Por Arthur Moura*
Resumo
Este texto é uma tentativa de produzir um balanço sobre as produções cinematográficas da 202 filmes, que inicia suas atividades por volta de 2004. Por caracterizar-se como uma iniciativa autônoma/independente, faz-se necessário uma reflexão dos processos determinantes, também por estar inserido num contexto social ainda maior, relacionando-se com a produção de forma íntima e, muitas vezes, determinante. A tentativa aqui, menos que uma auto-promoção, é no sentido de uma contribuição, ainda que pequena, sobre o cinema independente, e também de superar dificuldades em prol de um pensamento crítico com relação ao fazer cinema, desde sua gênese até os processos finais.
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Comecei a produzir filmes em 2004. Até a data de hoje dirigi dezesseis filmes. Todos filmes independentes. Neste texto, vou fazer uma exposição breve do percurso desses filmes sem aprofundar em demasia, claro, para que possamos trocar experiências e visões de mundo a partir também das produções realizadas. Classificaria o cinema que faço como cinema político independente. É claro que todo cinema traz em algum nível um caráter político. No meu caso, falo mais de um cinema militante propriamente dito. Um cinema que nasce a partir de demandas sociais e que, obviamente, defende um projeto de sociedade pautado nas necessidades da classe trabalhadora enquanto classe revolucionária.
A importância da produção cinematográfica, a meu ver, tem sido cada vez maior, haja vista as contradições do campo social, sendo a arte e a comunicação elementos fundamentais para impulsionar transformações em larga escala, a nível do que tanto falamos, estrutural. Ainda que para o cinema político independente as dificuldades sejam ainda maiores, temos no cinema importante arma contra as opressões de classe. O cinema serve para a educação da população, para a formação política, para o crescimento intelectual e artístico. É, portanto, indispensável nos processos emancipatórios. Os produtores independentes dão uma gota de contribuição num oceano vastíssimo, dominado por forças completamente avessas a tais produções periféricas. Nem a quantidade, tampouco a qualidade das produções, são os critérios principais para se alçar uma obra a um patamar de realmente ser visto e usado como ferramenta de luta social. Isso se dá por muitas razões, entre elas pelo campo do cinema ser muito pautado obviamente pela indústria do entretenimento. Por outro lado, quando falamos em filmes políticos sempre nos remetemos a nomes já consagrados. Esse lugar em que se situam produções e produtores de um cinema feito com poucos recursos e distribuídos em pequena escala passa quase sempre batido, a não ser pelos pequenos círculos, que também acabam por formar pequenos nichos de mercado. Ao invés de uma quebra da lógica da competição, muitas vezes o que se tem é uma espécie de reprodução da velha lógica existente.
De tempos em tempos é preciso produzir balanços. Isso ajuda na difícil tarefa de nos situar na complexa sociedade contemporânea, nos distinguir em meio a essa totalidade na qual supostamente todos fazem parte de maneira igualitária, o povo ou os cidadãos como categoria universal como forma de apagar as evidentes contradições de classe da sociedade capitalista que se pauta por um determinado modo de produção[1] O cinema não é diferente, neste caso mais específico o cinema independente. Na verdade essa categoria pode se alargar. Esse independente pode significar muitas coisas, inclusive estar inserido no mercado ou até mesmo na indústria cultural[2]. E a questão do mercado e da indústria? Como pensar? São muitas questões, certamente. O cinema que produzimos passa por processos de alienação ou estranhamento, muitas vezes por falta de organização e condições melhores para aprimorar as criações num sentido amplo. A proposta, aqui, é pensar essas e outras questões através da nossa produção (202 filmes), seus processos e uma possível teoria crítica aliada à prática no cinema.
Primeiramente, o que entendo por “ser independente”? É uma questão a ser pensada se queremos, junto com a arte, produzir uma sociedade emancipada[3]. Vivemos sob a ditadura do capital, a força do dinheiro transforma as manifestações artísticas em produtos que geram lucros para uma determinada parcela da sociedade, ao passo que se transformam os valores e conceitos no seio da cultura, seja ela qual for. A produção independente nasce muitas vezes de lugares inesperados (nem por isso inexpressivos), e pode facilmente ser capturada e reapropriado segundo a lógica do capital em troca de algumas concessões, nunca no sentido da autonomia da classe trabalhadora ou do sujeito criador. Esse independente não funciona apartado das relações sociais, dos aparatos de poder e suas contradições, e perde todo o seu caráter de distinção se distante de uma rede que haja sustentabilidade com condições reais de existência e que vislumbre um projeto abertamente antagônico ao atual estado de coisas. Mas sabemos que as dificuldades para se chegar até aí são grandes. Por isso, pensemos sobre a produção independente que se dá a todo momento com produtores culturais, bandas, cineastas, artistas em geral que se negam a uma relação íntima pautados nos modos de produção do comércio da arte.
Diversos artistas do punk rock, rock´n´roll e agora do rap desenvolveram na prática formas alternativas e muito eficazes de difusão dos seus conteúdos. Os zines, os circuitos e festivais alternativos da cultura punk e agora o empreendedorismo dos rappers, influenciando diretamente o mercado e a indústria ao passo que difundiu o lifestyle do hip hop juntamente com a sua massificação, também esvaziou politicamente a cultura, produzindo no rap uma regressão da audição com forte caráter fetichista [4]. Em dois tempos a cultura Hip Hop se expandiu em condições altamente questionáveis.
