Por João Bernardo
A primeira parte deste artigo pode ser lida aqui.
Seja pela voz de uma mulher ou de um homem, os fados são variações sobre o tema da infelicidade, e nenhuma infelicidade pode ser maior do que desejar a morte sem ver a amada, porque «partir e te ver / É duas vezes morrer / De alma e de corpo inteiro». Neste poema de António Calém a morte, a distância e a tristeza vão ainda mais além, a ponto de a solidão aparecer como o derradeiro anseio.
Um dia, quando isso for
Deixar o teu corpo em flor
E se aproximar o fim
Queria partir sem te ver
Sentir o mundo morrer
Sozinho dentro de mim.
Depois, em vez de esquecer-te
Poder em sonhos rever-te
Lá longe na solidão
Rever-te sozinho assim
Ver-te só dentro de mim
Dentro do meu coração.
É que não posso partir
Sem me partir dos teus olhos
Antes do adeus derradeiro.
É que partir e te ver
É duas vezes morrer
De alma e de corpo inteiro.
João Ferreira Rosa canta Despedida, com letra de António Calém,
sobre a música da Marcha de Alfredo Marceneiro.
Nas guitarras estão José Pracana e Fontes Rocha
e nas violas Francisco Peres e José Carlos da Maia.
Quando termina de cantar, reconhecemo-lo já da primeira parte deste artigo, é Alfredo Marceneiro que João Ferreira Rosa vai saudar entre os aplausos gerais — Marceneiro, o grande mestre de todo o fado masculino. Na vertente feminina do fado, Teresa Tarouca, entre o devaneio e a realidade da letra de Nuno Lorena, tece na saudade, no silêncio e na sombra as tristezas do fado, de todos os fados.
A saudade meu amor
É o martírio maior
Da minha vida em pedaços
Desde a tarde desse dia
Em que ao longe se perdia
P’ra sempre o som dos teus passos.
Saudades fazem lembrar
Silêncios do teu olhar
Segredos da tua voz
E essa antiga melodia
Que o vento na ramaria
Murmurava só p’ra nós.
Lembras-te daquela vez
Quando eu cantava a teus pés
Trovas que não tinham fim
Quando o luar prateava
E quando a noite orvalhava
As rosas desse jardim?
Jardim distante e deserto
Sinto tão longe e tão perto
O passado que te ensombra.
Devaneio e realidade
Silêncio, sombra, saudade
Saudade, silêncio e sombra.
Teresa Tarouca canta Saudade, silêncio e sombra, com letra de Nuno Lorena,
sobre a música do Fado Primavera, de Pedro Rodrigues.
Ignoro quem está na guitarra e na viola.
Teresa Tarouca é um exemplo da fidalguia fadista de que falei na primeira parte deste artigo, tal como o são o autor da letra, Nuno Lorena, e muitos outros fadistas, como Vicente da Câmara, Maria Teresa de Noronha, Hermano da Câmara ou Nuno da Câmara Pereira e mais ainda, entre quem se tecem inevitavelmente relações familiares, próximas ou distantes.
Entretanto, na outra vertente social do fado, na plebe do porto e das vielas, difundira-se um tema radicalmente diferente. O fado político surgiu quando os anarquistas começaram a dar uma esperança — ou antes, outra ilusão — àquele meio miserável em que o fado lançara as mais fundas raízes. Era ali a única forma conhecida de expressão artística, e recorreu-se ao fado como modalidade de doutrinação política, tanto mais importante quanto o povo era então, em grande medida, analfabeto. João Salustiano Monteiro, que adoptou o nome de João Black, compôs o Fado anarquista, rude panfleto que só é fado na maneira de cantar. Note-se que a gravação de que dispomos está truncada e salta a primeira estrofe.
Ciência humanitária,
Um símbolo de altruísmo,
Tem como fim condenar
Deus, pátria e militarismo.
O mundo há-de assistir
Aos pobres livres do jugo
Espezinharem o verdugo
Da burguesia a surgir.
E depois, quando existir,
O ideal que lembrar
Esplendor e bem-estar.
Incitar o patriotismo,
A miséria,
O anarquismo tem por base condenar.
Mas o povo sossegado
Esfacela-se sob a tortura,
Quando o seu mal tinha cura:
O ideal desejado.
Viver na prisão
Nas garras dos inimigos.
Ai, ela cai no abismo
A fanática humanidade,
Pois fia-se nesta trindade
Deus, pátria e militarismo.
