias com muitas empresas que se conectam com o Impacto Social, mas não só. É a escalada do empreendedorismo em relação direta com as finanças. Precisamos fazer uma séria reflexão sobre este cenário, onde a autogestão é funcional para o capital.

    Abraço e obrigada pelas contribuições!

  3. Hoje, o “CEO” ocupou a Bolsa de Valores. Até que demorou um tanto, pois o MST captarCauea 17 milhões de reais, no mês passado.

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