A relação entre arte e mercado é complexa. Mesmo que haja fissuras no funcionamento do mercado, a produção independente ganha seu sentido justamente ao não endossar tais mecânicas de poder. Para isso, há outro elemento imprescindível, que é a criação das redes, que garantem, consequentemente, a sobrevivência dos grupos. Do contrário, a produção independente pode se resumir a um lugar de invisibilidade e isolamento mesmo antes de chegar a qualquer nível de mercado. Aquele que se pretende independente deve estar articulado a um projeto que ajude a dar sentido à produção das redes em apoio mútuo. Em outras palavras, é o projeto que determina o caráter dessa independência, já que a categoria independente, por si só, é genérica e abstrata, não se explica isolada de um contexto. Bom, é a partir desse independente que se dá a produção cinematográfica da 202 filmes.
Por mais que nas sociedades capitalistas nós estejamos sempre rodeados por imagens, a partir do momento que passamos a produzir nossas próprias imagens damos um salto qualitativo, pois são nossas histórias, a partir da nossa própria leitura de mundo, o que começamos a produzir. A primeira vez que tive acesso a uma câmera algo inédito aconteceu na minha cabeça expandindo e estimulando criações. A primeira câmera que vi e tive a oportunidade de mexer foi uma daquelas grandes de VHS de um primo, que filmava os seus jogos de futebol em São Gonçalo numa quadra. Isso foi na década de 90; eu ainda era bem jovem. Nós o filmávamos da arquibancada e assistíamos em casa ligando os cabos RCA da câmera direto na TV. Anos depois, minha mãe comprou uma maquininha de tirar foto digital que filmava em péssimas condições. Com aquela câmera filmamos o primeiro clipe do Fluxo[5], “Nada é em Vão”. Logo depois, ganhei uma Canon MV860 de fita mini-DV; fiz vários clipes e o meu primeiro curta-metragem, “As Palavras de um Faminto” (2005), feito de forma espontânea apenas para satisfazer uma necessidade de criação e também mostrar um pouco da nossa realidade. Naquele momento, Wallace trabalhava na Domino’s Pizza e a gente rodou uns takes lá, tanto é que tem um momento que ele está trabalhando a massa da pizza e se faz uma analogia com as massas de passageiros das barcas. Este curta, mesmo com todos os seus claros limites, me deu possibilidade de continuar novos registros, mesmo que de forma precária e amadora. As filmagens foram feitas em dois ou três dias e trata-se, basicamente, do dia a dia de um trabalhador um pouco confuso em meio a tudo que o cerca, mas que ainda assim consegue focar na música que é aquilo que ele gosta. Escrevi o texto, que foi narrado pelo De Leve, e quem atua é Wallace Carvalho, que também mantinha comigo o projeto de rap Fluxo, e a trilha é do China, ex-integrante da banda Sheik Tosado que gentilmente cedeu as músicas. Na época, eu estava produzindo um single para o De Leve, que foi lançado na minha mixtape “Rio-202: Contos e Batidas”. Isso, num primeiro momento, nos aproximou, e em seguida eu o convidei a participar do filme. Por fim, o filme teve algumas visualizações no Youtube e me lembro que o único comentário apontava para a verborragia da voz em off.
As Palavras de um Faminto (2005)
No final de 2004, início de 2005, com a mesma mini-DV comecei a filmar a cena do rap no bairro da Lapa, Rio de Janeiro. Começar a filmar e desenvolver este trabalho à exaustão foi possível graças à minha inserção como beatmaker e produtor na cena do rap do Rio de Janeiro. Já nos idos de 2003 em diante trabalhei na montagem de um homestudio no apartamento 202 em um condomínio na Noronha Torrezão, no bairro do Cubango, em Niterói. Àquela altura eu não estava na universidade, e montar um estúdio só foi possível graças ao exaustivo trabalho em casas de bingo. O meu salário, na época, era pouco mais de 300 reais, mas as gorjetas ajudavam. Enfim, com o dinheiro e algumas economias pude comprar alguns equipamentos, o que possibilitou uma produção intensa ao longo de aproximadamente cinco anos. Ter um estúdio em casa significou autonomia, parcerias e dar apoio aos rappers que iniciavam suas carreiras. Os estúdios são as artérias da cena. Muitos artistas gravaram no antigo Studio 202. A grande maioria gravou lá sem qualquer custo.
O estúdio cessa suas atividades no final de 2008, quando entro para o curso de História na Universidade Gama Filho e me mudo para outro apartamento. Novamente, tive que voltar ao mercado de trabalho agora como operador de telemarketing para pagar a mensalidade, que aos poucos foi tornando-se impagável. Todo semestre tinha reajuste, e a atividade de telemarketing estava me desestabilizando psicologicamente. Isso me fez concentrar nos estudos para ganhar uma bolsa e, num segundo momento, fazer prova de transferência para a UFF, coisa que consegui em 2009. Tudo isso, naturalmente, me fez afastar da produção fonográfica, já que eu não tinha mais estúdio, o que me fez empenhar na produção de filmes. A essa altura eu já tinha produzido mais dois filmes, “Paralelo 14” e “De Repente: poetas de rua”.