João Black canta Fado anarquista, a letra é dele próprio
e ignoro tudo o mais.
Mas o fascismo e Salazar acabaram com os fados anarco-sindicalistas, tal como puseram fim a muitas outras coisas. Censurado na rádio, o fado anarquista ou meramente social continuou a cantar-se nas tabernas até que, decretada a proibição de cantar nas tabernas, foi cantado à porta, na rua, para finalmente nem isso ser permitido. Mas mesmo assim o fado político não desapareceu, embora usando metáforas decorrentes dos temas dominantes do fado — a separação e a solidão. Haveria um enorme estudo a fazer sobre o uso da metáfora no Portugal fascista como arte de enganar a censura, e quanto mais atenta e sofisticada a censura se tornava, tanto mais as metáforas se desdobravam e contorciam, a tal ponto que nos cantares e nas baladas antifascistas, de José Afonso por exemplo, se gerou um verdadeiro gongorismo. Essas metáforas destinadas a iludir a vigilância das autoridades foram usadas pelo fado, que aliás era já, por si mesmo, metafórico. O poeta José Carlos Ary dos Santos, do Partido Comunista, que morreu de tanto afogar a desolação ou o desespero, mostrou em Alfama o cerne da contradição, querer negar o fado e só conhecer o fado para exprimir essa negação. Alfama é um velho bairro de Lisboa, um daqueles em que o fado mais firmemente se enraizou, e Ary dos Santos tomou-a aqui como símbolo de todo o povo trabalhador, «na cidade / Fechada em seu desencanto», que quer desviar o destino e só tem o fado para o fazer — «Alfama não cheira a fado / Mas não tem outra canção». Escolhi, para cantar, Beatriz Felizardo, uma das vozes da nova geração fadista.
Quando Lisboa anoitece
como um veleiro sem velas,
Alfama toda parece
Uma casa sem janelas
Aonde o povo arrefece.
É numa água-furtada
No espaço roubado à mágoa
Que Alfama fica fechada
Em quatro paredes de água
Quatro paredes de pranto
Quatro muros de ansiedade
Que à noite fazem o canto
Que se acende na cidade.
Fechada em seu desencanto
Alfama cheira a saudade.
Alfama não cheira a fado
Cheira a povo, a solidão
Cheira a silêncio magoado
Sabe a tristeza com pão.
Alfama não cheira a fado
Mas não tem outra canção.
Beatriz Felizardo canta Alfama, poema de José Carlos Ary dos Santos,
com música de Alain Oulman.
Na guitarra está Sandro Costa e na viola Ivan Cardoso.
Também para os que se revoltavam e eram fechados em quatro paredes de pedra não havia outra canção. A velha fortaleza de Peniche, construída à beira do oceano, foi uma das prisões políticas usadas pelo fascismo, e a pensar nela David Mourão-Ferreira escreveu o poema de um fado mais conhecido como Fado de Peniche, mas cujo título original, Abandono, remete para o verdadeiro tema do fado. E como a voz de Amália nos transmite aquela inalcançável distância!
Por teu livre pensamento
foram-te longe encerrar.
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar!
E apenas ouves o vento!
E apenas ouves o mar!
Levaram-te a meio da noite:
A treva tudo cobria!
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria!
Foi de noite, foi de noite,
E nunca mais se fez dia!
Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar!
Ouço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar.
Ao menos ouves o vento!
Ao menos ouves o mar!
Amália Rodrigues canta Abandono, poema de David Mourão-Ferreira,
com música de Alain Oulman.
Na guitarra está José Nunes e na viola Castro Mota.
E hoje, que a revolução iniciada em 25 de Abril de 1974 abriu as portas das prisões políticas e as vielas acabaram ou quase? Portugal é uma democracia, integrou-se na União Europeia, modernizaram-se as cidades e a população modernizou-se também. Já não existe a velha ralé, substituída por outra, de quem a indústria cultural de massas se apossou, depauperando-lhe os meios de expressão artística, do mesmo modo que o velho analfabetismo foi substituído pelo novo analfabetismo funcional. Apesar disto o fado permanece, já que acompanhou a modernização da infelicidade. Com o fluxo crescente da imigração brasileira vieram outros hábitos, outras expressões, uma nova culinária. Os imigrantes brasileiros disseminaram-se pelo país e afluíram a Lisboa, onde os modernos bairros suburbanos já haviam substituído os decrépitos becos e vielas. E com esses brasileiros chegaram também outras formas de perscrutar o desespero, a que alguma população recorre, para se livrar do desalento, para iludir a solidão. Pode agora ser um Pai de Santo quem usa a voz de uma imigrante e promete: «Pois eu vou mexer o destino, / Vou mudar-te a sorte». Não muda o fado, porém.