“Paralelo 14” é um média-metragem sobre a vida de Marcelo Martins, camarada que conheci na internet e logo nos aproximamos pelo fato de produzirmos instrumentais de rap. O filme foi rodado em quinze dias na cidade de Alto Paraíso com uma mini-DV Canon HV30, um microfone Yoga direcional e um tripé, e fala do processo de transição do Marcelo, quando ele sai de Porto Alegre e decide morar em Alto Paraíso, interior de Goiás. Além da sua história de vida, busquei registrar a sua música, altamente experimental e expressiva. O filme é lançado virtualmente em 2008, e em 2009 eu termino o longa “Poetas de Rua” depois de cinco anos filmando o que resultou num acúmulo de quase 80 horas de material bruto, entre entrevistas, batalhas, shows, etc.
Paralelo 14 (2010)
A produção de beats foi um dos principais elementos que me inseriu na cena do rap e que gerou um enorme impacto pelo fato de eu ter produzido uma série de videoaulas sobre a produção de beats utilizando o programa Fruity Loops. Essas videoaulas influenciaram toda uma geração de produtores e beatmakers no Brasil. Mas por que isso aconteceu? Bem, naquela época, nos idos de 2006, uma empresa chamada CD Expert, que todo mês lançava uma revista com CD, sempre dentro do universo da produção, apropriou-se das minhas videoaulas, incluiu como conteúdo em duas edições e distribuiu em boa parte do país. Fora a parte isso, a internet foi elemento impulsionador e complementou a distribuição. Obviamente, a empresa não me pagou, e ao que parece sumiu do mercado anos depois.
O “Poetas de Rua” é um documentário importante para a cena do rap no Rio de Janeiro e continua a história que outros filmes também começaram a registrar como é o caso do primeiro filme de Emílio Domingos, Bianca Brandão e Luísa Pitanga, “A Palavra que me Leva Além”, de 2003, e “L.A.P.A”, de Emílio Domingos e Cavi Borges, de 2009. O “Poetas” trata de personagens que ocupavam as ruas e produziam eventos na Lapa improvisando a vida em rimas. O freestyle é o mote da narrativa. O filme não foi lançado em nenhum circuito ou festivais. Ele foi disponibilizado na internet e virou uma espécie de relíquia underground do rap RJ. No entanto, há uma evidente falta de apoio da própria cultura da cidade em divulgar o filme. Houve algumas exibições, sendo a mais recente em 2014 no Imperator, um importante cinema no Méier, feito a convite da Rio Filme e CCRP[6].
De Repente: poetas de rua (2009)
Até aqui eu já tinha produzido três filmes, todos de forma independente, no momento mesmo em que aprendia e dominava o fazer, a produção, a montagem e todo o resto. Em seguida, comecei a firmar parceria com Felipe Xavier, camarada que conheci em 2008 na Gama Filho e que se transferiu para a UFF mais ou menos na mesma época que eu. Nesse período, começamos a nos envolver e, em 2010, produzimos o curta “Os Presos de Março”, sobre a prisão de militantes do PSTU quando da vinda do presidente norte americano Barack Obama para negociar as riquezas do pré-sal. Uma ação desencontrada entre os próprios militantes da esquerda, a princípio encampada por militantes do MEPR (Movimento Estudantil Popular Revolucionário, de orientação maoísta), desencadeou a repressão, resultando na prisão de onze militantes, levados para o presídio de Bangu, tendo suas cabeças raspadas. Para fazer a entrevista com os militantes após a prisão tivemos o apoio de diversos amigos e familiares. Ton Gadioli me emprestou e operou uma câmera, meu primo Pedro Vargas e Daniel Chaves fizeram o som direto e Rafael Xavier (irmão do Felipe) e nosso amigo Jonatan Agra fizeram a logística. Dessa forma, conseguimos dar cabo a mais uma produção. Nossa intenção era lançar o filme em DVD e também em circuitos. Para isso, precisaríamos de um financiamento básico, que buscamos em sindicatos e com o PSTU, que não se dispuseram a contribuir. O PSTU fez uma exibição do filme, mas nem por isso o incluiu como uma representação de parte da luta do partido.
Os Presos de Março (2011)
Em seguida, em 2011, eu, Amanda Calabria e Felipe Xavier produzimos o curta-metragem “Do Olho ao Avesso”, uma espécie de conto trágico sobre a solidão na cidade. Este, na verdade, foi um filme-exercício, uma experimentação para nos qualificar para os próximos, pois nesse momento eu já começo a visualizar a necessidade de produzir uma ficção, mas ainda produziria muitos outros documentários. “Do Olho ao Avesso” também não teve muito lastro, tendo visualizações limitadas no Youtube.
Do Olho ao Avesso (2012)
Nesse contexto, na UFF, aos poucos fomos nos inserindo na militância do movimento estudantil [ME]. De 2010 para 2011 comecei a me inserir a fundo mesmo. O contexto político daquele momento certamente estava menos tenso que hoje, em 2022, mas nada muito brando, ainda que sob um governo neo-reformista. As universidades públicas, ao passo que se expandiram e incluíram uma parcela de setores desprivilegiados, não sustentou o seu projeto de forma a garantir a qualidade do ensino, das condições materiais para estudantes e funcionários manterem-se na universidade, agudizando as contradições internas entre professores e estudantes, funcionários e reitoria, gerando com isso intensos conflitos. Em 2011 entrei para uma organização anarquista na UFF de nome MAD (Movimento de Ação Direta). Minha habilidade com o audiovisual ajudou o grupo, ao mesmo tempo em que o jogou em crises e tensões políticas decisivas. A produção audiovisual do MAD nos colocou à frente das demais organizações, neste caso segmentos do PT (Levante!), PCdoB (UJS), PCB (UJC) e PSOL (Não Vamos Pagar Nada), setores estes da burocracia estudantil.
O MAD nasceu nos idos de 2011, composto por militantes experientes e muitos mais novos, alguns recém-chegados na universidade. Havia uma espécie de hiato desde o fim do acampamento Maria Julia Braga e as assembleias comunitárias que ocorreram no ICHF por volta de 2008. A ideia de formar este coletivo, de fato, deu mais vazão às pautas internas na universidade. O MAD atuava organizado nas assembleias, o que garantiu, por exemplo, a ocupação do campus do Gragoatá na greve de 2011 e o polêmico piquete no ICHF, que colocou todos os professores progressistas em pé de guerra contra os estudantes mais radicalizados. Isso também mobilizou atuações fora da universidade, inserindo-se nas lutas da cidade. A organização, no entanto, não foi garantida com o passar do primeiro momento, gerando as condições para a sua auto-dissolução. Isso fez com que, no futuro, os seus militantes mantivessem entre si apenas o laço identitário e a memória de um passado recente.
O histórico movimento estudantil da UFF tem trajetória nas lutas não só dentro, mas fora da universidade. É tradicional, também, a formação de quadros políticos de diversos partidos da esquerda reformista. O setor libertário também demarcou importantes disputas no seio das lutas na universidade. Foram anos até se formar uma tradição no campo libertário, muito comumente estigmatizado por reformistas, burocratas e setores da direita como “a malucada”. Por não compactuar com a burocracia acadêmica e estudantil, muitos momentos de tensão redefiniram as políticas do ME pautando a partir do viés autogestionário o projeto por uma universidade livre das amarras do capital e sua lógica competitiva de mercado. Todas essas disputas não se deram sem o confronto, não só contra a estrutura burocrática da universidade, reitores e pró-reitores, agências de fomento, etc., mas também contra setores conservadores, progressistas e reformistas da universidade.
O processo de privatização e o desmonte do caráter público da educação (não só universidades, mas hospitais e outras instituições) se dá paulatinamente a partir da década de 90 com o processo de liberalização da economia. Fernando Calado, conhecido militante anarquista no movimento estudantil da UFF, produziu uma série de análises e relatos sobre as movimentações no seio da comunidade acadêmica e sobre o contexto daquele momento. Escreve Calado:
“No governo Collor, os estudantes da UFF perderam a janta no bandejão. A UFF ficara quase um ano em greve, sem a mínima condição de funcionamento. Entre fechamentos e retornos do direito ao almoço nos governos seguintes, perdemos o suco e a sobremesa. No governo FHC o almoço havia sido cortado por total falta de condições operacionais do nosso restaurante universitário.
Foi quando decidimos burlar as decisões soberanas de uma assembleia geral dos estudantes realizada no próprio bandejão. Os companheiros político-partidários ganharam no voto que não seria feita nenhuma ocupação. Insatisfeitos com a decisão coletiva, a “malucada” decidiu aproveitar um palco livre no ICHF (Instituto de Ciências Humanas e Filosofia) e instalar ao lado do bandejão as barracas necessárias, faixas de protesto, uma cozinha improvisada, e de lá sair apenas dois meses depois.” (As músicas que eram cantadas na vigília, 13/04/11. Fernando Calado)
Foi então que eu e Felipe começamos a registrar intensamente o movimento estudantil, durante aproximadamente três anos. O material captado foi tão grande que dali resultaram inúmeros vídeos, um média-metragem, “Prévia do Amanhã”, e um longa, “UTOPIA e cidade”. O primeiro trata, basicamente, do início do MAD e da ocupação da reitoria. Sabíamos que o central seria divulgar a luta principalmente para o meio estudantil na tentativa de encorpá-la, mesmo diante das evidentes contradições. O segundo tem duas horas de duração e é detalhado no processo das movimentações da UFF de 2011 e 2012. Isso fez com que houvesse muitas exposições no filme, por exemplo, de professores e setores reformistas do movimento estudantil, o que resultou na sua consequente estigmatização, na tentativa de torná-lo invisível (na última greve da UFF por exemplo o filme foi sabotado quando se tentou exibir). A cena do piquete, por exemplo, deixou claro que ali existem setores organizados que são intolerantes a qualquer tentativa real de horizontalizar as relações. Ficou claro o medo dos professores em dialogar e cair em consequentes contradições e não conseguir mantê-las com coerência. O professor Jorge Ferreira, do departamento de História, chegou a quebrar uma de nossas câmeras, nos comparando ao DOPS. Ficou claro, também, o forte caráter reacionário de boa parte dos estudantes do ICHF da Universidade Federal Fluminense (Instituto de Ciências Humanas e Filosofia). Ronaldo Vainfas, conhecido professor do departamento, também deu o seu show, tentando tirar o piquete à força, mas não conseguiu, evidentemente. Ele berrava: “Vocês não sabem nada! Nada!”.