Havia a solidão da prece no olhar triste,
Como se os seus olhos fossem as portas do pranto.
Sinal da cruz que persiste,
Os dedos contra o quebranto,
E os búzios que a velha lançava
Sobre um velho manto.
À espreita está um grande amor,
Mas guarda segredo.
Vazio tens o teu coração
Na porta do medo.
Vê como os búzios caíram
Virados p’ra Norte,
Pois eu vou mexer o destino,
Vou mudar-te a sorte.
Havia um desespero intenso na sua voz,
O quarto cheirava a incenso mais uns quantos pós.
A velha agitava o lenço,
Dobrou-o, deu-lhe dois nós
E o seu Pai de Santo falou
Usando-lhe a voz.
À espreita está um grande amor,
Mas guarda segredo.
Vazio tens o teu coração
Na porta do medo.
Vê como os búzios caíram
Virados p’ra Norte,
Pois eu vou mexer o destino,
Vou mudar-te a sorte.
Ana Moura canta Os búzios, com letra e música de Jorge Fernando.
Na guitarra está Custódio Castelo, na viola Jorge Fernando
e na viola baixo Filipe Larsen.
Outros pobres modernizaram-se em classe média, pobre classe média, e herdaram a mesma tristeza, que, essa, nunca nos abandona. «No escritório, esta tarde, foi tudo p’ra me deprimir». O Sul que procuram pela auto-estrada é o Algarve, a costa meridional, onde as ondas são mansas e essa classe média gosta de passar fins-de-semana. Mas nem isto resta. «Rumo ao Sul, sem amor, devagar».
Estou na estrada de volta p’ra onde eu já não quero ir
No escritório esta tarde foi tudo p’ra me deprimir
A buzina apressada dum carro que me quer passar
Na portagem um rosto indiferente diz-me p’ra pagar.
Rumo ao Sul, sem amor, devagar
O meu sonho faz-se ao mar
Sem amor, rumo ao Sul
O meu céu perdeu o azul.
Volto as costas às luzes brilhantes da cidade mãe
Sou a sombra impiedosa do apego a quem já não se tem
Sei que ao fim desta estrada há uma casa que suponho ter
E a vontade indomável que teima em me querer perder.
Rumo ao Sul, sem amor, devagar
O meu sonho faz-se ao mar
Sem amor, rumo ao Sul
O meu céu perdeu o azul.
Rumo ao Sul, sem amor, devagar
O meu sonho faz-se ao mar
Sem amor, rumo ao Sul
O meu céu perdeu o azul.
Ana Moura canta Rumo ao Sul, com letra de Jorge Fernando
e música de Carlos Viana.
Nas guitarras estão Custódio Castelo e José Manuel Neto,
na viola Jorge Fernando e na viola baixo Filipe Larsen.
«A vontade indomável que teima em me querer perder» nasceu com a primeira fadista e acompanhou-nos até hoje, até ao próprio dia em que escrevo ou em que o leitor me lê. Qualquer pessoa pode cantar o fado, e há muito quem o faça. Mas ser fadista é outra coisa. Tal como tantas vezes ouvi entoar ao som do Fado corrido, «Por muito que se disser / o fado é canção bairrista / não é fadista quem quer / mas sim quem nasceu fadista». Ser fadista porque se nasceu fadista é ser fadado para o fado. O fado é isto, e dele não se pode fugir.
A ilustração que encabeça o texto é um exemplo de arte de rua no bairro da Alfama, em Lisboa. Ao lado da imagem, alguns versos de Estranha Forma de Vida, de Amália, que ouvimos na primeira parte deste artigo.
Recordei-me, enquanto lia os textos da série, de alguns dos versos faustinos:
“Olha o fado,
Ora é tão vingativo, ora é tão paciente
Amanhã é comedor, hoje abstinente
Mentiroso, alcoviteiro
Doce e verdadeiro.
Uma vez conquistador, outra vez vencido
Amanhã é navegante, hoje é desvalido
Sensual, aventureiro
Doido e bandoleiro.”