Os professores do departamento de História, na sua quase totalidade, rejeitam qualquer intervenção direta no funcionamento da máquina produtivista acadêmica. A burocracia se apresenta como um muro altamente resistente aos possíveis choques. A professora Hebe Matos, também do departamento de História da UFF, chegou a afirmar que fazer um piquete era prática autoritária típica da SS nazista e deu as costas, quase tendo um ataque cardíaco. “Vocês estão destruindo a universidade que nós ajudamos a construir”, disse ela. Enfim, o filme “UTOPIA e cidade” mostra bem as tensões na universidade e também em ações fora dela, como foi o caso dos policiais do batalhão de choque que tomaram minha câmera, me imobilizaram em círculo em plena luz do dia na praça do Caminho Niemayer para que as pessoas não vissem o que estava acontecendo e apagaram as imagens, me ameaçando, dizendo que “polícia não se filma”, num claro aviso à minha integridade. Isso tudo por eu ter filmado uma ação truculenta deles contra moradores de rua no Caminho Niemayer em Niterói.
UTOPIA e cidade (2012)
Prévia do Amanhã (2012)
Toda a agilidade que construímos ao longo de todo esse processo das movimentações estudantis fez com que 2013 fosse um verdadeiro laboratório de como produzir comunicação numa velocidade tal que acompanhasse os fatos ao passo que se diferencie na sua linguagem, não se repita em demasia e proponha uma leitura dos processos, ou seja, que interprete aquilo que registra quase que em tempo real. Acompanhamos as movimentações de 2013 e 2014 em Niterói e no Rio de Janeiro, produzindo dezenas de vídeos muito acessados no Youtube. As imagens também foram muito solicitadas para diversos outros trabalhos. Com uma 5D e uma lente 50mm produzimos um material rico em linguagem e cobertura dos confrontos e das mobilizações.
Os perigos em filmar as manifestações são evidentes. A polícia é treinada para simplesmente aniquilar os mídias independentes atirando a esmo, cegando, ferindo, ameaçando, enfim, praticando atos de barbárie com a clara intenção de dificultar uma leitura esclarecida dos fatos. Dessa forma, veríamos, por exemplo, o caráter fascista das polícias e a sua imprescindível superação, precisando deixar claro o seu caráter impenetrável, pois, diferente dos reformistas, não acreditamos na disputa das polícias e sim na sua superação, já que em última instância são nada mais que agentes do Estado e defensores do capitalismo. Evidentemente, não poderei aprofundar no tema aqui, mas a polícia serve aos interesses da burguesia. Dessa forma, produzimos vídeos na tentativa de decodificar melhor as relações de poder e seus interesses evidentes. As polícias, sejam elas municipal, civil, militar ou federal, assim como os exércitos e demais forças armadas, têm função estratégica na defesa do capitalismo e do seu elemento sagrado, a propriedade privada. As ruas não podem parar, pois não param de circular mercadorias, entre elas a mão de obra assalariada. As forças repressivas também têm como função matar a população pobre e negra favelada e o lumpemproletariado. Em outras palavras, o necessitado e o desprivilegiado socialmente são os principais alvos da repressão. A visão dos meus vídeos, nesse sentido, era sempre denunciar a brutalidade com que a polícia age nas manifestações, mas sem esquecer que nos territórios pobres a violência se dá de forma direta, eliminando o indesejável com tanques e armas letais. É preciso mostrar bem a crueldade da polícia, politizando cada frame para que não tenhamos dúvidas sobre de que lado os agentes realmente estão, gerando também uma crise na estratégia reformista dos partidos eleitoreiros. A polícia está ali, mais uma vez, em sua função primordial: garantir a ordem do capital. E para isso agia e age infiltrando-se e criminalizando os militantes, organizados ou não.
Setembro Negro (2014)
Em paralelo a isso, produzi um curta-metragem sobre a Casa Félix, lugar onde morei por um tempo, que me serviu de base para fazer as edições dos materiais das jornadas de junho e das movimentações de 2014. O filme, no entanto, deixa muito a desejar. Passa uma visão muito pouco crítica do que realmente foi a experiência da Casa Félix em suas minúcias e contradições. A Casa Félix era também um espaço político, ainda que precário. Precário em sua organização, primeiro pelo fato de muitos que ali ocuparam são da UFF e fizeram parte do movimento estudantil, carregando, consequentemente, um conjunto de contradições ainda não superadas durante o processo das ocupações estudantis. Isso fez com que a pós-modernidade fosse a tônica, deixando claro sua intolerância à organização sistemática, materializando-se em micro-fascismos por parte dos integrantes da casa, coisa que não apareceu no filme, deixando uma imagem de um grupo feliz, festivo, muito próximo daquilo mesmo que a gente criticava.
Casa Félix (2014)
Todas essas produções, fora os clipes que produzi (que somam algo em torno de 30 videoclipes) e diversos outros trabalhos, me capacitaram a trabalhar com praticamente todos os campos da produção, desde som direto, montagem, roteiro, ainda que de forma limitada. Nesse tempo, nos idos de 2013, eu, Felipe, Carolina Maíra e Patrícia Andréia começamos a trabalhar num curta-metragem sobre o funk na favela de Acari. Ganhamos um edital da Prefeitura, de R$20.000,00, mas a má gestão dos poucos recursos e a quase completa falta de organização do grupo quase comprometeu a produção do filme. Por fim, conseguimos concluir o curta e exibimos numa das ruas da favela, com um público assistindo a projeção na parede de um dos moradores. O filme tem sua qualidade, e personagens importantes da cena, como Sinistro e Mião, MC Liano, MC Pingo, Mano Teko, o baile funk, as ruas e a movimentação da favela.
Funk Acari (2015)
“El Pueblo que Falta”, o próximo longa que dirigi, produzi em parceria com André Queiroz, que também assina a direção. André era meu professor na UFF, e logo firmamos proficiente relação de produção. Em nosso filme, buscamos tratar das violências de Estado em alguns países da América Latina. No total, filmamos em Peru, Colômbia, Argentina, Chile e Brasil. Em uma de nossas viagens, fomos para Buenos Aires. Lá, filmamos Rosa Roisinblit, que integra as Abuelas de Plaza de Mayo, o grupo CORREPI (Coordinadora Contra La Represión Policial e Institucional) e outros. Logo em seguida fomos para Córdoba, Mendonza e Santiago. Totalizamos trinta e sete entrevistas de militantes de diversas organizações como MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionária), ALN (Ação Libertadora Nacional), montoneros, intelectuais, cineastas, etc. No entanto, a intenção não era produzir um documentário clássico tipo talking head. Por isso, buscamos alternativas, inserindo performances ao longo da narrativa. Por fim, produzimos uma espécie de documentário experimental com um tom poético. Os recursos que tínhamos eram poucos. Somou-se algo em torno de trinta mil reais. Rodamos com uma Canon 5D Mark II, um microfone e um tripé. O filme ficou em cartaz no Cine Arte UFF durante uma semana e circulou em exibições em diversas universidades. Fizemos seiscentos DVDs, buscando uma distribuição alternativa. O filme também foi exibido em Buenos Aires.
El Pueblo que Falta (2015)
Dependendo do planejamento, da organização e dos recursos financeiros e materiais, a produção de um filme pode levar dois ou oito anos, como é o caso do meu próximo filme, “O Som do Tempo”, sobre a cena do rap carioca, que comecei a filmar em 2009. Decidi continuar os registros na cena do rap RJ por perceber que o “Poetas de Rua” ainda não era suficiente. Seria preciso continuar analisando o processo do rap na cidade e seus desdobramentos. Em seguida, eu e Gabriel Moreno firmamos parceria para pensar a produção e a distribuição. A cultura hip hop inegavelmente se expandiu. Vários fatores contribuíram para esse crescimento, como o empreendedorismo dos grupos e MCs, o avanço das rodas de rima, a inserção do rap nas mídias burguesas e a sua consequente incorporação ao hall da indústria cultural. Mas, ao passo que cresceu, tornou-se o rap uma mercadoria como outra qualquer, pronta para consumo em seu lifestyle. A competitividade é o motor dos rappers que estimulam o que denominam o game. Esse jogo funciona pautado sobretudo no espetáculo da imagem, tal como coloca Debord em seu clássico A Sociedade do Espetáculo. O filme retrata também toda a diversidade do rap. Os beatmakers, as rodas de rima, produtores, a questão da mulher, grupos, MCs, batalhas, o mercado e a questão do negro. Este foi um dos filmes mais trabalhosos que fiz, sem dúvida. Foram dezenas de horas de material bruto, quase oito meses montando um total de 63 entrevistas.
Após a produção do “El Pueblo que Falta”, eu e André produzimos mais um filme: “Araguaia, Presente!”, que também aborda o Estado em sua face terrorífica, que avançou no sentido de combater as resistências contra a ditadura civil-militar a partir da década de 60 no Brasil, mais especificamente na região ao sul do Pará. Mais que isso, o filme se propõe a analisar criticamente o período, lançando também um olhar sobre o presente. A forma como se deu o processo de produção incluiu a pesquisa, o debate e a escrita. A produção do “Araguaia” envolveu mais recursos que o anterior, atores, diretor de fotografia, maquiagem, figurino e uma série de outros elementos. Analisar criticamente o período da guerrilha e toda a conjuntura social interna e mundial é produzir um movimento dialético no sentido de uma possível emancipação da classe trabalhadora no Brasil. As resoluções do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, a sua consequente desintegração em 1962, a formação do PCdoB e a escolha por manter-se numa perspectiva revolucionária, a sua consequente liquidação, a tortura e o assassinato da direção, dos militantes e dos camponeses ao sul do Pará e por fim a ausência de autocrítica do PCdoB e o seu evidente caráter burguês e reformista, aspecto facilmente detectável nos dias atuais são elementos da trama do filme.
Em 2018 eu e Felipe produzimos o último trabalho juntos, que foi o longa-metragem “Conservadorismo em Foco”, que mesmo diante das dificuldades resultou em um trabalho produzido a partir de uma pesquisa e longos debates sobre a proposta que imprimiríamos na película. Fizemos uma exibição no Cine Arte UFF com a presença das professoras Virgínia Fontes e Tatiana Poggi numa célebre noite.
Após a produção do Conservadorismo produzi o média-metragem “O Futuro Ausente”, nome que dá título a uma das obras do professor José Chasin, onde ele diz o seguinte:
“O arremate aflitivo do século, evidente em todos os planos, há de conduzir a inteligência, de algum modo e sob pressões cada vez mais amplas e agudas, ao enfrentamento de um complexo montante de desafios, que em teor e grau não conhece precedentes. É do que pode consistir, hoje, uma posição de manifesto otimismo ponderado, que antes expressa o peso do mal-estar contemporâneo do que confiança em algum vago despertar das consciências. (…) A agudização sofrida pelo complexo problemático obriga que se admita e fale em futuro ausente, como a enervação que perpassa e a canga que esmaga a existência contemporânea.”
Trata-se de um filme que analisa a conjuntura política de 2020, o protofascismo de Jair Bolsonaro, o ultraconservadorismo. Entrevistei Camila Jourdan, Christian Dunker, Carlos Pronzato, Esther Solano, Rui Costa Pimenta e outros.
Lucas Santiago Mattos (que fez o roteiro da ficção do “Conservadorismo em Foco”) e eu começamos um ousado projeto sobre a história do marxismo chamado “Marxismo em Foco”: web-série sobre a teoria revolucionária do proletariado que seria dividida em cinco capítulos. O primeiro episódio dessa nova série será uma biografia de Karl Marx, o fundador do materialismo histórico dialético, que terá momentos importantes de sua vida, o que resultou na elaboração de obras notórias. O segundo aborda a Revolução Russa, sem dúvida o momento mais importante em que os trabalhadores logram vitórias e avanço na luta contra o capital. O terceiro episódio traça amplo panorama do marxismo na Europa pós-II Guerra Mundial. O quarto episódio investiga o marxismo na América Latina, pensando também os processos sociais e políticos mais importantes da história a partir da década de 60. Por fim, o quinto episódio debate especificamente o marxismo no Brasil a partir da chegada de imigrantes europeus no início do século XX e importantes marcos, como a fundação do PCB em 1922 em Niterói. Nós chegamos a começar as filmagens, mas, com o advento da pandemia, paramos a pesquisa e a produção.
Na pandemia, então, eu tinha treze entrevistas que realizei para a web-série; elas me serviram para um outro projeto: “O Brasil dos Últimos Dias”, um filme experimental feito a partir de outros filmes e com alguns trechos de entrevistas que realizei com diversos intelectuais como Ruy Braga, Michael Löwy, Virgínia Fontes, Antônio Carlos Mazzeo e outros. O filme será disponibilizado no canal da produtora e no Bombozila em 2022.
Em 2019 comecei a produzir registros sobre os moradores do conhecido prédio da Caixa que fica na Amaral Peixoto, Centro de Niterói. Naquele momento eu já tinha uma vontade de produzir um documentário sobre a luta dos moradores, mas não tinha ainda material suficiente para isso. Foi então que nesse ano de 2021 conheci mais os moradores, muito por conta do meu contato com uma das lideranças do movimento, Lorena Borges Gaia. Realizei treze entrevistas, fizemos a pesquisa de material de arquivo, fizemos tomadas áreas, produzi as trilhas sonoras e montei o filme em menos de um mês. O filme surge das urgência das lutas dos moradores, o que acabou por gerar uma resposta bastante truculenta por parte da Caixa Econômica Federal, que mandou para mim uma notificação extrajudicial exigindo a retirada do nome “Caixa” do título do filme — o que está fora de negociação, evidentemente.
Os moradores do prédio foram expulsos de forma criminosa, e é isso o que o filme busca evidenciar. A Prefeitura, em ação conjunta com o Ministério Público, a guarda municipal, polícia civil, militar e os bombeiros, agiram com o máximo de truculência e com requintes de perversidade contra os moradores. Geralmente pensamos que tais estruturas de poder servem para defender o interesse geral, quando, na verdade, o que ocorre é justamente o contrário.
Há uns meses começamos outra empreitada: o filme Rua Walter Benjamin: redenção e utopia, com direção de Lucas Santiago Mattos. Estamos nos processos iniciais de captação de recursos o que vem sendo bastante difícil, pois além de estarmos num contexto bastante desfavorável economicamente também há pouco empenho em se financiar obras independentes. De qualquer forma, a obra tem importância fundamental ainda mais em tempos de fascismo.
Há várias formas de se fazer cinema, certamente. Mas um elemento não pode faltar em nenhuma delas: a organização e uma metodologia que envolva todos os processos do fazer cinema. A direção é por isso fundamental e imprescindível. Isso tudo, além de diminuir custos, objetiva ainda mais a produção, dando possibilidade à continuação dos projetos. A distribuição é uma das dificuldades centrais daqueles que produzem de forma precária ou com poucos recursos, por isso as redes articuladas são fundamentais.
O cinema autônomo (ao mercado e à indústria cultural) desenvolve-se no processo mesmo do fazer, já que muitas vezes está apartado de uma teoria ou de uma metodologia única, tendo como consequência hiatos, por exemplo, na parte da distribuição. Mas o mais importante é que pensar e fazer o cinema a partir do desenvolvimento de uma teoria social determina a vitalidade desse cinema, ao passo que, em sua ausência, pode simplesmente passar uma vida inteira flertando com diversas correntes sem que se dê conta disso, gerando, consequentemente, um cinema estéril, ainda que experimental. Isso pode viabilizar algum tipo de avanço na produção, mas também produz retrocessos evidentes. A liberdade possível na arte está intimamente ligada ao seu contexto material. O cinema que se afirma autônomo deve manifestar abertamente o seu caráter classista, objetivo, eliminando qualquer elemento que relativize seu posicionamento frente ao que aí se estabelece. Este cinema não deve negar seu antagonismo com os monopólios dos meios de comunicação que, evidentemente, servem à classe dominante. O projeto, e todo seu desenvolvimento, se dá a partir de um acúmulo teórico e prático também no momento e processo do fazer coletivo. Essa característica essencial do cinema político é uma espécie de mote das narrativas que busco de certa forma desenvolver, e com o qual, evidentemente, me encontro politicamente.
Notas
[1] “Por modo de produção entende-se tanto o modo pelo qual os meios necessários à produção são apropriados, quanto as relações que se estabelecem entre os homens a partir de suas vinculações ao processo de produção. Por essa perspectiva, capitalismo significa não apenas um sistema de produção de mercadorias, como também um determinado sistema no qual a força de trabalho se transforma em mercadoria e se coloca no mercado como qualquer objeto de troca.” Afrânio Mendes Catani, O que é Capitalismo.
[2] Teixeira Coelho analisa a indústria da seguinte forma: “assim, e partindo do pressuposto (aceito a título de argumentação) de que a cultura de massa aliena, forçando o indivíduo a perder ou a não formar uma imagem de si mesmo diante da sociedade, uma das primeiras funções por ela exercida seria a narcotizante, obtida através da ênfase ao divertimento em seus produtos. (…) Por outro lado, com seus produtos a indústria cultural pratica o reforço das normas sociais, repetidas até a exaustão e sem discussão. Em consequência, uma outra função: a de promover o conformismo social.” Teixeira Coelho, O que é Indústria Cultural.
[3] O sentido do conceito de emancipação que coloco aqui é de acima de tudo reconhecer no contexto capitalista o limite para a criação autônoma como forma de situar o sujeito num lugar antagônico a normatividade de mercado. A emancipação humana, ressalta Celso Frederico, “é pensada por Marx a partir do auto-desenvolvimento da sociedade, entendida esta como uma totalidade in progress. Não se trata, portanto, de uma volta atrás, do retorno a um idílico e hipotético estágio da sociedade ainda não cindida pela divisão do trabalho. A nostalgia da comunidade perdida não existe em Marx, como comprova a sua crítica ao comunismo grosseiro.” Celso Frederico – Marx, Lukács: a arte na perspectiva ontológica.
[4] Neste caso, Adorno faz uma observação interessante acerca do fetiche musical no clássico texto O Fetiche da mercadoria e a regressão da audição: “O conceito de fetichismo musical não se pode deduzir por meios puramente psicológicos. O fato de que “valores” sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência da sua característica de mercadoria. Com efeito, a música atual, na sua totalidade, é dominada pela característica de mercadoria: os últimos resíduos pré-capitalistas foram eliminados.” A mercantilização sobretudo se expandiu e define-se como o projeto normativo que estabelece todas as formas como a música será produzida, pensada, distribuída e que após o seu total desgaste dará lugar a produções tão degeneradas como as anteriores.
[5] Grupo de rap formando por mim e Wallace Carvalho. O grupo acabou por volta de 2009.
[6] Circuito Carioca de Ritmo e Poesia.
[*] Arthur Moura é doutorando em História pela UERJ
A imagem de destaque deste artigo pertence a Myke Simon. Todas as restantes são fotos de divulgação de cada filme.
Bem interessante o seu artigo, Arthur. Gostaria de saber o que você pensa sobre esse fenômeno dos filmes de herói quererem se sobressair às indicações tradicionais ao Óscar, ou mais precisamente, sobre esse fenômeno da indústria cultural pretender “salvar” o cinema por meio de bilheteria e filmes sem impacto artístico. Um pontapé para essa reflexão é este artigo: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/02/oscar-2022-quer-agradar-ao-publico-mas-ameaca-sufocar-cinema-pensado-como-arte.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha.
Já agora uma problematização para acrescentar ao debate, como debater cinema, hoje, na etapa atual da pandemia?Qual o papel do streaming nisso?
Grande abraço.
Fala, Lucas, obrigado! Que bom que você gostou. Eu tentei acessar o link que você disponibilizou, mas está acessível somente para assinantes. Confesso que estou um pouco por fora desse debate até porque pouco acompanho o Oscar. A outra questão que você coloca me parece importante, porém bastante abrangente. Primeiro temos que pensar qual cinema falamos. Como a questão aqui gira em torno do cinema político penso que é a partir desse ponto que devemos partir. O contexto de pandemia me colocou, particularmente, a mesma questão. É preciso produzir a despeito das dificuldades do nosso contexto. O cinema pode iluminar determinadas questões que não são priorizadas em outras formas de comunicação. Mas a questão central ainda me parece ser a organização dos produtores como forma privilegiada para dar cabo das tarefas desse processo. A internet ainda me parece ser uma dessas saídas e o streaming tem papel nisso. Mas ainda assim há barreiras que parecem intransponíveis e que só podem ser quebradas por meio de associações calcadas num fortalecimento desse setor que produz um cinema voltado para as lutas de classes.
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